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Lula e Dilma: democratização da cultura, atemporalidade política e o desafio do fomento cultural

PRINCIPIO ORGANI-

1) a censura a um tipo de produção cultural considerada subversiva e, por outro lado, o incentivo à produção considerada, pelos governantes, “afinada com a

3.2 A política cultural do Estado brasileiro pós-

3.2.3 Lula e Dilma: democratização da cultura, atemporalidade política e o desafio do fomento cultural

A exposição das agendas públicas do governo Luís Inácio Lula da Silva até o governo Dilma Rousseff, 2016, buscou se assentar na bibliografia especializada sobre o tema. Mas, por se constituírem gestões recentes e a última ter sido interrompida pelo processo de

impeachment, a esse período atribuímos a denominação de uma história em construção – uma vez, ainda, que o período abordado por esta pesquisa vai até 2016.

Lula assume a presidência do Brasil em 2003, se (re)elege para um segundo mandato e permanece até 2010, nomeando como Ministro da Cultura o artista –músico Gilberto Gil. Tal política ocorreu pela ampla reformulação impetrada no Ministério da cultura, nas gestões de

Gilberto Gil (2003-2008) – e depois, na sucessão, com Juca Ferreira70(2008-2010) –, por meio

do Decreto 4.805, de 12 de agosto de 2003, pelo qual foram criadas a Secretaria de Articulação Institucional, a Secretaria de Políticas Culturais, a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, a Secretaria de Programas e Projetos Culturais, a Secretaria do Audiovisual e a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural.

Rubim (2010), ao analisar o governo Lula, diz que tal governo deu fim às três “tristes tradições culturais das políticas culturais nacionais no Brasil [...] as ausências, o autoritarismos e instabilidades” (RUBIM, 2007, 2008, 2010, p. 11, grifo nosso) e, assim, a cultura, na perspectiva em que foi desenhada, “passa a consagrar-se como política cultural de Estado e não de governo” (SILVA; COSTA, 2014, p. 171).

As ausências do Estado, teorizadas por Rubim (2007; 2008; 2010), são tanto no sentido de inexistência, mesmo, em sua idade mais antiga, quanto inexistência de modo de governar, ou seja, de não exercer seu poder de deliberação, deixando a cultura à mercê do mercado (modo neoliberal de governar), por intermédio do recurso às leis de incentivo. Esse é um dado importante e que contribui com o olhar do analista sobre as leis de incentivo e suas consequências.

O diálogo entre o Estado e a sociedade – fato que delimita as ‘ausências’ do Estado no passado das políticas culturais, segundo Rubim (2007; 2008; 2010) – ocorreu e pode ser observado em alguns resultados, tais como a proliferação dos encontros; seminários; câmaras setoriais; consultas públicas; conferências, inclusive culminando com as conferências nacionais de cultura, de 2005 e 2010, influindo na deliberação de programas e projetos e construindo, em conjunto com o Estado, políticas públicas de cultura. Já “o autoritarismo estrutural que impregna a sociedade brasileira foi enfrentado através da ampliação do conceito de cultura”, segundo diz Rubim (2010, p. 14) assentado no discurso do próprio ministro Gilberto Gil, em 2003, no MinC.

70 Nessa sua primeira gestão “à frente do Ministério da Cultura, Ferreira trabalhou na construção de importantes projetos de lei, como o do Vale-Cultura e do ProCultura, na modernização do direito autoral e principalmente na consolidação do Programa Cultura Viva, que busca fomentar atividades culturais já existentes por meio dos Pontos de Cultura e das manifestações culturais da diversidade brasileira” (BRASIL/MINC, 2014).

O conceito “antropológico” de cultura permitiu ao MinC ir além do patrimônio (material) e às artes (reconhecidas) e abriu “suas fronteiras para outras culturas: populares; afro-brasileiras; indígenas; de gênero; de orientação sexual; das periferias; audiovisuais; das redes e tecnologias digitais etc.”71 (RUBIM, 2010, p. 14).

