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PARTE II: UTOPIA E MILITÂNCIA

CAPÍTULO 1: UTOPIAS E/OU IDEAIS SOCIAIS

1.1. Utopias

“ Soyons réalistes, demandons l’ impossible.” “Sejamos realistas, exijamos o impossível” foi um dos slogans do Maio de 68, e expressou o espírito utópico revolucionário da época. Utopia e revolução, no entanto, nem sempre foram termos associados, eles foram até mesmo postos como incompatíveis por Marx, que não aceitava a designação de utópico para seu programa e criticava os socialistas utópicos29 por não reconhecerem a necessidade da ação revolucionária para a transformação da sociedade. Embora os textos utópicos acompanhem a história da humanidade, é somente no século XVIII, com a Revolução Francesa, que a ideia de utopia e de revolução passaram a ser associadas; antes disso os textos utópicos eram vistos como literatura ou mera discussão filosófica. (COELHO, 1980)

A palavra utopia foi criada por Thomas More, em 1516, em seu livro Utopia. A palavra é uma síntese das palavras gregas eu-topos e ou-topos, nas quais o substantivo grego topos significa lugar, o prefixo eu expressa a “boa qualidade” e o prefixo ou a negação. Assim, utopia designa ao mesmo tempo um lugar de felicidade e um lugar que não existe; um lugar bom para se viver e ao mesmo tempo um lugar que não tem uma existência real, um lugar inacessível. (PAQUOT, 1996)

A Utopia de More inspirada na República de Platão, é um livro composto de duas partes, construídas na forma de diálogo. Na primeira parte o viajante Rafael narra a

29 São chamados de socialistas utópicos autores como Charles Fourier, Saint Simon e Robert Owen, que

preconizavam a construção de uma sociedade ideal a partir de pequenos experimentos comunitários que seriam realizados de forma pacífica, com a participação de todos, sem luta de classes e revolução.

More sua passagem por terras onde os governantes eram corruptos e a população camponesa vivia na miséria, situação semelhante à do regime feudal inglês da época. Na segunda parte do livro, Rafael narra sua viagem à ilha de Utopia, onde os homens viviam em harmonia, submetidos a um regime político ideal. Na ilha de Utopia não existia propriedade privada e todas as riquezas pertenciam ao Estado. Dinheiro também não existia, o comércio era feito à base da troca de mercadorias; as refeições eram feitas em comum, o trabalho era obrigatório e a jornada de 6 horas permitia um tempo livre para o cultivo do espírito; as leis eram poucas e simples e a paz era cultivada. A sociedade ideal da ilha de Utopia e a sociedade desigual descrita na primeira parte do livro opõem-se drasticamente, e tal oposição funciona como crítica social. (CUGNO, 2002)

A Utopia de More, que num primeiro momento pode parecer uma “invenção agradável” de um mundo ideal, é também uma dura acusação ao regime feudal inglês e uma crítica às instituições existentes. More tinha plena consciência dos problemas político-econômicos de sua época, que incluíam a expulsão e expropriação dos camponeses pelo desenvolvimento da pecuária extensiva na Grã-Bretanha, situação contra a qual ele se insurge na primeira parte do livro. (CUGNO, 2002)

Descrições de sociedades ideais, como a Utopia de More, acompanham a história da humanidade. Não obstante, existem períodos em que estes relatos são mais abundantes, tais como o do Renascimento e o do Iluminismo. Para Paquot (1996), “A era das utopias coincide com as grandes descobertas e a afirmação do sujeito – o indivíduo – como ator da história e mestre de seu destino (p.3)30.” Para Baczko (2008),

existem períodos “quentes” – em que são produzidas muitas descrições, representações, obras utópicas – e períodos “frios” da utopia. O Iluminismo foi um dos períodos “quentes” da utopia e as utopias geradas nesta época contribuíram para a eclosão da Revolução Francesa.

Qual a função da utopia? Toda descrição de uma sociedade ideal pode ser considerada utopia? Qual a relação das descrições de sociedades ideais com as mudanças concretas na sociedade?

