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CAPÍTULO 1 – PRINCÍPIOS TEÓRICOS DA PESQUISA

1.3 Concepções de aprendizagem

1.3.1 A perspectiva sociocultural

Nesta seção, discuto as bases teóricas da concepção sociocultural de aprendizagem e sua importância na organização do pensamento (LEONTIEV, 1983, p. 67). Tal perspectiva enfoca os processos psíquicos como produzidos histórica e socialmente (DUARTE, 2006, p. 13). Segundo Vygotsky, toda a função psíquica superior passa por uma etapa externa de desenvolvimento, uma vez que a função, em princípio, é social (VYGOTSKY, 1995, p. 150). Desse modo, para a escola de Vygotsky, o conceito de social remete à própria atividade social do ser humano (Ibid., p. 150-151).

Todas as funções psíquicas superiores são relações internalizadas de ordem social, são o fundamento da estrutura social da personalidade. Sua composição, estrutura genética e modo de ação, em uma palavra, toda sua natureza é social; inclusive ao converter-se em processos psíquicos segue sendo quase-social5 (Ibid., p. 151) (tradução nossa).

Assim, Vygotsky destaca o papel preponderante do ambiente (os artefatos socioculturais e os sistemas simbólicos da sociedade, em particular a linguagem) no desenvolvimento intelectual da criança (LEONTIEV, 1983, p. 134-135). Nesse sentido, ao interagirmos com o outro, internalizamos atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas (VYGOTSKY, 1995, p. 150-151). O processo de internalização passa a ser percebido como reconstrução interna de uma operação externa (Ibidem).

O processo interativo acontece, portanto, em um dado enquadre social, e a ação do indivíduo no mundo mantém uma relação de interdependência com o

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Todas las funciones psíquicas superiores son relaciones interiorizadas de orden social, son el

contexto sociohistórico no qual acontece. Isso significa dizer que essa ação jamais será ideologicamente neutra. De outro modo, não pronunciamos “palavras, mas verdades e mentiras, coisas boas e ruins”, ou seja, a palavra está sempre carregada de um caráter ideológico (BAKHTIN, 1990, p. 86).

Cada enunciado que produzimos revela a nossa posição em relação aos interlocutores envolvidos, sinalizando nossa posição social dentro da interação imediata e em resposta a forças sociopolíticas mais amplas6 (ZUENGLER & MILLER, 2006, p. 42) (tradução nossa).

Outro aspecto relevante relacionado à dimensão interpessoal da linguagem refere-se ao seu “potencial de significação” (meaning potential), que pode ser observado já nas primeiras trocas entre a criança e os adultos mais próximos a ela com o objetivo primário de manutenção da interação social (HALLIDAY, 1989, p. 5). Halliday propõe interpretarmos o “potencial de significação” como “o que se pode dizer” em oposição a uma visão da linguagem como agrupamento de regras, ou seja, “o que se deveria dizer” (VAN LEEUWEN, 1996, p. 32). Em última instância, as formas lingüísticas utilizadas em um dado contexto afetam o modo como o aprendiz entende e usa a linguagem (HALLIDAY, 1989, p. 15). A linguagem não nasce, portanto, espontaneamente, de uma tendência natural da criança: é fomentada por sua participação na interação social (Ibid., p. 5).

Nesse sentido, a linguagem deixa de ser apenas estruturada pela atividade social e passa também a ser estruturante das nossas ações no mundo (MORATO, 2004, p. 317). Assim, é uma ação humana ao mesmo tempo em que é afetada por ela (Ibidem). Esse ponto de vista dialético valoriza o papel do outro, que contribui para regular nossas ações em sociedade (LEONTIEV, 1983, p. 191-192). Bakhtin (1990, p. 94) já salientara, ainda em 1929, a importância do outro na interação, no diálogo, sendo este o princípio construidor do discurso, da linguagem.

O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc. [...] Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade (grifos do autor) (BAKHTIN, 1990, p. 112-113).

6Every utterance we produce reveals our stance toward the interlocutors involved, signaling our social

positioning within the local interaction and in response to larger sociopolitical forces6 (ZUENGLER &

Nessa perspectiva, passamos a perceber a interação não apenas como comunicação ou troca de informações, mas como prática social, que é mediada pela linguagem, tendo, portanto, os sujeitos e a atividade social como elementos constitutivos do discurso (BRAIT, 2002, p. 129). Essa relação dialética descortina os processos de reflexão e ação subjacentes e intrínsecos à natureza da ação e da interação humana (MORATO, 2004, p. 326).

[...] o processo de evolução das espécies dotou o homem de capacidades comportamentais particulares, permitindo-lhe criar instrumentos mediadores de sua relação com o meio [...] é a reapropriação, no organismo humano, dessas propriedades instrumentais e discursivas [langagières] de um meio, agora sócio-histórico, que é a condição da emergência de capacidades auto-reflexivas ou conscientes que levam a uma reestruturação do conjunto do funcionamento psicológico (BRONCKART, 1999, p. 27).

