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A participação e o processo decisório no campo cultural brasileiro

2003-2005 Articulação política

4.1 Democracia, participação e o desenho institucional do SNC

4.1.1 A participação e o processo decisório no campo cultural brasileiro

Tomando o debate à realidade do Brasil, a democracia brasileira desenvolveu-se ao longo dos últimos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988, com experiências inovadoras no campo da participação da sociedade civil nos processos decisórios. Tais experiências incorporam um campo de estudos relevantes para a ciência política e para a administração pública e, especialmente, aqui, reivindicamos a importância e atenção para o campo da política pública de cultura e sua gestão pública.

É preciso, pois, adentrar no campo político, especialmente no debate sobre democratização e descentralização para entender todo esse processo das experiências inovadoras como resultado de um contexto maior. Apesar de que a democratização de um regime político e a descentralização da administração pública tenham suas distinções, por vezes até permeada de antagonismos, a história recente do Brasil confirma que essas duas

tendências, democratização e descentralização, caminharam concomitantemente.

(MACHADO, 2007).

Segundo Machado (2007), três foram os fatores históricos que contribuíram para a descentralização político-administrativa das cidades brasileiras:

o forte incremento da urbanização, a partir da década de 1940; as lutas pela melhoria da qualidade de vida nas cidades, empreendidas pela população que migrou do campo e que se organizou, a partir da década de 1970, em associações de moradores e movimentos sociais; e o processo de transição da ditadura militar para a democracia, que ganhou impulso na década de 1980, com a eleição de governos municipais e estaduais comprometidos com a questão social. (MACHADO, 2007, p.49).

Passado o período de transição e iniciada a consolidação das instituições democráticas, as iniciativas para a descentralização administrativa começaram a ocorrer com a criação de instancias de participação, particularmente nas áreas sociais como educação, saúde e assistência social tais como: a prática do orçamento participativo (AVRITZER, 2008; MACHADO, 2007); os conselhos de políticas – surgidos como resultado da Lei Orgânica da Saúde (LOS) e da assistência social (LOAS) – e os “Planos Diretores Municipais” – resultantes da previsão constitucional sobre as políticas urbanas e sua regulamentação em 2001 através do Estatuto da Cidade (AVRITZER, 2008).

O desenvolvimento da democracia brasileira com essas experiências

institucionalizadas caminhou para novas formas de participação e, nesse sentido, podemos aplicar o termo desenho institucional enquanto resultado das articulações entre Estado e

sociedade e, entendê-lo como um “conjunto de regras, critérios, espaços, normas, leis, que visam fazer valer e promover a realização prática dos princípios democrático-participativos”, conforme Luchmann (2002, p. 143), formalizando o processo decisório, moldando comportamentos, escolhas, além de dar durabilidade ao processo, não o tornando refém de interesses políticos mais efêmeros, e conferindo caráter público às escolhas.

A participação se manifesta por diferentes arranjos que variam conforme as instituições participativas,81 das quais fazem parte:

No caso dos orçamentos participativos, eles constituem aquilo que a literatura

denomina de desenhos participativos de baixo para cima (FUNG e WRIGHT, 2003; BAIOCCHI, 2003). Eles são uma forma aberta de livre entrada e participação de atores sociais capaz de gerar mecanismos de representação da participação. No

caso dos conselhos de políticas, eles constituem desenhos institucionais de partilha do poder e são constituídos pelo próprio Estado, com representação mista

de atores da sociedade civil e atores estatais. E, por fim, os planos diretores

municipais, através da obrigatoriedade das audiências públicas, constituem um

terceiro tipo que denominamos desenho institucional de ratificação. (AVRITZER, 2008, p. 44).

De modo geral, as novas formas estão relacionadas à maneira como a participação se organiza; como o Estado se relaciona com a participação; e, como a legislação exige do governo a implementação ou não da participação.

As iniciativas que constituíram as novas formas de participação democrática no Brasil foram operadas para fazer frente às relações clientelistas, o centralismo autoritário que predominaram enquanto cultura política no país antes da Constituição “Cidadã” de 1988 e deixaram fortes marcas na história brasileira, tornando-se um referencial negativo para o processo de democratização e descentralização que se iniciava.