A função da utopia, segundo Dadoun (2000), é ir contra a realidade, e não ir em direção a ela. A utopia deve ser adversária da realidade, e não buscar a concretização do seu projeto. “A vocação da utopia é de dizer não de fazer (…)” (p.31)31. No mesmo

30 Tradução nossa, desta e todas citações de Paquot (1996). 31 Tradução nossa, desta e todas citações de Dadoun (2000).

sentido de Dadoun, Sousa propõe que a utopia pode ser pensada como uma “espécie de furo no plano dos conceitos e imagens instituídas” que abre a possibilidade de novos conceitos e imagens, da esperança, da invenção. A utopia propõe um não lugar, não é prescritiva; “tem muito mais uma dimensão de subtração de um excesso de imagens e de sentido, exatamente como na interpretação psicanalítica, suspendendo as certezas do sujeito, do que prescrevendo novos códigos de conduta e projetos de felicidade” (SOUSA, 2006, p.52). Sua função vital “(...) não é a forma última do paraíso, mas a necessidade de buscar um outro mundo a partir de uma crítica do presente” (SOUSA, 2007, p.26).

As sociedades ideais descritas nos textos utópicos não devem ser tomadas como dogmas a serem seguidos para a conquista da felicidade. A força da utopia não está nos “modelos” que ela descreve, mas na possibilidade que ela abre de imaginação, criação e crítica, na “fissura” que ela faz na realidade (SOUSA, 2006 e 2010); ou seja, a força da utopia não é a conquista de um mundo perfeito, que por definição é impossível, mas sim, o efeito que as descrições deste mundo provocam em nós, que é ver mais claramente as imperfeições do mundo real e nos mover em busca de um mundo melhor. A utopia nos faz caminhar, como nos diz Eduardo Galeano:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.

Já para Mannheim (1976), as descrições de sociedades ideais só podem ser chamadas de utopia se tendem a transformar a realidade total ou parcialmente, caso contrário não passam de meras ideologias. Por exemplo, a ideia de paraíso na Idade Média estava de acordo com a visão de mundo do período e não oferecia “possibilidades revolucionárias”; situando o paraíso fora da sociedade, não incitava à luta por melhores condições de vida. “Somente depois que certos grupos incorporam imagens desiderativas à sua conduta efetiva foi que estas ideologias se tornaram utópicas” (MANNHEIM, 1976, p.217). Assim, para Mannheim, diferente de Dadoun (2000) a utopia tem sim que ir em direção à realidade, buscando transformá-la, caso contrário é mera ideologia.

Utopia e ideologia32 têm em comum o fato de serem ideias que são

incongruentes e transcendentes em relação à realidade na qual estão inseridas, mas suas semelhanças param por aí; a grande diferença entre ambas, na concepção de Mannheim (1976), está na possibilidade de transformar a realidade que está presente na utopia e ausente na ideologia que leva ao afastamento da realidade e não à sua transformação. (MANNHEIM, 1976)

As ideologias são as ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente à prática, são, na maior parte dos casos, deformados. (MANNHEIM, 1976, p.218)

Um exemplo de ideologia (citado por Mannheim, 1976) é a existência da ideia de amor fraterno cristão em meio à sociedade escravocrata. Embora o autor estabeleça a diferença entre utopia e ideologia, ele reconhece que não é tarefa fácil determinar quando estamos lidando com utopias ou ideologias ou até que ponto uma ideia é utópica ou ideológica. Além disso, existem diferentes utopias33, ou, para empregar as palavras de Mannheim, existem diferentes “mentalidades utópicas” que evoluíram ao longo da história. Estas mentalidades utópicas são a quiliasta, a liberal-humanitária, a conservadora e a socialista-comunista. Vejamos, quais são suas características.

A primeira delas, a mentalidade quiliasta, é a mais primitiva e antiga entre as mentalidades utópicas. Ela situa a sociedade ideal não em outro espaço, como a Utopia de More, mas em outro tempo. Este outro tempo seria uma era de justiça e felicidade com a duração de mil anos, que viria após um período de catástrofes.

