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PARTE III: OS “DILEMAS” DO MILITANTE DO MST PENSADOS A PARTIR DA

CAPÍTULO 2 : IDEAIS, EXIGÊNCIAS E IDENTIDADE SEM TERRA

2.4 As exigências internas e externas: o supereu entra em cena

O militante é também um modelo, ocupa um lugar de transmissão e não é sem consequências a maneira como ele se porta e se veste diante dos outros. Por isto, em suas falas são comuns as referências às inúmeras cobranças e exigências a que estão submetidos. Um exemplo disto é o trecho abaixo do texto de abertura do seminário “Subjetividade e questão da terra”, elaborado por Paulo Maldos e PauloUeti:

O ideário do movimento, seus valores éticos e morais, suas personalidades de referência - Che Guevara, Florestan Fernandes, Madre Cristina, Rosa Luxemburgo, para citar algumas - produzem um conjunto de exigências ao “modo de ser militante” que, certamente, tensionam de forma permanente as mulheres e os homens no sentido da auto-crítica e da auto-superação. (...) Como já foi dito, um alto padrão ético é exigido e incorporado pela militância: honestidade, dedicação ao povo, empenho nas lutas, risco em liderar ações de massa, busca de perfeição em cumprir tarefas, realizar

gestos exemplares como trabalho voluntário ou doar sangue. Tais gestos encontram sintonia em momentos revolucionários de uma determinada sociedade, são gestos heróicos, são gestos exemplares da nova sociedade que se almeja. (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA TERRA, 2004, p.133)

O militante, além de ser ele próprio um modelo, também tem seus modelos que representam a corporificação dos ideais aos quais adere. É difícil separar os modelos das exigências que os acompanham. Quanto mais perfeito o modelo, maiores também serão as exigências que ele impõe. Um dos principais modelos - se não o principal - que circula entre os jovens militantes do MST é Che Guevarra. Encontramos no site do MST uma conferência de Che pronunciada na União de Jovens Comunistas, em 1962, que reforça esta ideia das indissociáveis exigências que acompanham o modelo, o ideal. Cito na sequência um pequeno trecho desta conferência:

O jovem comunista deve tentar ser sempre o primeiro em tudo, lutar para ser o primeiro, e sentir-se incomodado quando em algo ocupa outro lugar. Lutar sempre para melhorar, para ser o primeiro. Claro que nem todos podem ser o primeiro, mas sim estar entre os primeiros, no grupo de vanguarda. Ser um exemplo vivo, ser o espelho onde possam olhar-se os homens e mulheres de idade mais avançada que perderam certo entusiasmo juvenil, que perderam a fé na vida e que ante o estímulo do exemplo reagem sempre bem. Eis outra tarefa dos jovens comunistas.(GUEVARA, 1962,

online)

Se Márcio falava em ser exemplo para as crianças, que representam a continuidade do MST, aqui Che Guevara fala em ser exemplo para as pessoas de idade mais avançada que perderam o “entusiasmo juvenil”. A cobrança de “entusiasmo juvenil” também aparece na fala de Fábio, quando ele diz que “é cobrado da juventude (do MST) a própria animação”.

As cobranças e exigências que os ideais impõem ao sujeito podem ser pensadas em duas dimensões: uma interna ao sujeito e uma externa. Para abordar ambas as dimensões das exigências e cobranças, podemos recorrer a Freud e ao seu conceito de supereu e supereu da cultura. O supereu representa no interior do sujeito a interiorização da crítica dos pais e da sociedade; é a instância psíquica encarregada de cobrar, exigir e comparar o eu aos ideais e é assim definido em Mal-estar na civilização:

O supereu é uma instância por nós descoberta; a consciência moral, uma função que lhe atribuímos junto a outras: a de vigiar e julgar as

ações e propósitos do eu; exerce uma atividade censora. O sentimento de culpa, a dureza do supereu, é então o mesmo que severidade da consciência moral; é a percepção, proporcionada ao eu, de ser vigiado dessa maneira, a apreciação da tensão entre suas aspirações e as exigências do supereu. (FREUD, 1930, p.132)

Neste mesmo texto, Mal-estar na civilização, Freud (1930) propõe a hipótese da existência de um supereu da cultura, equivalente ao supereu individual. Assim como o supereu individual é formado a partir da influência dos pais, o supereu da cultura é formado a partir da influência deixada pelos grandes homens, e assim como o supereu individual, também impõe ao sujeito elevadas exigências, que, quando não atendidas, trazem como consequência a “angústia da consciência moral”. A diferença do supereu da cultura em relação ao individual está na imposição da ética na relação entre os sujeitos, e neste sentido não atingiria os sujeitos apenas como indivíduos isolados, mas como coletividade. Afirma Freud:

O supereu da cultura estabeleceu seus ideais e propõe suas exigências. Entre elas, as que dizem respeito aos vínculos recíprocos entre os seres humanos que se resumem sob o nome de ética. Em todos os tempos se atribuiu o máximo valor a esta ética, como si se esperasse justamente dela sucessos de particular importância. Consequentemente, a ética se dirige aquele ponto que facilmente se reconhece como a ferida de toda cultura. A ética tem então que ser concebida como um ensaio terapêutico, como um empenho por alcançar por mandamento do supereu o que até o momento o restante do trabalho cultural não havia conseguido. (FREUD, 1930, p. 137- 138)

A partir desta ideia de Freud sobre um supereu da cultura, Muldworf (2000) propõe que, para os militantes do PCF, o partido funcionaria como uma espécie de supereu que impõe modelos a serem seguidos, cobra, controla e exige determinados padrões éticos e morais. É possível pensar que o MST também pode exercer semelhante função junto a seus militantes. A fala de uma militante do MST, no seminário

