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A Pedagogia da autonomia e da esperança de Paulo Freire

Capítulo II – A PEDAGOGIA DA INFÂNCIA NA TRANSFORMAÇÃO

2. Contextos participativos: a voz da criança e a intencionalidade pedagógica

3.3. A Pedagogia da autonomia e da esperança de Paulo Freire

Paulo Freire foi um pedagogo comprometido com a educação popular56, concebendo-a como instrumento de conscientização que capacita os mais desfavorecidos, tanto para a aprendizagem como para a sua libertação enquanto cidadãos (Gadotti, 2003). Apesar de não se ter debruçado especificamente sobre a educação das crianças, algumas das suas ideias contribuem para uma reflexão profunda sobre a pedagogia da infância e sobre a práxis que se desenvolve nos contextos. As suas concetualizações, em torno da formação de professores, constituíram-se como uma fonte inspiradora para o processo de formação em contexto que se apresenta neste estudo.

A primeira ideia que recolhemos da teorização freiriana relaciona-se com a ideia de que o homem é um ser incompleto, inacabado. Como explica o autor “o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital” (Freire, 1996, p.22). Nesta aceção o homem é um ser ativo que constrói o seu conhecimento desde que nasce e ao longo de toda a sua vida, na relação com o meio que o rodeia e com os outros. Esta ideia tem como primeira consequência, para este estudo, a visão de que a criança não é um ser à espera de vir a ser, mas antes uma etapa do ser inacabado, inconcluso, que vive, testemunha e constrói, através das experiências que realiza no mundo, “onde se faz gente”, construindo significados sobre o mesmo. Mas, para Freire (1996), a “experiência de existir” envolve necessariamente a linguagem, a cultura, a comunicação. Valoriza-se, nesta perspetiva, o papel do Homem como construtor da sua história num projeto pessoal e coletivo, carregado de possibilidades e ontologicamente consciente do seu inacabamento, “alicerçado num permanente movimento de busca e de ser mais“ (Mendes, 2009, p.70).

Reconhece Freire (1997a) que o conhecimento é um processo criador que emerge através da invenção e reinvenção do questionamento inquieto e impaciente, mas esperançoso. Nesta aceção o conhecimento não se reduz a uma mera transferibilidade de saberes, mas aspira à transformação do sujeito cognoscente, porque transforma tanto aquilo que se conhece

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Paulo Freire, preocupado com as profundas desigualdades sociais que se observavam no Brasil compromete-se com a educação popular, designadamente com os mais desfavorecidos, aqueles que não têm voz e que designa por oprimidos.

97 como o conhecedor. Compreende que a situação gnosiológica é aquela em que o ato de conhecer não termina no objeto cognoscível, mas que se estende pela comunicação a outros sujeitos, igualmente cognoscentes (Freire, 1996), sendo a relação dialógica “o selo do ato cognoscitivo, em que o objeto cognoscível, mediatizando os sujeitos cognoscentes, se entrega a seu desvelamento crítico” (Freire, 1981a, p.116).

Daí que o pedagogo critique a educação bancária, normalizadora, bem como a naturalização das relações sociais e da valorização de uma determinada perspetiva de ver o mundo como visão única (Freire, 1997b). A questão gnosiológica em Paulo Freire (1981a; 1997a) reflete-se nas relações homem-mundo, educador-educando, ensino-aprendizagem, teoria-prática, objetividade-subjetividade. Salienta que para conhecer é necessário que o homem se situe no universo o que reflete uma visão integradora da aprendizagem, porque visa a compreensão multidimensional do humano (Gadotti, 2007). Para Freire (1997b)

a compreensão crítica do crescer entre nós, existentes, é que, ‘programados para aprender’, vivemos ou experimentamos ou nos achamos abertos a experimentar a relação entre o que herdamos e o que adquirimos. Tornamo-nos seres gene-culturais. Não somos apenas natureza nem tampouco somos apenas cultura, educação, cognoscitividade. Por isso, crescer, entre nós, é uma experiência atravessada pela biologia, pela psicologia, pela cultura, pela História, pela educação, pela política, pela estética, pela ética (p.84).

Compreende-se, nestas múltiplas integrações e conexões, a forma como a perspetiva freiriana “dá voz à complexidade” (Pintassilgo, 1998, p.11).