Com uma sociedade opinando, definindo suas prioridades de demanda e, sob o conceito de cultura estendido - na perspectiva de construir uma política cultural capaz de mediar, democraticamente, as diferenças, a pluralidade, a diversidade – a política pública nestas bases encontra legitimidade e, desse modo, se instaura a estabilidade no lugar da ‘instabilidade’ (RUBIM, 2007; 2008; 2010), ou seja, as políticas públicas passam a autonomia de não depender da gestão de governo, passam a serem políticas de Estado, passam a ocupar um lugar de destaque nos arranjos políticos com vistas à contribuição para a formação de uma sociedade inclusiva, autônoma, produtora e protagonista de práticas econômicas, culturais e sociais mais justas.

Sobre isso não é difícil encontrar menções elogiosas e consideração de estudiosos das políticas culturais brasileiras afirmando que as efetivas políticas culturais, no país, somente ocorreram com o governo Lula. Cabral Filho e Chagas (2015, p. 309) alegam que o presidente Lula

atribui à política um novo papel, na organização e na consolidação das condições necessárias para se chegar a uma sociedade brasileira mais justa, democrática e mais ética. Garante, a partir das diferenças e especificidades do povo brasileiro, uma mediação que levasse em conta as necessidades dos diversos grupos que a compõem, e que historicamente foram oprimidos, como os negros, os índios e a classe trabalhadora em geral.

A ampliação do orçamento do MinC foi outro desafio, assim como o próprio Programa Cultura Viva, que através de seus ‘pontos’ e ‘pontões de cultura’ invadiu o Brasil, não deixou de apresentar questionamentos. Seus problemas foram atribuídos a dificuldades de gestão e à fragilidade dos novos agentes em atender a certas normas administrativas, como as complexas prestações de conta (CALABRE, 2015, p. 16).

Os programas e a Política Cultural brasileira tiveram muita visibilidade na gestão do ministro Gilberto Gil e de seu sucessor no ministério, com ações do tipo: a iniciativa e pro atividade do Estado no registro da cultura e a atitude de ter colocado em pauta o tema da

71 “São exemplos desta atuação: a tentativa de transformar a Ancine em Ancinav; o projeto Doc-TV, que associa o Ministério à rede pública de televisão para produzir e exibir documentários em todo o País; o projeto

Revelando Brasis; os editais para jogos eletrônicos; o apoio às paradas e à cultura gay e outras manifestações identitárias; os seminários nacionais de culturas populares; o debate sobre televisão pública etc.” (RUBIM, 2010, p. 14-15)

revisão das leis de incentivo – estas que vigoravam como modalidade majoritária de financiamento à cultura no país, deixando, consequentemente, a cultura nas mãos do mercado. Em discurso do ministro Gilberto Gil na solenidade de transmissão do cargo, em 2003, ele mesmo diz que é preciso mudar a lógica das leis de incentivo:

o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à lógica do mercado - que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos (BRASIL, 2003).

Apesar de afirmar como atitude elogiosa, do governo Lula, o rompimento com as ‘‘três tristes tradições brasileiras: ausências, autoritarismo e instabilidade”, Rubim (2010, p. 13) critica o MinC afirmando que, nessa gestão, o mesmo foi tímido e insuficiente em debater o seu próprio papel (de Estado) na contemporaneidade no campo da cultura, ficando apenas algum registro dessa tentativa, no Plano Nacional de Cultura.

Por outro lado, a transversalidade do conceito de cultura amplia para além dos limites a capacidade de um ministério dar respostas satisfatórias à sociedade e o fato já começa a ser preocupante (um desafio?). Então, dois problemas hão de ser resolvidos: 1) uma reflexão teórico-conceitual e ao mesmo tempo política acerca da noção e do campo de atuação do ministério; e, 2) a questão do lugar de cada ‘criador’ (o artista, o cientista) que, Rubim (2010, p. 14) traduz como “a construção de uma política específica para os criadores, que defina com clareza, justiça e relevância, o novo lugar a ser ocupado, em especial pelos artistas e cientistas, no cenário da cultura e principalmente das políticas culturais executadas”.

