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PARTE II: UTOPIA E MILITÂNCIA

CAPÍTULO 2: MILITÂNCIA E MST

2.1. Militância hoje

Segundo o Dicionário Novo Aurélio (1999), militância é o nome dado à ação, à prática do militante. O militante é aquele que combate, que atua, que participa; é o soldado, o guerreiro, o apóstolo. Já no Dicionário Houaiss (2004), o militante é definido como “aquele que defende ativamente uma causa”(p.1923). No Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (1986), encontramos que militar é “seguir a carreira das armas, ser membro de um partido, fazer guerra, combater”(p.521). Da

participação ao combate, do apóstolo ao soldado, encontramos no substantivo militante e no verbo militar múltiplos sentidos. Não é sem razão que Offerlé (2005) refere-se a este tema como gigantesco e cheio de problemas. Entre estes problemas estão a própria denominação (quem é militante?) e a definição (o que é ser militante?).

Sobre a denominação militante, Offerlé (2005) diz que o termo é confundido com o que, na França, é chamado de bénévole − que podemos traduzir como trabalhador voluntário −, porém, nem todo trabalhador voluntário é militante, embora o militante seja um trabalhador voluntário. Offerlé destaca as mudanças na utilização da denominação militante na França, que durante muito tempo foi associada à esquerda e que hoje em dia já é associada também à direita e começa a ser empregada também para designar algum participante de uma associação patronal. Lembra o desaparecimento do termo ativista político, que foi muito empregado na França na década de 1960 e depois de 40 anos está voltado a ser empregado para designar os “très militants”.

Sobre a definição do que é ser militante, Offerlé (2005) apresenta a existência de uma relação de oposição entre o que se entendia que era militante nas décadas de 1960 e 1970 e o que se entende por ser militante hoje. Num passado não tão distante o militante era aquele vinculado a uma organização que defendia uma causa entendida como justa, que se sacrificava em nome do coletivo, que participava de reuniões e debates doutrinários e dedicava grande parte do seu tempo à organização. Hoje, fala-se do militante post-it55, que é aquele que se engaja em uma causa pontualmente e que nem

chega a estabelecer um vínculo duradouro com alguma organização. Passemos, então, à caracterização do que é militar na atualidade, na visão de Ion, Franguiadakis e Viot (2005), que têm um livro intitulado justamente Militar hoje:

Militar é fazer coletivo; se associar, se reunir, em um mesmo lugar ou a distância, para defender uma causa. Mas é também comunicar e tornar visível o conjunto assim constituído, através das representações, no duplo sentido do termo. Representar é, portanto, manifestar uma existência pública, mas é igualmente fazer funcionar e dar uma qualidade à uma entidade coletiva. (p.48)56

Militar é defender uma causa e, por meio da ação coletiva, dar-lhe visibilidade. A ação no aqui e agora é privilegiada em relação ao debate doutrinário; é ela a principal característica do que é militar na atualidade, segundo Ion, Franguiadakis e Viot (2005).

55 Termo concebido por Jacques Ion. Post-it é aquele papelzinho que podemos colar e descolar em

diversas superfícies sem ficar marca.

Para eles, os diversos movimentos sociais atuais preferem a ação ao debate doutrinário. O engajamento pragmático, mais do que ideológico, é uma reposta rápida a problemas que não podem esperar uma solução por muito tempo, e se insere num contexto específico do “fim” das grandes narrativas.

O objetivo é menos lutar por um amanhã melhor que combater perigos eminentes. O que muda é uma representação do tempo. Não mais: amanhã será melhor que hoje, mas amanhã corre o risco de ser pior que hoje. É a ideia do risco que torna-se central e ela compreende os lugares e as formas de se mobilizar. (ION; FRANGUIADAKIS; VIOT, 2005, p.12-3)

O agir no aqui e agora não significa que os ideais desapareceram, que não existe mais utopia, mas sim, que eles são tematizados de um modo diferente. Os ideais, a utopia, não ocupam mais lugar privilegiado na origem da ação, são as necessidades imediatas que o ocupam; porém eles continuam no horizonte e os militantes continuam sendo movidos pelo desejo de “mudar a ordem das coisas”. (ION; FRANGUIADAKIS; VIOT, 2005)

