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PARTE I: APRESENTAÇÃO DO MST E DA METODOLOGIA DA PESQUISA

CAPÍTULO 2 : O CAMPO E A METODOLOGIA DA PESQUISA

2.3. A pesquisa-intervenção

Em 2008 a coordenação da escola solicitou à pesquisadora que desse continuidade, com os estudantes, ao trabalho com as oficinas. Nesse momento a pesquisadora já manifestou a intenção de realizar um trabalho de pesquisa-intervenção vinculado a uma tese de doutorado. O projeto de pesquisa foi enviado à coordenação da escola, assim como lhe foi esclarecido qual seria a proposta de trabalho. A coordenação da escola concordou com a realização da pesquisa, que também foi aprovada pelo comitê de ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

No primeiro encontro com os estudantes lhes foi apresentada a proposta de pesquisa-intervenção e lhes foi esclarecido que esta seria a base para a elaboração de uma tese de doutorado, que versaria sobre os dilemas do militante no MST. Todos concordaram em participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido25. Nesse mesmo encontro foram apresentados alguns temas que poderiam ser trabalhados: gênero, preconceito, exigências internas e externas, relação familiar, projetos para o futuro, ideais e imagem, violência e luto, identidade, deslocamento e migrações; eles puderam escolher entre os temas apresentados e também sugerir outros temas de interesse, relacionados aos dilemas do militante no MST. Eles sugeriram os temas Autoestima e Tensão individual/coletivo e escolheram os temas: Gênero, exigências internas e externas; Relação familiar; Ideais/imagem/identidade; Violência e luto. O grupo foi dividido aleatoriamente em dois subgrupos (grupo 1 e grupo 2) e foi

combinado um encontro semanal com duração aproximada de duas horas para cada subgrupo.

Os estudantes participantes da pesquisa foram, ao todo, 23, e os mesmos que haviam estado presentes nas oficinas no ano anterior, a grande maioria do sexo masculino, com idades que variavam entre 17 e 31 anos, no início da pesquisa- intervenção. Eram filhos de assentados/acampados do MST, alguns deles eram filhos de dirigentes e militantes e haviam recebido o convite para fazer o curso técnico em agroecologia.

Os sete primeiros encontros foram realizados no primeiro semestre de 2008, no período da manhã. Após esse período os alunos foram para suas comunidades (tempo- comunidade), e quando retornaram à escola foram realizados mais três encontros, no período da noite. Nestes últimos encontros foram trabalhados dois temas que não haviam sido previamente selecionados, mas eram de interesse dos estudantes: deslocamentos da escola para a comunidade e projetos para o futuro. No mesmo período da realização dos últimos encontros a pesquisadora também ministrou quinze horas-aula da disciplina de Psicologia, para o mesmo grupo, atendendo uma solicitação da escola. Todas as atividades realizadas integraram a carga horária do curso.

Diferentemente das oficinas realizadas no ano anterior, nas quais a ideia era que eles vivenciassem algumas situações e as quais tiveram um caráter mais lúdico, na pesquisa-intervenção psicanalítica a intenção foi criar um espaço de palavra e reflexão em que os estudantes pudessem expressar sua singularidade, falar de si próprios e de suas vivências. A demanda de um trabalho deste tipo foi levantada em vários momentos no Seminário Subjetividade e a Questão da Terra, e também se fez presente no grupo participante desta pesquisa. Vejamos alguns trechos do seminário em que esta demanda apareceu.

Na mesa de abertura do seminário a psicóloga Giseli Siqueira, do setor de saúde do MST26, trouxe uma preocupação com a saúde do militante e se questionou sobre: “Como se faz o equilíbrio entre luta, família, exigências e sobrevivência?” (p.22), e destacou: “É importante criar espaços onde as escolhas e os conflitos individuais possam ser compartilhados” (p.23). No debate que se seguiu a esta exposição foi

26 O MST é organizado em diversos setores e durante o seminário a dinâmica de trabalho adotada foi a

apresentação de alguns setores do MST (saúde, direitos humanos, formação, gênero e educação) enfocando os desafios enfrentados pelo setor, seguido de debate.

lembrada a dimensão terapêutica que já existe no próprio movimento, “sua disposição para renovação e para mudança” e a “ mística”(p.25).

