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PARTE III: OS “DILEMAS” DO MILITANTE DO MST PENSADOS A PARTIR DA

CAPÍTULO 2 : IDEAIS, EXIGÊNCIAS E IDENTIDADE SEM TERRA

2.1 O narcisismo e a constituição do eu ideal

Em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) define o narcisismo como “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de conservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a cada ser vivo” (p.15). Com esta definição Freud mostra que o narcisismo não está somente do lado da patologia, mas também ao lado da vida, da preservação de si mesmo, desde que o investimento em si esteja em equilíbrio com investimentos em outros objetos.

Em um texto um pouco anterior, Caso Schreber, Freud (1911) apresenta o narcisismo também como um estágio intermediário do desenvolvimento sexual, localizado entre o autoerotismo e o amor objetal, concepção que se mantém até a elaboração da segunda tópica79. Afirma Freud (1911):

Este estágio foi designado como nome de narcisismo, e consiste em que o indivíduo em evolução, vá sintetizando em uma unidade suas pulsões sexuais a uma atividade auto-erótica, para depois chegar a um objeto amoroso, toma-se em princípio a si mesmo, isto é, toma seu próprio corpo como objeto amoroso, antes de passar à eleição de objeto, o que é talvez normalmente indispensável. (p.1517)

Nesta primeira concepção Freud diferencia autoerotismo e narcisismo. No autoerotismo as pulsões indiferenciadas se satisfazem por si sós, enquanto o narcisismo implica certa unificação das pulsões e um objeto que é o próprio eu do sujeito; porém, como unidade, o eu não existe desde o início. Freud (1914) atribui a “um novo ato psíquico” papel fundamental na unificação das pulsões, na constituição do eu e na passagem do autoerotismo ao narcisismo. Esta concepção de Freud nos leva a entender que o eu e o narcisismo se formam concomitantemente (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992), ou mesmo que o “Eu se estrutura em um processo do qual o narcisismo faz parte” (FILHO, 2007, p.130).

79 Após a elaboração da segunda tópica desaparecerá a diferenciação entre autoerotismo e narcisismo, e

O que é este “novo ato psíquico” tão importante para constituição do eu e do narcisismo, Freud não explica; mas encontramos no estágio do espelho, concebido por Lacan, um caminho para compreender o que não ficou claro em Freud.

Lacan, seguindo Freud, propôs com a noção de estágio do espelho um momento constitutivo, no qual se produz a partir da identificação à imagem do outro – matriz identificante – , uma imagem unificada de si, correspondente aos primeiros esboços do Eu. Ao reconhecer sua „imagem‟, a criança inicia uma relação com a mãe, cujo olhar é tal qual o próprio espelho em que se vê. Tal condição nos permite ainda pensar a questão do narcisismo sob o vértice do „outro‟ que, implicado em seu próprio narcisismo, também se vê refletido na própria imagem que projeta. (FILHO, 2007, p.130)

Assim, um estágio que a princípio parece dizer respeito ao sujeito e a si mesmo (narcisismo), implica a presença de um outro em sua constituição. São os olhos do Outro, no caso da mãe, que enviam para criança uma imagem unificada de si, com a qual esta se identifica e a qual lhe possibilita certa apreensão do seu corpo como totalidade e a constituição dos primórdios do eu. A mãe, que reflete a imagem da criança como um espelho, também se vê refletida nos olhos da criança, e esta, por sua vez, representa para a mãe um prolongamento de seu narcisismo. Assim, não é só Narciso que vê sua beleza refletida no lago: o lago também se vê refletido nos olhos de Narciso, tal como no poema de Oscar Wilde80 (citado por FILHO, 2007).

Não só para a mãe, mas também para o pai, a criança representa um prolongamento do seu narcisismo. Segundo Freud (1914), os pais superestimam as qualidades dos filhos, revivem neles seu próprio narcisismo abandonado e projetam neles a possibilidade de concretização de seus sonhos não realizados. A relação dos pais com a criança, além de ser marcada pelo narcisismo destes, também leva a marca da relação dos pais com a sociedade e com o grupo no qual a família se insere e com o qual partilha os ideais (AULAGNIER,1979).

