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PARTE III: OS “DILEMAS” DO MILITANTE DO MST PENSADOS A PARTIR DA

CAPÍTULO 2 : IDEAIS, EXIGÊNCIAS E IDENTIDADE SEM TERRA

2.5 Identidade e identificações

“ A partir do momento em que entra para o movimento já está batizado de sem-terra”. ( Militante do curso de agroecologia)

A adesão ao MST como militante ou integrante do movimento vem acompanhada de uma nova identidade, a identidade de sem-terra. Existem inúmeros trabalhos sobre a identidade de sem-terra, mas a intenção aqui não é resgatá-los, nem aprofundar-nos na discussão teórica sobre o tema; o objetivo é pensar a identidade de sem-terra a partir do ponto de vista da Psicanálise. Neste sentido, a questão orientadora será: “Quais as possíveis implicações e dilemas que a identidade de sem-terra traz pode trazer para o sujeito que adere ao MST?”.

Quando um militante diz: “Quando você entra para o movimento, já está batizado de sem-terra, o que ele quer dizer com esta afirmação? Sem entrar no sentido religioso do termo, ser batizado é ser nomeado. Quando um sujeito entra para o MST, mesmo que ele não aceite a identidade de sem-terra, a sociedade, de uma forma geral, passará a lhe atribuir esta identidade. São os olhos dos outros que dizem quem somos nós, embora também seja possível não aceitar a identidade que os outros nos atribuem.

Com o MST não foi diferente, a denominação sem-terra, segundo Fernandes e Stédile (1999), surgiu primeiro na impressa. Antes de o MST se constituir como movimento nacional, quando germinavam as primeiras lutas no Sul do País, foi a mídia que passou a designar como sem-terra aqueles camponeses que perderam a terra ou o trabalho no campo e passaram a lutar pelo direito à terra. Esta denominação logo foi adotada pelo MST, que certamente viu nela a possibilidade de unificar as diferentes

identidades (agricultor, arrendatário, posseiro, boia-fria, etc.) daqueles que vieram a constituir o movimento.

Embora, como já foi dito no primeiro capítulo, a imagem divulgada na mídia sobre o MST tenha quase sempre conotação negativa, pois associa o movimento ao atraso, ao crime, ao vandalismo, ela tornou o MST conhecido e deu visibilidade a seus integrantes. Como diz Lerrer (2008),

Mesmo abordando conflitos, dando versões muitas vezes negativas para as ações do MST, “aparecer na TV” conferia importância a esses pobres do campo que empunhavam uma bandeira vermelha, estimulando outros, que se viam nas mesmas condições, a integrar suas fileiras. (p.82)

A visibilidade possibilitada pela televisão às ações do MST tornou o movimento conhecido e fez com que muitos se reconhecessem naqueles sem-terra que apareciam na TV, pois, como diz Bucci (citado por CHAUÍ, 2004), “o Brasil se conhece e se reconhece pela televisão”(p.12). Mesmo que em um primeiro momento a imagem negativa veiculada pela televisão tenha sido aceita sem crítica, ao aproximar-se do movimento esta imagem pode ser mudada e aqueles que tinham uma imagem negativa do movimento podem “tornar-se” também sem-terra.

Não obstante, o fato de ser integrante do MST e ser visto como um sem-terra não faz que, necessariamente, o sujeito se perceba como parte do movimento. Geralmente, os líderes, dirigentes e militantes do MST se identificam assim, porém os demais integrantes do movimento nem sempre o fazem, como mostraram as pesquisas de Narita (2000), Silva (2002), e como também pude observar em uma pesquisa anterior (DOMINGUES, 2001). Não é raro que líderes, dirigentes e militantes do MST sejam vistos pelos integrantes que compõem a base do movimento como “eles, os sem-terra”, ou que um ex-militante diga que saiu do MST quando deixou de militar, mesmo que continue vivendo e trabalhando em algum assentamento ligado ao movimento. Também existem aqueles que passam a levar a denominação de sem-terra quase como um sobrenome, como Milton (citado por RODRIGUES, 2006), que diz: “Faço questão de ser conhecido como Milton Sem-Terra” (p.72).