Após a exposição do setor de gênero, o debate encerrou-se da seguinte forma:

Queria lançar uma ideia para irmos pensando nela. A necessidade de ter um espaço no cotidiano dos assentamentos e acampamentos para as pessoas conversarem sobre os temas. Não no sentido de resolvê-los. O MST é muito pragmático. Tem um problema, tem que ter uma ação para resolvê-lo.(...) Não precisa ser uma ação específica. É somente uma conversa, sem ser burocratizada ou pragmática. As angústias podem ser compartilhadas e as pessoas podem se sentir mais amparadas. Seria uma instância de uma conversa mais solta. E isto pode ser realizado em qualquer tema.” (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA TERRA, 2004, p.48)

Na exposição do setor de direitos humanos, foi lembrado que os militantes têm que fazer a luta e não encontram “tempo para ficar conversando sobre sentimentos”; mas que é importante a criação de um espaço em que eles possam expressar seus sentimentos, seus sofrimentos, e falar de suas próprias histórias e “das marcas” que a luta deixa. Na exposição do setor de saúde foi apresentada como desafio a discussão sobre a afetividade e a sexualidade no MST:

Como trabalhar as relações, a afetividade e a sexualidade dentro do Movimento é um grande desafio. Temos muito presentes que o militante é militante, não pode se dar o direito de ser afetivo, sensual, se mulher não pode se pintar, usar um colar, porque é olhada de forma estranha. (...) É preciso fortalecer a ideia de que ser militante não significa estar em uma caixa quadrada onde não há sentimento e afetividade.” (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA TERRA, 2004, p.65-66)

Todas estas questões apresentadas no seminário serviram de base para a elaboração da pesquisa-intervenção, que não abordou a totalidade das questões, apenas tocou alguns pontos. Adotou-se a ideia de trabalhar com temas, e a divisão em dois grupos (um grupo com 11 e um com 12 integrantes) foi pensada para que os militantes tivessem mais tempo para falar sobre suas vivências. Cada encontro teve um tema e foram utilizadas estratégias variadas para que emergisse a fala de cada um. Estas estratégias foram planejadas e definidas, após a definição dos temas dos encontros. Na sequência apresenta-se como foram organizados os encontros, algumas impressões pessoais da pesquisadora e alguns recortes do contexto em que aconteceram os encontros.

O primeiro encontro, com o tema Relação familiar, iniciou-se com a questão: “O que é uma família pra você?”. Depois que todos falaram, a proposta foi que eles falassem sobre suas famílias e relatassem uma cena familiar. Após este encontro, duas observações foram anotadas no diário de campo da pesquisadora: uma sobre a imagem de Che Guevara, que estava por toda a parte - nas roupas, boinas e bolsas dos estudantes e sobre a mesa do professor, na bandeira vermelha que servia como “toalha de mesa”; a segunda, sobre os relatos, não especificamente sobre o conteúdo, mas sobre a forma como eram feitos, sempre acompanhado de crítica e reflexão sobre as próprias ações.

O segundo encontro, com o tema Exigências internas e externas, a proposta foi que eles escrevessem quais eram as exigências internas e externas a que estavam submetidos, primeiro individualmente e depois em grupo. A escrita foi acompanhada da discussão e ao final do encontro com um dos grupos, um dos estudantes disse que “deveriam ter conversas como esta sempre”.

No terceiro encontro, que teve como tema Gênero, os participantes, divididos em dois subgrupos, encenaram o tema e em seguida discutimos as encenações. A observação feita no diário de campo da pesquisadora sobre este encontro foi que alguns deles também utilizavam o espaço dos encontros para convencer os outros da adesão aos ideais do MST.

O quarto encontro, sobre o tema Tensão individual e coletivo, a questão proposta foi falar sobre o que é individual e o que é coletivo e sobre os maiores pontos de tensão individual e coletiva. O tema deste encontro foi sugerido pelos próprios estudantes, mas diante das indagações iniciais, um dos grupos respondeu com silêncio. Diante da indagação sobre o motivo do silêncio, Ana27 respondeu: “É difícil falar sobre uma coisa que a gente vive na prática”. Após o silêncio inicial e a fala de Ana, a discussão emergiu no grupo. As impressões pessoais da pesquisadora relatadas no diário de campo sobre este encontro foram: A tensão entre o individual e o coletivo é maior para quem vem de um vivência que não era coletiva, quando tudo é sempre de todos, não existe ou pouco existe o “meu”. Apesar das diferenças entre eles, existe uma grande solidariedade em meio à escassez28. O falar e o ouvir os ajudam a compreender o outro e a se conhecerem melhor.

27 Este, como todos os outros nomes dos participantes da pesquisa são fictícios.

28 Eles relataram que compartilham as roupas (um empresta do outro), pasta de dente e sabão se alguém

Outro encontro foi sugerido pelos estudantes, o quinto, foi sobre a autoestima, tema já trabalhado no ano anterior. No dia deste encontro a escola estava movimentada, com muitos jovens que lá estavam para um encontro da juventude, e em consequência disto, a sala de aula que sempre utilizávamos para a realização dos encontros estava ocupada com o alojamento destes jovens. Juliana sugeriu a realização do encontro ao sol, já que estava um pouco frio, e todos foram para o meio do campo de futebol. Neste encontro a proposta foi que eles falassem sobre o que aumenta e diminui a autoestima.

O sexto encontro teve como tema: Ideal, imagem e identidade. Neste encontro, em vez de falar, a sugestão foi que cada um deles desenhasse seu ideal, imagem e identidade; aqueles que o quiseram, mostraram seus desenhos e em seguida discutiu-se o tema.