Subjetividade e questão da terra (2004), mostra quanto seus militantes podem ser

conscientes dessa função e do desafio que ela representa:

Temos refletido que essa nova militância do Movimento é um outro desafio. A própria referência ética dessa militância é o Movimento.Não é mais a igreja, não é mais o partido político. Os novos militantes são pessoas cuja única referência é o Movimento. E isso significa, para nós, mais trabalho porque aquela base existente anteriormente não mais existe. A questão dos valores é um desafio

pedagógico muito grande, especialmente para quem está na condução dos cursos. Exige muito. É uma estratégia de formação humana. Mas, também, política. Queremos formar pessoas coerentes com a luta, com a causa, com o Movimento. E isso não acontece por decreto. (p.93-94)

Não é tarefa fácil separar as exigências que vêm do supereu das que vêm do supereu da cultura, separar as exigências que são internas das externas. Um encontro da pesquisa-intervenção foi dedicado a esta temática. A dinâmica utilizada neste encontro foi solicitar aos jovens que escrevessem quais eram as exigências internas e externas a que estavam submetidos, primeiro individualmente e depois em grupo. Sobre as exigências internas a que estão submetidos, o primeiro grupo escreveu:

Compromisso com o estudo.

Exercitar a comunicação e a expressão. Aprender a lidar com a distância familiar. Convivência coletiva.

Manter a pertença ao movimento.

Compartilhar os conhecimentos teóricos e práticos na base e na sociedade.

Aprender a conviver com as diferenças. Superar os limites individuais e coletivos. Espírito de sacrifício.

O primeiro grupo utilizou todo o tempo do encontro para discutir as exigências internas, e, como não teve tempo para discutir as exigências externas, concluiu a atividade dizendo que as exigências externas coincidem com as internas. Já o segundo grupo separou as exigências internas e externas, embora coincidam em vários pontos.

Exigências internas:

A responsabilidade da expressão oral. Leitura.

Criar dentro de si a disciplina consciente.

Compreensão de como vamos interagir com o povo. Saber conciliar a família com o MST e a escola. Exigências externas:

A responsabilidade da expressão oral. Leitura.

O exercício de ser criativo com conteúdo.

Ser pontual nas atividades a partir dos acordos que se têm. Ser disciplinado com o próximo.

Ter um comportamento respeitoso com as pessoas. Saber conciliar a família com o MST e a escola.

A coincidência das exigências internas e externas, manifestada de formas diferentes pelos dois grupos, mostra a dificuldade em discriminar o que é interno do que é externo. Geralmente, as exigências e cobranças a que eles estão submetidos se referem ao estudo, à escola e ao que é esperado de um militante do MST. Uma dessas exigências apareceu como a segunda exigência no primeiro grupo e a primeira exigência no segundo: “a responsabilidade da comunicação oral” e “exercitar a comunicação e a expressão”, mais do que uma exigência, constituem um desafio a superar.

Segundo Muldworf (2000), “o militantismo tradicional consiste em buscar convencer pelas ideias, pelas trocas, pelo diálogo, pelo discurso, pela pertinência de um argumento ou de uma causa.” ( p.120) Por isto, o militante deve saber se comunicar bem, para passar suas ideais e convencer os demais. No caso dos militantes do MST, “saber se comunicar” é não somente uma exigência ou uma característica do bom militante, mas também mais um dos desafios que ele deve enfrentar, pois, como diz Narita (2000):

A inteligência do homem no campo envolve um sistema de operações diferenciado do padrão lógico-formal próprio do homem da cidade, com escolaridade. A inteligência é uma inteligência empírica, concreta, e não uma inteligência abstrata, formal. É uma inteligência que atende às necessidades solicitadas no seu dia-a-dia, nos trabalhos que realiza. No entanto, encontra limitações quando confrontado com uma inteligência técnico-institucional. Há um limite na comunicação, devido à desigualdade de condições. E assim, pode-se perceber formas de domínio pelo poder, através de um saber que o homem não escolarizado e institucionalizado não detém. É dominado pela falta de domínio: da linguagem, das informações, dos comportamentos padrões; é dominado através de um conhecimento científico que seu habitus de classe não lhe dá acesso.(p.886)

Convém lembrar que os jovens que participaram desta pesquisa, em algum momento, não tiveram acesso à escola, pois, com idades que variavam de 17 a 31 anos no início da pesquisa, estavam cursando o Ensino Médio juntamente com a formação técnica em agroecologia. O curso que estavam fazendo representa também o resgate do direito de estudar. O que deveria ser visto como direito é visto por eles como um “privilégio” conquistado com muita luta, e eles não podem decepcionar a esperança que neles foi depositada. Por isto, o “compromisso com o estudo” é uma exigência interna e externa.

Em uma sociedade em o que predomina é a “cultura do narcisismo” e dos “ideais particularistas de consumo” que atuam diretamente sobre o eu ideal dos sujeitos,

provocando no sujeito a ilusão de que se possuir determinados produtos nada lhe faltará − até o lançamento de um novo produto, que virá antes que esse sujeito descubra que nada preenche a falta – o MST oferece outra possibilidade de articulação do sujeito à cultura, constituída por ideais coletivos e um referencial ético que atua diretamente no ideal do eu dos sujeitos e que exige o compromisso do sujeito com o coletivo. Uma coisa é estudar para ter um emprego, dinheiro e sucesso, e outra é o compromisso ético de estudar para aprender e poder “compartilhar os conhecimentos teóricos e práticos na base e na sociedade”.