Juntamente com o agir no aqui e agora e o “declínio” dos ideais, a imagem do militante e seu envolvimento com uma causa também não são mais os mesmos. Militar, hoje, aproxima-se mais da ideia de livre serviço – em que cada um escolhe livremente seu grau de envolvimento –, do que da ideia clássica do militante totalmente devotado a uma causa. (ION; FRANGUIADAKIS ;VIOT, 2005)

A diversidade de formas de coletivos é um indício muito forte de que é possível a participação de formas muito diferentes no apoio de uma causa. A adesão deixou de ser uma obrigação e a maior parte dos agrupamentos militantes oferecem hoje o que podemos chamar de uma participação com graus variados. Certamente, já era sabido que aderir não significa uma igual contribuição à vida do agrupamento, a distinção entre „aderentes de base‟ e „aderentes ativos‟ ou „militantes‟ há muito tempo serve para descrever uma tal hierarquia implícita, ligada seja ao grau de politização conquistada pela formação interna, seja aos recursos pessoais específicos. O que aparece como novo, é um tipo de divisão funcional das tarefas, autorizando todos e cada um, qualquer que seja seu nível de implicação, independente de todo julgamento de valor sobre sua relação à vida do coletivo; assim, a ideia de uma entrada progressiva na militância, foi sucedida pela de livre serviço. (ION; FRANGUIADAKIS;VIOT, 2005, p.58)

Ion, Franguiadakis e Viot (2005) desenvolveram estas ideias a partir do estudo de alguns movimentos sociais na França atual, entre eles os Sem-Emprego, os Sem-

Alojamento, os Sem-Domicílio Fixo e os Sans-Papiers57. Estes movimentos franceses,

designados como “grupos com fracos recursos” e nomeados por aquilo que lhes falta e que parecia condená-los à inexistência social, tomaram a palavra e se fizeram ouvir no espaço público. Sujeitos e objetos de ação, eles impuseram sua presença no espaço público. Assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, são designados por aquilo que lhes falta, são marcados pela preposição SEM, que compõe seus nomes. São os “sem-direitos” em luta por reconhecimento jurídico e social58. É

um destes movimentos franceses, os Sans-Papiers, que é apresentado na sequência, como um exemplo do que é militar hoje, de acordo com os autores citados e, como contraponto para pensar o que é militar no MST.

As primeiras manifestações de imigrantes em situação irregular na França datam da década de 1970, quando aquele país endureceu sua política de imigração. Após a Segunda Guerra Mundial, diante da necessidade de mão de obra, a França abriu suas fronteiras para Portugal, Espanha e os países do Noroeste da África59. Neste período, a permissão para morar na França era obtida quando o imigrante apresentava uma comprovação de que estava empregado. Na década de 1970, quando a mão de obra externa foi se tornando progressivamente desnecessária, esta situação inverteu-se e passou a ser necessário ter a permissão para morar na França (carte de séjour) para conseguir um trabalho. Além disso, quem perdesse o trabalho perderia também sua permissão para morar em território francês. Após a década de 1970, a política imigratória francesa oscilou entre um maior endurecimento e uma pequena possibilidade de regularização para aqueles imigrantes que já viviam em território francês até 1993 e a elaboração da segunda Lei Pasqua60. Esta lei restringiu rigorosamente a entrada e permanência de estrangeiros no território francês, e depois dela muitos imigrantes que viviam regularmente na França tiveram negada a renovação de suas cartes de séjour e se tornaram Sans-Papiers. (GOUSSOLAUT, 1999)

Goussalaut (1999) destaca que a maioria daqueles que se tornam imigrantes irregulares na França se constitui dos que entraram regularmente no país e se tornaram irregulares após a negação da renovação da carte de séjour ou após a expiração de um

57 São os estrangeiros que vivem na França em situação irregular, sem o documento (carte ou titre de

séjour) que os autorizam a morar em território francês.

58 Terminologia proposta por Honneth (2009) que será abordada no último capítulo.

59 Também conhecido como Magreb. O Magreb central inclui o Marrocos, a Tunísia, a Argélia e o Sahara

Ocidental. O grande Magreb inclui também a Mauritânia e a Líbia.