Segundo Scocuglia (2005) a conceção freiriana de que “o homem é um ser de relações que estando no mundo é capaz de ir além, de projetar-se, de discernir, de conhecer” (p.82) tem implícita a ideia que os processos de aprendizagem são contextualizados, influenciados pela cultura e pela experiência de vida dos atores educacionais que estão envolvidos nessa construção de saber. Na visão de Paulo Freire (1996) o que cada um aprende depende das condições de aprendizagem que possui, daí que seja necessário atender às diferentes comunidades com as quais a criança interage. Mas, o facto de se estar condicionado não significa que se esteja determinado, porque, para o autor, uma das verdadeiras vantagens dos seres humanos é ter-se tornado capaz de ir além das suas condicionantes fazendo emergir a “experiência realmente fundante do aprender” (Freire, 1996, p.13). Esta ideia constitui-se como um princípio para pensar a pedagogia da infância, porque remete para a necessária consideração ética de pensar a diferença das crianças, enquanto possibilidade de integração, de aprendizagem na diversidade sociocultural. Esta aceção realça a ideia de que a construção do conhecimento é, ao mesmo tempo, afetiva e social (Gadotti, 2007) sustentada numa relação dialógica e contextual.

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Na perspetiva freiriana acentua-se a aprendizagem enquanto processo aberto e dialógico entre os interlocutores permitindo construções reciprocas (Freire, 1997a). Estas ideias têm consequências na pedagogia da infância, uma vez que desafiam a assimetria das relações entre educadores e crianças, impelindo à construção de um relacionamento mais democrático e dialógico. Aponta-nos o caminho para a pedagogia do diálogo que implica dar e receber emoções, experiências e conhecimento, de forma recíproca entre adultos e crianças. As experiências educativas surgem como um mundo de possibilidades onde a criança pode experimentar relações humanas significativas e, a longo prazo, desenvolver por si só essas mesmas relações (Dahlberg, Moss & Pence, 2003). Como nos informa Freire (citado por Shor & Freire, 1986)

a educação dialógica parte da compreensão que os alunos têm de suas experiências diárias [e] a partir de sua descrição sobre suas experiências da vida diária baseia-se na possibilidade de se começar a partir do concreto, do senso comum, para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade (p.69).

Recolhemos daqui, para este estudo, a ideia de que a comunicação entre as crianças e os educadores é um elemento fundamental no processo de aprendizagem. Ao comunicar as suas experiências a criança revela-se, fala do que sabe e da forma como aprendeu, fica disponível para questionar a realidade, posicionando-se sobre ela e permitindo que os outros participem das suas construções. Reconhece-se que as crianças são seres humanos com direitos que devem ser ouvidas sem lhes impor uma forma única de ver o mundo. Neste sentido, o diálogo constitui-se como uma práxis social através da qual as crianças se vão apropriando da realidade, instigadas pelos educadores a formular hipóteses e a pensar sobre as suas significações, o que supõe ação e reflexão (Freire, 1981a).

Como advoga Paulo Freire (1979a) para que cada um possa participar na transformação da realidade precisa de auxílio para “tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformá-la” (p.22). Esta aceção tem duas implicações para este estudo. Por um lado, a compreensão de que o educador se compromete com a coconstrução do conhecimento das crianças, desafiando a sua curiosidade e criatividade para encontrar novas possibilidades de ação em situações complexas. Por outro, esta relação permite ao educador reconstruir a suas ideias sobre as crianças e sobre a situação educativa, tomando consciência das suas opções pedagógicas. Esta atitude implica reflexividade permanente e abertura, compreendendo que as possibilidades de mudança se configuram nas relações dialógicas. E, como explicita Freire (1996), “o educador também precisa de ser educado”, procurando demonstrar a dialética que existe entre o ensinar e o aprender. Compreende-se assim, que o educador é um aprendiz permanente e que aprende em companhia com as crianças, com os colegas e as comunidades. Mas não aprende no vazio, aprende ao projetar a sua ação numa

99 atividade reflexiva, consciente que “envolve intencionalidade, temporalidade e transcendência” (Freire, 1981a, p.53).