O quiliasmo – também chamado de milenarismo – contém um potencial revolucionário quando unido às demandas de populações oprimidas. Segundo Mannheim (1976), “ a ideia da aurora de um reino milenar sôbre a terra sempre conteve uma tendência revolucionarizante (...)” (p.235). Assim como Mannheim, Hobsbawn (1970), citado no primeiro capítulo, também compartilha a ideia de que movimentos milenários são revolucionários, pois sua essência é a esperança de uma completa

32 A concepção de ideologia aqui apresentada é de Mannheim (1976). Existem outras que não serão aqui

abordadas, pois tal discussão foge ao objetivo do presente texto.

33 Daí também minha opção de colocar como título do capítulo Utopias ao invés de Utopia, pois existem

transformação do mundo, característica que compartilha com outros movimentos revolucionários modernos.

A revolução para o quiliasmo é uma reação a uma situação de carência extrema, não é um meio para se chegar a um fim estabelecido racionalmente, ela tem valor em sim mesma; é “(...) o único princípio criador do presente imediato, como a esperada realização de suas aspirações neste mundo”(MANNHEIM, 1976, p.241). O sonho de um milênio igualitário não se constitui como um adiamento para um futuro que está por vir, mas como orientação das ações no aqui e agora, momento em que começa a ser construída a utopia na terra.

Canudos e Contestado podem ser citados como exemplos deste tipo de mentalidade. Em ambos, os escritos bíblicos do Apocalipse34 de São João fizeram parte da literatura inspiradora dos líderes destes movimentos. Nestes escritos destacam-se a temática da luta do bem contra o mal, do tempo de catástrofes que antecederia a vitória do bem e a conquista do paraíso na terra para os justos e humildes.

Embora as ideias tenham sido fonte de inspiração para estes movimentos, não foram elas que impeliram às guerras camponesas, “esta irrupção tinha suas raízes em níveis bem mais elementares e mais profundamente vitais da psique”(MANNHEIM, 1976, p.237); ou seja, não foram as ideias o que deu origem a estes movimentos, eles tiveram origem na insatisfação dos oprimidos com suas reais e precárias condições de existência, e as ideias milenárias serviram como orientadoras desta insatisfação, dando- lhe uma representação e direção.

Diferentemente do papel desempenhado na mentalidade quiliasta, as ideias, na mentalidade liberal-humanitária, a segunda mentalidade utópica descrita por Mannheim (1976), exercem a função de crítica da sociedade existente. Um exemplo desta mentalidade, encontramos na Utopia de More. Tal como a mentalidade também concebe a realidade como má, só que ao contrário desta que tende a entrar em hostilidade com o mundo, a mentalidade liberal-humanitária não se opõe radicalmente à sociedade existente, apenas a analisa criticamente.

Em sua forma característica estabelece igualmente uma concepção „racional‟ correta a ser utilizada contra a realidade maligna. Entretanto, não se utiliza esta contracepção como um plano de acordo com o qual se venha, em qualquer ponto do tempo, a reconstruir o

34 O número mil aparece no Apocalipse, segundo Gallo (1999) “como significante de eternidade e

mundo. Antes, serve meramente como „unidade de aferição‟, por meio da qual o curso dos acontecimentos concretos pode ser teoricamente avaliado. A utopia da mentalidade liberal-humanitária é a „ideia‟. Esta não consiste, entretanto, na ideia platônica estática da tradição grega, que era um arquétipo concreto, um modelo primeiro das coisas; aqui se concebe a ideia como um objetivo formal projetado no futuro infinito, cuja função consiste em proceder como um mero dispositivo regulador dos negócios mundanos”. (MANNHEIM, 1976, p.243)

Enquanto para a mentalidade quiliasta a utopia começa a ser construída no aqui e agora, para mentalidade liberal-humanitária ela poderá ser construída, pelo menos em parte, em algum lugar indefinido do futuro. Enquanto a primeira representou a mentalidade do final da Idade Média35 da Europa e o pensamento de camponeses e oprimidos que viviam em um mundo em dissolução, a mentalidade liberal-humanitária corresponde à Idade Moderna: representou os estratos médios da população contrários à nobreza e ao poder da Igreja, e culminou com a Revolução Francesa. (MANNHEIM, 1976)

A mentalidade liberal-humanitária pode ser incluída no campo mais amplo constituído pelo projeto iluminista, o qual, segundo Zizek (1991), apresenta uma cisão: ao mesmo tempo em que o Iluminismo preconiza um sujeito autônomo e racional que pode criticar as autoridades, este sujeito também é uma engrenagem de um grupo social e deve submeter-se a estas mesmas autoridades que critica. Ao predomínio da adaptação à sociedade ao invés da crítica, corresponde a terceira mentalidade utópica descrita por Mannheim (1976): a mentalidade conservadora.