60 As leis Pasqua- Debré versam sobre a imigração na França. A primeira delas é de 1986, a segunda de

visto de curta duração. Atualmente61, em sua maioria, os estrangeiros em situação

irregular trabalham, porém são explorados e excluídos de todos o direitos:

(...) salários miseráveis, pesadas jornadas de trabalho, ausência de toda proteção legal ou social, „incidentes de pagamento62 constantes, contra os quais os sans-papiers estão sem defesa, uma vez que estão submetidos em permanência, da parte dos empregadores, a chantagem, a deleção e a expulsão. (TERRAY, 1999, p.9)63

Ao contrário do que se pode pensar, a miséria imperante no país de origem não é o único ou o principal motivo que levou muitos a migrar para a França, mas sim, as guerras e a opressão (política, étnica, de gênero). Aqueles que migram, buscam não somente fugir de alguma coisa, mas também conquistar alguma coisa. Não são os mais desprovidos que partem, mas sim aqueles cujo grupo e cuja família acreditam ter mais chances de obter sucesso. Eles são atraídos pela ideia de que a França é um “país livre, acolhedor e generoso, pátria dos direitos dos homens”, mas se decepcionam logo que chegam. (TERRAY, 1999)

Como os imigrantes irregulares na França se transformaram em Sans-Papiers e passaram a empreender ações coletivas, o que reivindicam e como se organizam?

Um marco das ações coletivas dos imigrantes em situação irregular foi a ocupação da igreja Saint-Ambroise em Paris, em 18 de março de 1996, porcerca de 300 estrangeiros de origem africana. No mesmo dia da ocupação o padre local solicitou providências da força pública para assegurar “o direito de culto”64, e quatro dias depois

eles foram expulsos. A mobilização continuou, outros imigrantes irregulares se reuniram ao grupo e militantes de outras organizações se aproximaram para prestar seu apoio. Em 28 de junho do mesmo ano o grupo ocupou a igreja Saint-Bernard. Em 23 de agosto as forças policiais os expulsaram da igreja. Durante estes meses, alguns membros do grupo fizeram greve de fome como forma de protesto, muitas manifestações de apoio foram realizadas e eles se transformaram em “um fenômeno político” que passou a ocupar as manchetes dos jornais. De imigrantes irregulares ou

61 Não se sabe ao certo quantos Sans-Papiers existem na França, estima-se que eles sejam entre 200.000 a

400.000, e cerca de 25.000 são expulsos todos os anos. Estima-se que cerca de 60% dos trabalhadores da construção civil, limpeza, hotelaria-restaurante da região de Île-de-France seja composto de sans- papiers.( DÉSOBÉIR AVEC LES SANS-PAPIERS, 2009)

62 Um exemplo destes “incidentes de pagamento” foi relatado à autora por uma faxineira brasileira em

situação irregular na França. Após trabalhar durante vários finais de semana na limpeza de um hotel, não recebeu pagamento, ao contrário das faxineiras em situação regular.

63 Tradução nossa.

clandestinos passaram a ser conhecidos como os Sans-Papiers de Saint-Bernard. (BLIN, 2005)

A própria mudança de denominação de irregulares e clandestinos para Sans-

Papiers já denota uma conquista e importante mudança simbólica: de responsáveis por

sua situação e de pessoas fora da lei, eles se impuseram como vítimas das leis repressivas de um país. Saíram da “invisibilidade que caracteriza a condição de clandestinos”, fizeram-se ver e ouvir através de ações que testemunham a impossibilidade de agir pelas vias convencionais. (ION; FRANGUIADAKIS; VIOT, 2005).

Os Sans-Papiers de Saint-Bernard tinham uma única reivindicação: a regularização de todos do grupo65, todos eles imigrantes irregulares. O slogan utilizado por eles era: “des papiers, pas de politique” (regularização, não política). O resultado final desta mobilização foi a regularização de 109 dos Sans-Papiers de Saint-Bernard (101 deles eram pais de crianças francesas ou crianças nascidas na França e 8 receberam o direito de asilo), enquanto 13 foram expulsos da França. (BLIN, 2005)

Depois de Saint-Bernard, as manifestações dos Sans-Papiers continuaram com greves de fome, ocupação de outras igrejas, de órgãos públicos, universidades e outros locais. Em maio de 2010 os Sans-Papiers fizeram uma marcha de Paris a Nice (aproximadamente 1.000 km) pela regularização de todos. Eles vestiam camisetas com os seguintes dizeres: “Hier colonisés, aujourd’hui exploités, demain

regularisés”(ontem colonizados, hoje explorados, amanhã regularizados). Outra frase

que também estampava suas camisetas e cartazes era: “On bosse ici! On vit ici! On

reste ici!” (trabalhamos aqui, vivemos aqui, ficamos aqui).