Para a superação da instabilidade – considerada por Rubim (2010) como descontinuidades, fragilidades institucionais, repressão etc. – o MinC, tomando como exemplo o Sistema Nacional de Saúde (SUS), apostou na implantação e desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura (SNC) – somente aprovado em 2012 –, no Plano Nacional de Cultura (PNC), e na aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 150 – investida que deu certo –, pois tendo o planejamento do referido plano uma validade de prazo decenal, a possibilidade de continuidade das políticas cresce e com isso diminui a instabilidade.

O Sistema Nacional de Cultura (SNC), à semelhança de outros sistemas de políticas públicas, pensado e amadurecido desde o governo Lula (apesar de não institucionalizado

neste), foi o instrumento criado pelo MinC com fins na gestão compartilhada, democrática e participativa de políticas públicas de cultura entre União, Distrito Federal, estados, municípios e a sociedade civil. Sua aprovação e promulgação pelo Congresso Nacional, através da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012, instituiu o Sistema Nacional de Cultura, “assegurando juridicamente a implementação do Sistema Nacional de Cultura, com definição da sua natureza, objetivos, princípios, estrutura e componentes” (MINC, 2012, p. 11).

Isto significa criar programas/políticas culturais de prazos médios ou longos, portanto não submetidas às intempéries conjunturais.

É no exercício dessas práticas que a cultura adquire, a partir da gestão Lula, seu papel fundamental de protagonizar a construção do país com bases na Constituição Cidadã que almejou garantir a preservação da identidade, da cidadania e da superação da exclusão social.

O governo de Dilma Rousseff (de 2011 a 2016) deveria ter vindo marcado pela continuidade dos programas iniciados na gestão do governo anterior, pois vinha representando o mesmo projeto político e, pela renovação de tais políticas culturais; no entanto, a realidade não se deu totalmente dentro dessa expectativa.

No primeiro mandato, as políticas culturais empreendidas por seu governo foram através das ministras Ana de Hollanda (2011-2012) e Marta Suplicy (2012-2014). Estiveram presentes nesse mandato o programa Cultura Viva, das políticas de audiovisual, das culturas digitais, das conexões entre cultura e educação. A dramática convivência de continuidades e rupturas marcou o primeiro mandato de Dilma no campo cultural. Segundo Calabre (2015, p. 18),

O PNC, aprovado com 14 diretrizes, 36 estratégias e 275 ações foi retrabalhado, de modo participativo e criterioso, com a definição focada de 53 metas a serem alcançadas em 10 anos (BRASIL, 2012). Isto tornou mais viável sua efetiva implantação, desafio colocado para a gestão Dilma e para o primeiro governo pós- Dilma, pois o PNC tem validade até 2020.

O Sistema Nacional de Cultura (ao qual o PNC mantém relação de interdependência), ainda embrionário naquele momento, não ofereceu o suporte suficiente para que o PNC se implantasse plenamente. A aprovação do SNC pelo Congresso Nacional em 2012, sendo incluso na Constituição Federal, seria o momento privilegiado para a impulsão do sistema e consolidação do plano se não fosse a morosidade da regulamentação da lei no trâmite entre o Ministério da Cultura e a Casa Civil.

Os desafios da gestão foram de várias ordens: urgiu a necessidade de implantar novas modalidades de financiamento sintonizadas com as políticas de diversidade cultural, que tivessem a capacidade de universalizar o atendimento às múltiplas demandas das comunidades e personalidades, naquele momento convidadas a participar de tais políticas culturais e ainda não concretizadas neste governo Dilma.

A ampliação do financiamento cultural, via Fundo Nacional de Cultura, foi outro desafio. Aumentar o volume de recursos destinados à cultura (2% do federal, 1,5% dos estaduais e 1% dos municipais – previsto na PEC 150) – “o (des)prestígio do Ministério no governo Dilma pode ser medido pelo baixíssimo orçamento destinado e executado em 2014. Assim, novas alternativas de recursos devem ser acionadas e imaginadas” (CALABRE, 2015, p. 22).