No processo de institucionalização da política cultural, ouve-se, pela primeira vez, o termo “cidadania cultural” e a adoção do conceito de cidadania cultural, que Marilena Chauí introduz na Secretaria de Cultura do Município de São Paulo (gestão Luiza Erundina - 1989- 1992), e a partir daí rompe com antigas ideias e práticas culturais assentadas em relações dicotômicas, tais como cultura erudita e cultura popular, centro e periferia, além de enfatizar a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos nos órgãos

81 “Por instituições participativas entendemos formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas (AVRITZER, 2009, no prelo apud AVRITZER, 2008, p. 45). É uma concepção contraposta àquelas predominante na teoria democrática do século XX, onde o elemento central da institucionalidade permaneceu focado na existência da legislação formal no interior das instituições, sem considerar a ação participativa de atores sociais. (AVRITZER, 2008).

públicos de cultura, iniciando a promoção de planos de ação cultural descentralizada82 que, em 1990, alcançam efetivamente sua forma ampliada e como parte do direito cultural. (MACHADO, 2007).

Com Marilena Chauí, a cultura foi pensada como direito de todos os cidadãos e a política cultural como cidadania cultural. Um processo em que a política cultural visava também a uma cultura política nova, democrática – em que há legitimidade e o conflito “não é obstáculo, é a constituição mesma do processo democrático” (CHAUÍ, 2006, p. 138).

O SNC é elemento do processo de estruturação e institucionalização do campo da cultura e direciona a elaboração de políticas públicas culturais para uma articulação entre as três esferas de governo, ou seja, é parte ativa no pacto federativo. “Até 2018, 25 estados, o

Distrito Federal e 2.638 municípios aderiram ao SNC”.83

Ao situarmos o SNC dentro de um pacto federativo, cabe a distinção entre o que foi a federalização do país no passado e o que vivenciamos, desta, atualmente. O diferencial da

federalização, hoje, após 1988, frente à tradição federativa brasileira84 – que, gradualmente, a

cada Constituição do Brasil, tem seus escopos alterados85 – está no fato de que, na tradição federativa predominava a centralização e concentração de poder na esfera federal e sem a participação das forças locais, enquanto na atual federalização o pacto além de ser entre os entes federados, União, Distrito Federal, Estados e Municípios, há uma descentralização do poder e a participação ativa dos cidadãos no pacto. Essa segunda seria a forma republicana de federalização (CUNHA FILHO, 2013), na qual não apenas se salvaguarda o patrimônio, como se democratiza o processo. As conferências de cultura são, assim, a organização formal da sociedade para celebrar a aliança do SNC, num exercício de democracia participativa (CUNHA FILHO, 2004 apud CUNHA FILHO, 2013). Adiante, ao acompanharmos o desenho do SNC, veremos porque essa afirmativa é procedente.

O SNC preconiza doze princípios que são: diversidade, universalização, fomento, cooperação, integração e interação, complementaridade, transversalidade, autonomia, transparência, democratização, descentralização e ampliação dos recursos. E, como instrumentalização da diretriz a ser aplicada a todas as esferas de governo, o SNC traz nove componentes: órgão gestores da cultura, conselhos de política cultural, conferências de

82 Efetivamente descentralizada e, já não mais como extensão da cultura erudita como aquelas ações da década de 1980.

83 Disponível em: <http://cultura.gov.br/sistema-nacional-de-cultura/>. Acesso em 20 abr. 2019.

84 “O movimento descentralizador no Brasil começa desde a época Imperial, pois existia um desejo da sociedade com o escopo de fortalecer os Estados e que incorreu em revoltas como a balaiada, cabanada, sabinada e república do Piratini.” (CUNHA FILHO, 2013, p.25)

85 Foge ao escopo deste estudo caracterizá-las na totalidade. Assim enfatizaremos apenas a diferença da atual frente as formas mais tradicionais.

cultura, comissões intergestores, planos de cultura, sistemas de financiamento à cultura, sistemas de informação e indicadores culturais, programas de formação na área da cultura; e,

sistemas setoriais de cultura (SISTEMA NACIONAL DE CULTURA).86

Entretanto, toda essa estrutura não foi construída ex nihilo ou naturalmente, mas resulta de uma escalada feita em direção ao fortalecimento e consolidação da democracia. Foi apenas na última década que assistimos no Brasil a esse avanço na formulação de políticas públicas no campo da cultura com diversos teóricos contribuindo para a discussão e trazendo proposição de modelos e análises empíricas que ilustram benefícios e limites da participação na democracia atual.