Para a mentalidade conservadora, a utopia coincide com a realidade, logo esta não é vista como má, como nas duas mentalidades descritas anteriormente, mas como “(...) a corporificação dos mais elevados valores e significados”(MANNHEIM, 1976, p.256). Ao contrário do liberalismo, que despreza o passado e valoriza o futuro como sendo o tempo em que o projeto utópico possa vir a ser realizado pelo menos em parte, o conservadorismo resgata o valor do passado e vê no presente a consequência de uma ordem natural.

A qualificação de utópica para esta mentalidade proposta por Mannheim (1976) causa certa estranheza, pois ela não condiz com o que ele mesmo define como utopia. Ela é, na realidade, o contrário de utopia, ela é uma topia. Se utopia, em seu sentido etimológico é lugar bom, mas inexistente; a topia é o seu contrário, “ o lugar concreto e

35 Em seu livro “Rebeldes primitivos: estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos

XIX e XX”, Hobsbawn (1970) mostra que estes movimentos também estiveram presentes na Europa, nos séculos XIX e XX.

existente no aqui e agora”(COELHO,1980, p.45). Se este lugar existente é imaginado como natural e como não sendo passível de mudança, não há utopia. A utopia implica a possibilidade de pensar que a realidade pode ser radicalmente diferente do que é. Szachi (1972) afirma:

O utopista não aceita o mundo que encontra, não se satisfaz com as possibilidades atualmente existentes: sonha, antecipa, projeta, experimenta. É justamente este ato de desacordo que dá vida à utopia. Ela nasce quando na consciência surge uma ruptura entre o que é, e o que deveria ser; entre o mundo que é, e o mundo que pode ser pensado. (p.13)

Para a mentalidade conservadora não há ruptura entre o que é e o que deveria ser, há coincidência, o que não significa a ausência total de tensão entre a realidade e a ideia. A existência de problemas na sociedade não é totalmente negada, porém estes são vistos como um desvio do curso natural da própria sociedade, cabendo uma correção do desvio resultante do progresso que cria novos problemas que serão também por ele dominados. Aqui a ideia de revolução, de grandes e reais transformações na sociedade, é descartada e substituída pela ideia de que apenas alguns ajustes são aceitáveis para manter a sociedade no seu rumo natural.

A partir da síntese destas três mentalidade utópicas – a conservadora, a liberal- humanitária e a quiliasta − é construída a quarta: a mentalidade socialista-comunista, que é uma nova criação baseada nas três mentalidades que a antecederam. Segundo Coelho (1980), para a mentalidade comunista, utopia e revolução se aproximam e o projeto marxista de sociedade é o melhor exemplo desta mentalidade, embora Marx tenha recusado a designação de utópicos para seus escritos.

Em comum com a mentalidade liberal-humanitária, a mentalidade socialista- comunista compartilha a crença de que a liberdade e a igualdade só serão possíveis no futuro. A diferença está em que, enquanto para a utopia liberal o futuro é um tempo indefinido, para utopia socialista-comunista o futuro que trará a realização da utopia é o fim do capitalismo. Enquanto no liberalismo as ideias têm caráter formal e abstrato, no socialismo-comunismo elas “(...) possuem uma vida concreta própria e uma função definida no processo total. Arrefecem quando se tornam antiquadas e podem ser realizadas quando o processo social atingem uma dada situação estrutural.” (MANNHEIM, 1976, p. 264)

A estrutura social é, para esta mentalidade, a força que determina todo desenvolvimento, enquanto para o conservadorismo era o passado que o determinava. Na mentalidade socialista-comunista o determinismo impulsiona para o futuro, porém este é visto como socialmente determinado. Este determinismo da mentalidade socialista-comunista também se opõe ao indeterminismo da “ideia” na mentalidade liberal-humanitária e ao indeterminismo do quiliasmo, para o qual o que importa é o presente imediato. (MANNHEIM, 1976)

Em comum com a mentalidade quiliasta, a socialista-comunista apresenta traços milenaristas expressos na crença de que fim do capitalismo possibilitará a realização plena da utopia (COELHO, 1980). Outra característica comum entre ambas é a associação da utopia com a revolução, embora no quiliasmo a ideia de revolução ainda não apareça em seu sentido moderno, que é o de reação contra toda ordem opressiva existente36.