O lugar estratégico da Cultura Viva na ampliação da base social do Ministério nunca foi devidamente compreendido pelas gestões de Ana de Hollanda e Marta Suplicy. [...] O programa quase entrou em colapso, com evidentes riscos de retrocesso. A aprovação da Lei Cultura Viva pelo Congresso Nacional, apesar de sua relevância, enfrenta, com limitações, este tema. A meta, inscrita no PNC, de alcançar 15 mil Pontos de Cultura em 2020 parece comprometida, caso não aconteça uma urgente e ágil revisão destes processos (CALABRE, 2015, p. 22).

A concepção inicial do Programa Cultura Viva, construído primeiramente sem contemplar os entes federados como cogestores, mas apenas como programa do Ministério, foi depois modificado incluindo os estados e alguns municípios, no redesenho institucional do governo Dilma, entretanto eles, a princípio, foram alijados e somente recompostos de volta, após reivindicações. Isso precisou ser equacionado de maneira mais satisfatória.

Apesar desse panorama, graças à equipe do ministério, a continuidade de programas relevantes não foi a colapso total, a exemplo do PNC e do SNC; os esforços de potencializar outros, como a interação entre cultura e educação; e, o pioneirismo inaugural em algumas dimensões, como, por exemplo, na economia criativa. Segundo algumas bibliografias de avaliação do campo cultural, o patamar alcançado com Gil e Juca foi rebaixado nesse governo e as políticas culturais subsistiram pela potência de sua assimilação pela sociedade e pela persistência de alguns dirigentes, referida acima. O MinC voltou a patamares que se imaginava estarem superados. Segundo Calabre (2015, p. 28) “A depressão do patamar alcançado pelo Ministério, sobremodo, afeta o espaço da cultura no processo de transformações democráticas em curso no Brasil”.

E, por fim, para completar um quadro já balizado como insatisfatório para a continuidade do desenvolvimento no campo cultural, soma-se a esse o processo de

impeachment da presidenta Dilma, sobre o qual se considera um atentado contra a democracia e o Estado de direito, assim como traz ao campo cultural e à sociedade uma incógnita sobre o futuro da política cultural brasileira.

Com o afastamento da presidente Dilma, se instalou uma situação desestabilizante na sociedade brasileira de forma geral. O então presidente, quando ainda permanecia interino, Michel Temer – que assumiu nesta condição em 11 de junho de 2016 –, num de seus primeiros atos, extinguiu o MinC, dando-lhe o status de uma secretaria dentro do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

Porém, sob pressão política, manifestações com ocupações de prédios e equipamentos culturais, por parte da sociedade civil, por todo o Brasil, o presidente em exercício resolve pela recriação do Ministério.

A decisão de recriar o Minc é um gesto do presidente Temer no sentido de serenar os ânimos e focar no objetivo maior: a cultura brasileira. [...] Com Marcelo Calero vamos trabalhar em parceria para potencializar os projetos e ações entre os ministérios da Educação e da cultura", publicou o ministro na rede social (GLOBO-G1, 2016).

Considerando toda a retrospectiva da agenda política brasileira perante aos acontecimentos, a colocação que se faz é que, devido à instabilidade política na qual o Brasil se encontrou submerso, qualquer apreciação sobre o futuro das políticas públicas de cultura (como de qualquer outra) em 2016 se tornou arriscada e mera suposição.

Até foi possível prever, em linhas gerais, uma possível política de Estado de caráter neoliberal sendo articulada – através das práticas que vinham sendo operadas –, porém não tinha como ser preciso numa prospecção sobre as “novas” estratégias de implementação e outros desmembramentos a partir dali. De certo, nesse aspecto, é que se retorna ao estado de “instabilidade” da “triste tradição” brasileira considerada nos estudos de Rubim (2010).