O desenvolvimento da democracia brasileira, desde a redemocratização na década de 80, caminha para a participação através de experiências institucionalizadas, como o Orçamento Participativo e uma série de conselhos gestores de políticas públicas, [...]. Essas experiências estão fortemente ligadas ao novo localismo da formulação e implementação de políticas públicas, e tiveram os primeiros sucessos ligados a administrações mais ligadas a partidos de esquerda. (LADEIRA, 2008, p. 1).

O Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC) estão entre essas experiências de políticas públicas e, ambos, representam uma nova forma de gestão das políticas culturais, com a atribuição de competências entre esferas de governo e sociedade que pactuam metas a curto, médio e longo prazo. Do ponto de vista federativo,

os anos 90 representaram um movimento de descentralização, em direção ao poder local. [...] O arranjo institucional e tributário decorrente da Constituição Federal de 1988 significou uma transferência real de renda e de poder para os Municípios. [..] Entretanto, se tomarmos a realidade dos Municípios brasileiros, boa parte – especialmente os menores, que correspondem à grande maioria – tem pouca capacidade financeira e de gestão para apresentar uma resposta adequada ao tema. (ROLNIK, 2007, p. 41).

Isso significa admitir também que, apesar dos esforços, muitas dificuldades persistem e se embrenham no processo, daí o SNC precisar ser considerado um sistema em aprimoramento contínuo e não acabado e, assim, concebê-lo como “uma etapa na qual cabe recrudescer a disputa pela [sic] ideias que valorizem os aspectos políticos e sociais do processo”, pois o SNC encerra uma complexidade inerente ao desenho e à institucionalização em que a articulação ocorre entre entes federativos e a sociedade civil num “universo plural, polissêmico e disseminado da cultura”, de acordo com Carvalho, Silva e Guimaraes (2009, p. 667). Dessa forma, ao ser implementado, não deve deixar-se conduzir à luz do domínio das

técnicas de gestão, planejamento e engenharia institucional, tampouco da suposta neutralidade das mesmas, mas ser conduzido pelos amplos e dispersos setores da sociedade. Essa é uma das faces do SNC que reivindica participação.

E, onde estaria a sociedade, aí, pactuando, acordando, aliançando o SNC nesse contexto maior de federação? Segundo Cunha Filho (2013), a sociedade é reconhecida no pacto federativo quando a Constituição (no § 2º do art. 216) define a composição da estrutura do SNC nas respectivas esferas da Federação, tais como nos órgãos gestores, nos conselhos, nas conferências, nas comissões intergestores, nos planos de cultura, nos sistemas de financiamento, nos sistemas de informações e indicadores, nos programas de formação e nos sistemas setoriais. Tudo isso se comprova na última década, quando no processo de construção das políticas democratizantes assistimos serem incorporados à gestão cultural todos esses instrumentos de participação da sociedade civil, tais como conselhos, conferências, consultas e audiências públicas. Por meio das conferências e consultas públicas, o setor cultural do país foi mobilizado de forma expressiva, e consequentemente, estados e municípios.

O SNC, através de seus instrumentos, intenta criar as bases institucionais, legais e instrumentais para a promoção da cultura como um dos eixos de desenvolvimento do país, em todos os níveis de governo, sendo que, dentre todos os instrumentos que compõem o SNC, o principal deles é o Plano Nacional de Cultura (PNC), cujo papel é determinar os conteúdos programáticos para o próprio funcionamento do Sistema, conforme prevê o artigo 206-A da Constituição Federal. Foi construído a partir das recomendações das Conferências Nacionais realizadas em 2005 e 2009 e amplamente publicado em 2012, definindo o desenvolvimento da cultura até 2020. Uma parte destas metas só poderá ser alcançada se houver participação, pois o PNC possui um conjunto de metas as quais somente terão alcance com a articulação entre o Governo Federal, os Estados e Municípios, o que mostra a importância da articulação entre os entes federativos para a definição de políticas de Estado.

Tendo em vista que o SNC e o PNC sugerem a criação de sistemas e planos de cultura em nível de estados e municípios, estes Planos Estaduais e Planos Municipais de Cultura (PMC) devem refletir a autonomia dos estados e municípios e, ao mesmo tempo, a articulação programática dos Sistema e do Plano Nacional de Cultura.

4.2 Plano Municipal de Cultura (PMC) na perspectiva de uma implementação “de