Essa postura dialógica traz à tona o conceito também vigotskiano de Zona de Desenvolvimento Proximal ou Próximo7 (ZDP) e nos leva à discussão do processo interpessoal da aprendizagem. Segundo Hedegaard (1996, p. 341), a ZDP relaciona uma perspectiva psicológica geral acerca do desenvolvimento do indivíduo a uma perspectiva pedagógica sobre a instrução. Em Vygotsky (2001, p. 241-243), o desenvolvimento de qualquer capacidade individual de desempenho representa um relacionamento mutável entre a regulação social e a auto-regulação, representados respectivamente pelos conceitos “Zona de Desenvolvimento Próximo” e “Nível de Desenvolvimento Atual” (Ibid., p. 241). O primeiro, portanto, refere-se ao que o aprendiz faz com a ajuda de outros, e o segundo, ao que já é capaz de fazer sozinho (Ibid., p. 239).

No desenvolvimento da proposta de intervenção colaborativa (Fase 2 desta pesquisa), levamos em consideração que as participantes (professoras pré e em serviço), seus alunos na escola pública e esta pesquisadora encontravam-se sempre em algum ponto entre a regulação social a autoregulação (VYGOTSKY, 2001, p. 241-243). Essa caminhada é, portanto, cíclica e está visualmente representada no esquema (Figura 1.1) proposto por Gallimore & Tharp (1996, p. 180):

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Adotamos, neste trabalho, o termo Zona de Desenvolvimento Próximo e Nível de Desenvolvimento Atual, uma vez que tomamos como referência teórica os textos de Vygotsky (2001, 1995) em

Figura 1.1 – A gênese de uma capacidade de desempenho: avanços para além da zona de desenvolvimento proximal (GALLIMORE & THARP,1996, p. 180).

Estágio I: O desempenho assistido pelo outro, via de regra mais capaz, mas não necessariamente;

Estágio II: O desempenho auto-assistido, quando o indivíduo já é capaz de desempenhar uma tarefa sem assistência externa;

Estágio III: O desempenho desenvolvido, automatizado e fossilizado, quando a execução de tarefas já foi interiorizada e automatizada; e

Estágio IV: O retorno ao estágio I, quando se deseja iniciar a aprendizagem de uma nova tarefa.

Tudge (1996, p. 164-165) questiona a afirmação de que o sucesso do desenvolvimento cognitivo está única e exclusivamente representado pela troca com indivíduos mais capazes – os adultos, no caso da aprendizagem infantil. Ele argumenta que pesquisas neo-vigotskianas têm mostrado a importância do envolvimento ativo de participantes (de nível de desenvolvimento semelhante) na resolução de problemas, indicando que o desejo de alcançar uma solução e a colaboração têm sido cruciais para o desenvolvimento cognitivo. Esse argumento também é levado em conta ao configurarmos o processo reflexivo com as participantes da Fase 2 desta investigação, uma vez que, apresentando níveis de desenvolvimento semelhante, pela mútua colaboração, igualmente avançam pela ZDP na (re)configuração de sua prática pedagógica na sala de aula de língua

inglesa.

Isso ocorre porque a colaboração com outros leva ao desenvolvimento de “formas culturalmente apropriadas” (TUDGE, 1996, p. 153). A linguagem, portanto, é tratada a partir de uma perspectiva social e histórica, uma vez que seu desenvolvimento está relacionado “às atividades e tradições determinadas societariamente” (HEDEGAARD, 1996, p. 343).

Desse modo, a teoria sociocultural desloca o foco da cognição individual, que será discutido na Seção 1.3.3, na perspectiva cognitivista, para a interação social e passa a perceber a linguagem como interação no processo de construção do sujeito (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2005, p. 35-36), considerando “os fatos da linguagem como traços de condutas humanas socialmente contextualizadas” (BRONCKART, 1999, p. 23), perspectiva subjacente às atividades didáticas produzidas pelo grupo focal (Exemplo 1).

Exemplo 1: Exercício centrado na atividade social.8 Class 1:

Answer the following questions and check with your colleagues if they have similar answers:

1. What supermarket(s) do you go to? ……….. ……… 2. How often do you go to the supermarket? ( ) every day ( ) twice a week ( ) once a week ( )……… 3. What do you normally buy? Make a List:

………. ………. ……… ………. ………. ……… ………. ……….. ……… 4. Draw a map of your favorite supermarket from the inside and identify the sectors: grocery, bakery, dairy products….

Put some of the products from your list in the sectors you have located in your map.

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Esse excerto foi retirado de uma das atividades produzidas pelas participantes desta pesquisa para a 7ª série (Apêndice S), sob a temática Cidadania (Gênero focalizado: Compra e venda de produtos;

Class 2:

1. Using the map from last class, role play another dialogue with two other classmates. Each of you will be: the customer, the sales assistant, the cashier. Consider you have to go through the following steps: 1) greetings, 2) asking for products, 3) asking and answering about prices, 4) product delivery, 5) thanking, 6) saying goodbye.