A utopia sustentada pelo MST, como foi dito logo no início do capítulo, é a socialista-comunista, mas à sua maneira. Como é uma síntese das anteriores, esta mentalidade apresenta traços das mentalidades que a antecederam, o mesmo se podendo dizer também em relação à utopia do MST. Em comum com o mentalidade quiliasta, o MST busca a concretização da utopia que começa a ser construída no aqui e agora 37. O MST não foi e não é um movimento milenarista, mas a influência do messianismo judaico-cristão através da atuação da Igreja na sua constituição não pode ser negada. Tal como os movimentos milenaristas, o MST surgiu entre os camponeses pobres que enfrentavam situações de opressão e expropriação, e não a partir de ideais. Embora as ideias, a utopia da construção de uma sociedade justa e igualitária, estivessem presente desde o início da constituição do movimento e tenham ajudado a organizar uma demanda, elas não são anteriores ao MST, no sentido de que seus integrantes tivessem se reunido em torno delas e a partir daí formado o movimento. O processo foi outro: primeiro veio a expulsão e a expropriação do camponês, e depois, a partir do desejo e da reação daqueles que queriam permanecer na terra, constituiu-se o MST e sua utopia como resposta a uma situação vivida.

A utopia, que na mentalidade liberal é o ideal ao qual se compara a crítica à realidade, no MST orienta diretamente suas ações para a construção de uma sociedade

Sentido proposto por Stahl citado por Mannheim (1976).

37 Na entrada da Escola Florestan Fernandes, que é uma escola do MST localizada no município de

mais justa e igualitária, sem deixar de fazer a crítica da sociedade concreta. Sem menosprezar o passado como no liberalismo, mas também sem considerar que o presente é uma consequência natural do passado; a utopia no MST valoriza o passado e orienta para o futuro, um futuro que começa a ser construído no aqui e agora.

A utopia do MST é sonho, projeto, antecipação e experimento. Seus integrantes ousam experimentar e viver de outra forma dentro do capitalismo, mesmo com todas as dificuldades que esta escolha traz, mas a revolução e o fim do capitalismo continuam como orientadores de suas ações e são cantados por seus integrantes, como podemos ver nos seguintes trechos de suas músicas:

Contra esse capitalismo Vamos firmes decididos Não deixar pra outra hora

É a classe organizada passo a passo na estrada Construindo a sua história

(Descobrimos lá na base, Zé Pinto) Quando chegar na terra

É preciso fazer produção Este é o primeiro passo que Damos na revolução

Com certeza alguns chegando com chapéu na mão Esplanada do Planalto bandeiras bem alto

Cantando bem alto a canção

(Quando chegar na terra, Ademar Bogo)38

Embora vivamos em uma época na qual o que parece predominar é a crença conservadora de que o presente é consequência natural do passado e de que a utopia coincide com a realidade, o MST vai em uma direção oposta, ao sustentar uma utopia socialista-comunista. Na nossa época, segundo Zizek (2005), é mais fácil imaginar o fim do planeta do que uma mudança radical no capitalismo. Diante desta situação é necessário reinventar a utopia. A utopia que precisamos não é a utopia da sociedade ideal e da imaginação livre, que nunca poderá ser realizada, nem a utopia capitalista, que não só permite, mas solicita que novos desejos perversos sejam realizados. A utopia que precisamos é aquela que nasce em situações em que as coordenadas do possível não dão conta de resolvê-las, em que é necessário inventar um novo espaço, em resposta a um puro instinto de sobrevivência (ZIZEK, 2005). A utopia do MST é assim: nasce

como resposta a uma situação de exclusão e expulsão e constrói um outro caminho possível; produz “fissuras” na realidade e segue a trilha da criatividade, da imaginação e da esperança.