A educação é, desta forma, conscientização, enquanto processo “pelo qual, na relação sujeito-objeto (…) o sujeito se torna capaz de perceber, em termos críticos, a unidade dialética entre ele e o objeto” (Freire, 1981a, p.113). A conscientização freiriana revela a pessoa, consciente de si própria, integrada no seu contexto natural e social que reflete sobre esse contexto que, ao envolver-se nele e com os outros, realiza ações. Situa-se na rede complexa de uma realidade espacial, temporal e relacional. No processo de passagem à consciência crítica “a realidade de cada pessoa aparece-lhe como objeto, como uma relação a que faz face e não já como um meio em que se dilui” (Pintassilgo, 1998, p.13).

Neste sentido não há conscientização fora da práxis, fora da unidade teórico- prática, da reflexão-ação. A práxis é sempre animada por valores e por sistemas de pensamento. A teoria só se consolida e confirma na prática assumida e refletida (Pintassilgo, 1998). A práxis freiriana é entendida como unidade indissolúvel entre a ação e a reflexão do homem sobre o mundo, salientando a capacidade que o homem tem de agir sobre o mundo e de o transformar (Freire, 1979).

Salienta-se, assim, a importância de uma educação conscientizadora na qual o educador e educando são sujeitos em diálogo na construção do conhecimento. Como afirma Gadotti (2007 “a educação conscientizadora é problematizadora, crítica e prioriza o diálogo, o respeito, o amor, o ato de criação e recriação, partindo do estudo em ‘círculo cultural’, das situações-problema retiradas da realidade do educando” (p.35).

Recolhemos, para este estudo, um conceito amplo de círculo de cultura57, enquanto

espaço onde todos educadores, crianças, famílias e comunidade são convidados a participar num processo de conscientização sobre a realidade que os envolve e que necessita ser problematizada. Decorre daqui a importância da construção de comunidades de aprendizagem que não se restrinjam à sala de atividades, porque todos (educadores, crianças, famílias e comunidade) necessitam de apoio para desocultar a realidade, descobrindo temas geradores58 a partir dos quais possam chegar à compreensão de que não há relações de causa efeito biunívocas, mas tudo é simultaneamente causa e efeito numa imbricada teia de relações múltiplas.

57“Os Círculos de Cultura de acordo com Paulo Freire (1980) são “centros em que o povo discute os seus problemas, mas

também em que se organizam e planificam ações concretas, de interesse coletivo” (p 141-142).

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Paulo Freire explica a sua conceção de tema gerador, nos livros Pedagogia do Oprimido (1970) e Acção cultural para a liberdade (1981a). A sua proposta educativa (de alfabetização) parte da análise da realidade e da situação em que o aprendente se encontra. Através do diálogo surgem os Temas Geradores, extraídos da problematização da prática de vida dos educandos. Segundo Freire (1970) o importante não é transmitir conteúdos específicos, mas despertar uma nova forma de relação com a experiência vivida. Estes temas são geradores porque qualquer que seja a natureza da sua compreensão, ou a ação por eles provocada, contém em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas.

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Esta ideia tem implicações na formação dos educadores, uma vez que apela para a construção de espaços e tempos de trabalho, de pesquisa e problematização das práticas e vivências, utilizando o diálogo e as experiências reais vividas como ponto de partida para a reflexão. Espaços e tempos nos quais todas têm liberdade de se expressar, “ler e escrever o mundo” em que estão inseridas, ressignificando as suas práticas e conceções. Parte-se do princípio freiriano de que a mudança é difícil, mas é possível (Freire, 1997a), compreendendo que, para mudar, em primeiro lugar é necessário tornar consciente as práticas que cada um desenvolve, apoiando-as no seu esforço conscientizador. A pedagogia freiriana imbuída de um sentido holístico e integrador funda-se numa conceção democrática da educação e aponta os saberes que considera necessários à prática educativa democrática.

O pedagogo lembra, em “Pedagogia da Autonomia” (Freire, 1996), a importância da

rigorosidade metódica que permita aos educandos aproximarem-se do conhecimento com

atitude crítica face ao mesmo. De acordo com Freire (1996), esta rigorosidade só é possível quando os educadores e os educandos são “criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes” (p.13). No entanto, o autor afirma a necessidade de criar condições para que tais disposições floresçam. Valoriza a pesquisa como meio de conhecer o que ainda não se conhece e comunicar ou anunciar a novidade, considerando que “faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O que se precisa é que em sua formação permanente, o professor se aperceba e se assuma, porque professor, como pesquisador” (p.14).