No sétimo encontro, sobre deslocamentos escola-comunidade, a proposta foi que eles contassem suas idas e vindas. O encontro realizou-se em um momento propício, já que eles tinham acabado de chegar de suas comunidades para mais uma etapa do curso. Entre as diversas falas do encontro destaca-se a de Márcio sobre o “destempero” existente entre os dois tempos: o tempo-comunidade e o tempo-escola. Enquanto no tempo-escola as tarefas eram cumpridas, no tempo-comunidade era bem mais difícil, para maioria deles, dar conta do estudo, das tarefas escolares e políticas e das demandas da família. Nas palavras de Márcio sobre o tempo-comunidade, “Eu faço um planejamento e a realidade faz outro”.

O oitavo encontro deveria ser sobre violência e luto, mas a pesquisadora nem chegou a abordar o luto e foi-lhe difícil abordar esta temática. As questões previstas para esse encontro foram: “O que te deixa triste?” e “O que é violento?”. Além disso, eles deveriam contar em quais situações haviam sentido violência contra si. No primeiro grupo, à primeira pergunta seguiu-se o silêncio. O clima tenso ficou tenso e a pesquisadora nem conseguiu chegar a fazer a última pergunta. No encontro com o segundo grupo, realizado logo na sequência do primeiro, foram feitas todas as perguntas. Um relato quase completo dos encontros é analisado no último capítulo.

O último encontro teve como tema “Projetos para o futuro”. No dia do encontro com o primeiro grupo, alguns estudantes avisaram à pesquisadora que eles não iriam participar do encontro porque estavam em uma reunião sobre a gravação de um CD do qual eles iriam participar. A pesquisadora os convidou a participar do encontro com o outro grupo, que aconteceria três dias depois, e todos aceitaram. O encontro sobre os projetos para o futuro foi conduzido da seguinte forma: eles foram orientados a fechar

os olhos e buscar lembranças de como foram os primeiros dias na escola (com quem conversaram, como se sentiram, quais foram as primeiras impressões que tiveram); em seguida deveriam lembrar-se das aulas, dos professores, do que viveram durante todo o tempo que estão na escola; e finalmente, que se imaginassem três anos depois de terminado o curso (onde estariam, o que estariam fazendo). Depois de lembrar-se do que já passou e de se imaginar no futuro, deveriam abrir os olhos e relatar do que haviam se lembrado e o que imaginaram para o futuro.

No último encontro da pesquisa-intervenção, assim como na oficina realizada no ano anterior, realizou-se uma avaliação dos encontros. Cada estudante deveria responder por escrito a algumas perguntas sobre os encontros, sem necessidade de se identificar. Entre as perguntas estavam: “De qual encontro mais gostou, e por quê?” Qual encontro de que menos gostou, e por quê?” O encontro de que eles mais gostaram foi aquele sobre gênero (citado por 7 estudantes), e alguns falaram que a causa foi o teatro, outros justificaram sua afirmação por terem podido discutir sobre o machismo. O segundo encontro de que eles mais gostaram foi o encontro sobre a família (citado por 5 estudantes), porque puderam conhecer um pouco mais os colegas ao conhecer um pouco mais sua história familiar e porque é uma das questões mais difíceis conciliar família, escola e tarefas do MST. A maioria não respondeu qual o encontro de que menos gostou, e os que o fizeram, citaram principalmente o encontro sobre a família (citado por 5 estudantes). Os argumentos citados foram que não se sentiam à vontade para se expor e falar da sua família, e um deles disse que, conhecendo seus pontos fracos, alguém poderia aproveitar para “detoná-lo”. A avaliação do trabalho, na visão da pesquisadora/professora, marcava o final de uma etapa do trabalho. Os estudantes, porém, tinham uma compreensão diferente sobre o que era uma etapa de trabalho e de como marcar um encerramento. Para eles, uma etapa estava terminada quando estavam encerrando um tempo-escola e partiam para o tempo-comunidade, e este encerramento era marcado com uma mística. Como exemplo, segue o relato de uma delas.

A mística começou com a leitura de um texto de Ademar Bogo sobre o educador; na sequência, todos em círculo e abraçados, cantaram uma música do MST. No final eles agradeceram à pesquisadora e a presentearam com um CD de músicas de educação do campo e um colar feito por um dos estudantes. Nas místicas que eles preparavam sempre havia uma música e um presente para a pesquisadora no final: um livro, um CD, algo feito por eles.

Cada um destes encontros foi realizado com os dois subgrupos, com exceção dos encontros sobre autoestima e ideal e imagem e identidade, que foram realizados cada um com um subgrupo. Durante e após os encontros foram tomadas notas, em um diário de campo, das falas e discussões, assim como das minhas impressões pessoais enquanto pesquisadora. Alguns encontros também tiveram como resultado a produção escrita e de desenhos. Em muitos momentos não se anotou o autor da fala e grande parte das anotações foi feita sob a forma de discurso indireto, porém a pesquisadora buscou ser o mais fiel possível ao que foi dito. Os encontros foram a base para escrita da última parte dessa pesquisa.