Voltemos à criança e seu narcisismo. As exigências externas e o próprio desenvolvimento do eu fazem com que o narcisismo, tal como em seu estágio inicial, seja abandonado. Seu abandono cria o desejo de reconstituição deste estado de

80 “− Não nos admiramos de que pranteeis Narciso dessa maneira. Ele era tão belo! − Narciso era belo? –

indagou o lago.− Quem sabe melhor do que vós? – responderam as Oréadas. –Ele nos desprezava ao vos cotejar debruçado às vossas margens, mirando-vos, e contemplando a própria beleza, no espelho de vossas águas. E o lago retrucou: − Eu amava Narciso porque, quando ele se debruçava sobre as minhas margens para contemplar-me, eu via sempre se refletir, no espelho de seus olhos, a minha própria beleza.” (Oscar Wilde, citado por Filho, 2007, p.131)

satisfação em que o sujeito bastava a si mesmo, e deste desejo e da influência externa se forma o ideal do eu. (FREUD, 1914)

A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa perfeição. Aqui, como no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. (...) O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal. (FREUD, 1914, p.40)

Com a constituição do ideal do eu, parte do investimento libidinal do sujeito será direcionada a ele, e a satisfação, uma vez obtida com o investimento no eu, passará a também ser obtida quando o ideal é atingido. Os investimentos em objetos externos, que começam juntamente com a formação do ideal do eu, passaram a ser também fonte de satisfação, desde que a libido que vai para o objeto, empobrecendo o sujeito, também retorne a ele, enriquecendo-o. A partir da formação do ideal do eu, o amor-próprio do sujeito dependerá destas três fontes de satisfação: do que sobrou do narcisismo infantil, da “onipotência confirmada pela experiência (do cumprimento do ideal do Eu)” e da satisfação da libido objetal. (FREUD, 1914, p.48)

O amor-próprio, segundo Freud (1914), é “expressão da grandeza do Eu” (p.45). O cumprimento do ideal aumenta o amor-próprio ao confirmar o primitivo sentimento de onipotência infantil, enquanto o distanciamento em relação ao ideal pode ocasionar o sentimento de frustração e fracasso. Amar alguém, por sua vez, não aumenta o amor- próprio, muito pelo contrário, o indivíduo que ama perde uma parte da sua libido, que somente volta para esse indivíduo quando ele é amado. “O amar em si, enquanto ansiar, carecer, rebaixa o amor-próprio, e ser amado, achar amor em troca, possuir o objeto amado, eleva-o novamente”.(p.47)

Ainda em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) diz que a influência crítica dos pais, à qual vem se agregar a crítica de outros membros da sociedade, é a influência externa, o estímulo para formação do ideal do eu. Esse estímulo faz do ideal do eu uma instância narcísica e social marcada pelo narcisismo infantil abandonado e pela influência crítica da sociedade representada, em um primeiro momento, pelo voz dos pais. Freud termina seu texto sobre o narcisismo enfatizando esta dimensão social do ideal do eu: “Do ideal do Eu sai um importante caminho para o entendimento da

psicologia de massa. Além do seu lado individual, ele é também o ideal comum de uma família, uma classe, uma nação.” (p.50)

Esta dimensão social do ideal do eu é retomada e ampliada por Freud (1921) em

Psicologia de massas e análise do eu:

Cada indivíduo é membro de muitas massas, tem muitas ligações de identificação e edificou seu ideal do eu segundo os mais diversos modelos. Cada indivíduo participa, assim, da alma de muitas massas: sua raça, seu estamento, sua comunidade de crença, sua comunidade estatal, etc., e ainda pode elevar-se acima disto até conseguir uma partícula de autonomia e originalidade.(p.122)

Em Psicologia de massas e análise do eu, as funções de observação de si e consciência moral são atribuídas ao ideal do eu. Com a elaboração da segunda tópica e a proposição do conceito de supereu, Freud (1923) passa a atribuir estas funções ao supereu. Em O eu e o isso Freud emprega os termos ideal do eu e supereu como sinônimos e passa a enfatizar o caráter proibitivo desta instância. Segundo os comentários de Strachey, após este texto o termo ideal do eu quase desparece da obra de Freud, sendo retomado nas Novas conferências introdutórias à psicanálise como uma das funções do supereu.