Atualmente os Sans-Papiers se organizam em coletivos que lutam pela regularização de todos. Há cerca de um coletivo por cidade ou departamento, todos ligados entre si por uma coordenação nacional. Os coletivos contam com suporte de “comitês de apoio” formados por militantes de direitos humanos e de outras organizações. (GOUSSOLAUT, 1999)

Os Sans-Papiers têm em comum com o MST algumas formas de ação, como as marchas e ocupações. Os dois movimentos agem no aqui e agora, porém no MST a ação não é privilegiada em relação ao debate ideológico, prática e teoria seguem juntas e são inseparáveis. No MST, os ideais continuam a ocupar um lugar privilegiado como

65 Grande partes deles se encontrava em uma situação paradoxal, pais de crianças francesas ou nascidas

orientadores das ações, mas eles são conjugados com ações práticas que visam solucionar necessidades imediatas, como também com ações que visam à construção de uma sociedade melhor, do “novo homem e nova mulher”.

Por exemplo, quando o MST reúne um grupo de famílias sem terra e ocupa um latifúndio, está procurando suprir uma necessidade imediata, de restituir àquelas famílias o direito de trabalhar e tirar da terra o seu sustento. Quando o MST destrói uma plantação de alimentos transgênicos de alguma multinacional, mostra qual modelo de sociedade e agricultura ele defende, sua luta contra o capitalismo e sua proposta agroecológica. A ocupação de terras e a destruição de plantações de alimentos transgênicos mostram diferentes níveis de ação que são articulados: luta pela terra, luta pela reforma agrária, luta contra o modelo capitalista. Estas ações também são entendidas como espaço de formação de seus militantes, juntamente com os cursos em que é enfatizado o debate doutrinário.

A urgência da causa dos Sans-Papiers que vivem no cotidiano o medo de serem presos ou expulsos a qualquer momento (“amanhã pode ser pior que hoje” e não “amanhã será melhor que hoje”), mostra uma nova relação com o tempo, diferente da que vemos no MST. Esta diferença na relação com o tempo foi e é construída a partir de diferentes contextos, países e situações/reivindicações, e certamente a questão do urbano e rural também exerce influência na forma como os sujeitos constroem sua relação com o tempo. O tempo no campo não é o mesmo das grandes metrópoles e cidades, é um tempo “mais lento”, ligado aos ritmos e ciclos da natureza, da hora de plantar e de colher que o homem do campo conhece, sabendo que ele pode perder uma colheita, mas que virá uma próxima.

Tanto os Sans-Papiers quando o MST contam com apoio de militantes de outras organizações66 que definem, eles próprios, seu grau de envolvimento com estes movimentos. Entre os militantes do MST que também são sem-terras ou tornam-se sem- terras (como o padre que larga a batina para militar no movimento) a ideia da militância como livre serviço não se aplica. Assim, propõe-se nesta tese uma diferenciação entre militar no MST e ser militante do MST. Aqueles que militam no MST podem ou não militar também em outros movimentos e podem ter graus variados de participação. Os

66 No Seminário Subjetividade e Questão da Terra (2004), um dos psicólogos participantes perguntou a

um militante do MST como deveria ser o envolvimento dos psicólogos com o MST, e este militante respondeu que ia tomar como exemplo o envolvimento dos padres para responder à questão. Disse que havia um padre que tinha pintado um quadro sobre a luta pela terra, um outro que os ajudava sempre que precisaram e aquele padre que largou a batina e tornou-se um sem-terra. Disse que cada um deve definir qual será o nível de envolvimento e todos são bem-vindos no MST.

militantes do MST vivem sua militância vinte e quatro horas por dia e nos sete dias da semana. Esses militantes que são ou tornaram-se sem-terras são o foco desta pesquisa.