Language used to purchase in the supermarket:

Isso significa dizer que a linguagem, ao se constituir sociohistoricamente, deixa de ser apenas produto e passa a ser entendida também como processo (ZUENGLER & MILLER, 2006, p. 36; LANCASTER & TAYLOR, 1992, p. 256-257). Todavia, o reconhecimento dessa interface não garante o desmascaramento de tais desigualdades. Ao contrário, Fairclough (1989, p. 5) lembra, ao conceituar o “estudo crítico da linguagem”, que precisamos tornar explícitas as conexões entre linguagem, poder e ideologia que, na maioria das vezes, se encontram escondidas na forma de crenças, no senso comum. Essas crenças legitimam relações sociais e diferenças de poder pela simples recorrência de comportamentos familiares e rotineiros (Ibid., p. 2). Neste trabalho, consideramos, portanto, que subjacentes a qualquer pedagogia, relações de poder estão constituídas e legitimadas, podendo estar a serviço da manutenção de desigualdades sociais (BENESCH, 2001).

Desse modo, as ações de pesquisa (discussões teóricas, reflexões acerca

1) Starting a

conversation/greetings

Excuse me Hello Hi

Can you help me, please? Could you help me, please?

2) Asking for products

Where are the fruits, please? Where is the bakery,

please?

Where can I find meat, please?

Some directions

Turn left/right Go straight

The fruits are on the top shelf

The bakery is in front of the meat section

3) Asking/answering about prices

How much does it cost? How much is it? It’s 20 dollars.

4) Product Delivery

Here you are There you go

5) Thanking

- Thanks; thank you very much

- You’re welcome!

6) saying goodbye

das ações em sala de aula, produção do material didático9) procuraram desenvolver uma metaconsciência no sentido de descortinar essas relações entre linguagem e poder (FAIRCLOUGH, 1989, p. 4; KUMARAVADIVELU, 2006a, p. 143). Assim, buscam discutir em que medida a atividade social (e a linguagem, por conseguinte) contribui para a dominação de uns sobre os outros (FAIRCLOUGH, 1989, p. 4) e, em última instância, promover a conscientização como primeiro passo na direção da emancipação social (FAIRCLOUGH, 1989, p. 2; FREIRE, 2001) ou, como denomina Moita Lopes (2006a, p. 95), da “reinvenção da emancipação”.

Em outras palavras, o que Kumaravadivelu chama de Pós-Método (ver, por exemplo, 2006b, 2001 e 1994) e Pennycook (1999, p. 343) define como

um envolvimento crítico com os desejos, necessidades e histórias das pessoas, ou seja, uma forma de pensar que as force constantemente a questionar ao invés de pontificar10 (tradução nossa).

Kumaravadivelu (2006, 1994) aponta para o pós-método ao problematizar o ensino de línguas e sua relação de subordinação a moldagens metodológicas rígidas. O autor (2001, p. 537) argumenta que precisamos colocar em questão a concepção de método e pensarmos em um sistema tridimensional integrado por três parâmetros: a) da particularidade, caracterizado por uma educação voltada para o contexto onde está inserida, com um verdadeiro entendimento das particularidades socioculturais, lingüísticas e políticas; b) da praticalidade, ou seja, a ruptura da divisão entre teóricos e usuários dos métodos, através da formação continuada dos professores para que desenvolvam sua própria prática teórica e c) da possibilidade, que valorizaria a consciência sociopolítica dos participantes para ajudá-los na busca da formação de suas identidades e da transformação social.

Tal abordagem, que Canagarajah (2006, p. 29) chama de ecológica, tem a vantagem de manter as variáveis e riquezas contextuais intactas, uma vez que a cada pesquisa e/ou planejamento de aula estaremos levando em consideração suas particularidades locais. Em outras palavras, ensinar por meio de discussões em sala de aula, que enfoquem as “práticas linguageiras” que fazem parte das ações

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Todas as atividades pedagógicas desenvolvidas pelas participantes, ao longo de 2007, para os alunos da 6ª (Apêndice R) e 7ª séries (Apêndice S) estão em destaque no CD que se encontra em anexo.

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vivenciadas pelo grupo social em questão (MOTTA-ROTH, 2006a, p. 08).

Para tanto, nesta investigação, seguimos a sugestão de Moita Lopes (Ibid., p. 95-96) de que esse processo de reinvenção da emancipação pode começar pelo estudo daqueles que se encontram à margem. De outro modo, aprendermos a construir uma compreensão da vida social pelo viés dos grupos marginalizados (sejam eles marginalizados pela classe social – os estudantes da periferia, por exemplo; pela classe profissional – os professores pré e em serviço, participantes desta pesquisa, pela sexualidade; gênero; raça etc), levando em conta suas perspectivas e vozes, sem, contudo, hierarquizá-los.

Além da perspectiva sociocultural, a análise crítica do discurso das participantes desta investigação desvelou percepções de ensinar e aprender que remontam às concepções behaviorista e cognitivista, provável herança de suas experiências escolares (CONSOLO, 2003, p. 60). Por essa razão, tais teorias serão discutidas a seguir. Em linhas gerais, a proposta behaviorista defende a tese de que qualquer produção humana, inclusive a linguagem, é resultado de uma sucessão de hábitos/contingências, adquiridos por meio de um condicionamento operante e desconectados de qualquer processamento cognitivo.