Uma conceção democrática da educação implica, para Freire (1996), e como salientamos anteriormente, o respeito pelos saberes do educando, como condição importante para a construção da sua identidade cultural, ensaiando a experiência profunda de “assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos” (p.18). Mas implica também a atenção à ética e à estética das relações alicerçadas no respeito, na integridade, na negociação e na construção de olhares plurais sobre o mundo. Exige, por isso, o respeito pela autonomia do educando, enquanto imperativo ético que permite que as crianças “aprendam e cresçam na diferença, sobretudo no respeito por ela” (p.25). A este propósito o autor critica a atitude autoritária dos professores afirmando que

o professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza (...) transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (p.25).

Os princípios éticos da educação preconizada por Paulo Freire (1996, 1997a) assentam numa pedagogia do diálogo que apela para a necessidade de saber escutar. Como sustenta o autor “o educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes

101 necessário ao aluno em uma fala com ele” (Freire, 1996, p.43). E é a partir desta escuta que o educador poderá apoiar as crianças nas leituras que fazem do mundo, pois só escutando se compreendem as significações construídas e os caminhos a seguir. Neste sentido, a ideia de currículo presente na pedagogia freiriana, ultrapassa a mera narração dos conteúdos programáticos que coloca o educador na posição de narrador e os educandos na posição de ouvintes, para se situar numa ideia democrática de currículo construído a partir da reflexão coletiva e problematizadora que faz emergir uma aprendizagem coconstruída (Freire, 1970).

Na esfera dialética em que se constrói o ensino-aprendizagem, preconizado por Freire (1996, 1997b), impõe-se a reeducação dos educadores enquanto agentes do processo de resignificação pedagógica, da assunção da sua atividade profissional como um compromisso social e ético. Para Freire (1978)

o educador deve ser um inventor e um reinventor constante dos meios e dos caminhos com os quais facilite mais e mais a problematização do objeto a ser desvelado e finalmente apreendido pelos educandos. Sua tarefa não é a de servir-se desses meios e desses caminhos para desnudar, ele mesmo, o objeto e, depois, entregá-lo, paternalisticamente, aos educandos, a quem negasse o esforço da busca, indispensável, ao ato de conhecer (p.13).

Nesta linha de análise uma pedagogia problematizadora é uma pedagogia em constante renovação e, nesse sentido, emancipadora e esperançosa, porque não paralisa no conformismo, realizando-se antes na descoberta quotidiana de novas possibilidades.

Emerge da proposta de Paulo Freire (1970, 1981a, 1981b, 1996, 1997a, 1997b) um conceito de pedagogia holística, integradora, contextual, realizada na práxis, que demanda uma profunda transformação paradigmática, fundada numa leitura contínua e crítica do mundo que, quotidianamente, estimula o pensamento e a ação educativa.

A leitura dos princípios pedagógicos freirianos (1970, 1978, 1979, 1981a, 1981b, 1996, 1997a, 1997b) favoreceu a construção de olhares mais amplos sobre o conceito de criança, enquanto agente construtor do seu conhecimento, cuja educação deve ser pensada a partir das suas condições existenciais. Sob esta influência concetual, compreendemos que a ação pedagógica dos educadores não poderá ser neutra, assentando, antes, em pressupostos de intencionalidade ética e democrática, onde o respeito pela diferença se constitui como uma possibilidade de aprendizagem e uma construção cooperada.

Esta perspetiva tem consequências importantes na formação dos educadores, pelo caráter isomórfico de que se reveste. Acreditamos que a indagação, a dialogia, e a escuta, enquanto método de desocultação da realidade profissional, construída cooperadamente, contrariará uma postura pedagógica conformante e conformadora da realidade, ajudando os educadores a posicionar-se criticamente face às suas práticas pedagógicas, fazendo do quotidiano educativo uma experiência sempre renovada. Neste sentido, a formação a partir das

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condições contextuais dos profissionais configura-se como um compromisso social e organizacional com a mudança.

Ao anunciar as estruturas humanizantes fundadas na dialogicidade, na escuta e na conscientização, a pedagogia assume o seu caráter emancipador e transformador, porque agenciam os educadores, as crianças e as suas famílias na construção de uma outra realidade possível (Freire, 1970).