O nome singulariza o sujeito, enquanto o sobrenome marca a pertença a um grupo familiar. Milton é sujeito singular, diferente de qualquer outro, e ao mesmo tempo faz parte de movimento social e quer ser identificado também por esta pertença, que marca sua condição comum com a de outros sujeitos. Semelhantemente a Milton,

Mateus, no primeiro encontro da pesquisa-intervenção, apresentou-se como: “Mateus, 21 anos, 5 de MST”. Ao acrescentar à sua apresentação pessoal o tempo em que está no movimento, Mateus marca sua identidade e o sentimento de pertença ao MST. Embora Mateus tenha sido o único a se apresentar desta forma, no decorrer do encontro a discussão sobre o que é pertença emergiu no grupo.

Segundo Tarini (2007), “no MST usam-se camisetas, bonés, bandeiras e botons, todos vermelhos, com um desenho do mapa do Brasil em verde, uma mulher e um homem empunhando um facão, significando a luta da qual os Sem Terras sentem-se pertencentes;” (...) (p.42). No entanto, os jovens militantes que participaram de sua pesquisa81 não usavam o boné e a camiseta do MST fora do assentamento e quando estavam sozinhos, embora eles tivessem dito que o sentimento de pertença é a primeira característica que define o militante do MST.

Usar a camiseta e o boné do MST é ou não sinal de pertença? Em quais situações os jovens militantes usam ou não usam estes símbolos do movimento? Estas questões emergiram na pesquisa-intervenção quando os militantes discutiam quais as exigências a que estavam submetidos e um deles levantou a questão da pertença como uma destas exigências; a partir daí as exigências foram postas de lado e iniciou-se uma discussão sobre o que é pertença ao MST e sobre o uso da camiseta do movimento. Edmilson disse que logo que entrou no movimento fazia questão de usar a camiseta do MST, para dizer para os outros: “sou do MST mesmo”; porém agora diz não sentir mais esta necessidade. Giseli fala que muitas vezes é difícil usar a camiseta do MST, principalmente se não estão em grupo, porque são alvos fáceis; e relata uma situação em foi para uma manifestação e ela e uma outra pessoa tiraram o boné e a camiseta do MST para ir a uma venda, temendo que a polícia os prendesse. Giseli diz que é mais fácil usar a imagem do Che, pela qual eles se identificam, porque os de fora podem pensar que é “uma banda de rock” e não identificam o MST. Adilson narra um episódio em que disse que não era do MST porque “tem amor à vida”. Todos os participantes do grupo parecem concordar que usar os símbolos do MST não é o que dá o sentimento de pertença, nem dizer que é do MST a qualquer custo.

Apesar disso, “a identidade é marcada por meio de símbolos (...). Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que ela usa” (WOODWARD, 2007, p.9-10). O MST constantemente aparece na mídia associado ao crime, à violência, ao vandalismo. Assim, não é fácil usar seus símbolos em toda e qualquer situação e ser

associado a esta imagem negativa; Mas mesmo não sendo fácil usar os símbolos do movimento, ostentar uma identidade é uma forma de fazer-se visível. Segundo Hassoum (1996),

A identidade remete a um conjunto de imagens externas ou internas que fazem, por exemplo, que um indivíduo possa dar a ver e a escutar, sem descontinuidade, a aparência de seu particularismo. A identificação é muito mais singular. O sujeito se identifica com algumas referencias que faz suas, sem necessidade de nenhuma ostentação. Este processo é o que chamamos simbolização. (Neste sentido a dimensão imaginária da identidade não lhe é alheia.) É chamativo como quando se diz a alguém: „Não sois nada, a cultura que herdaste não é nada e estás reduzido (ou eu te reduzo) a nada‟, o sujeito se sente condenado imediatamente a exibir seus emblemas imaginários. (nota, p.92-3)82

Hassoum (1996) marca a diferença existente entre identidade e identificação. Enquanto a identidade é uma representação imaginária de si mesmo como unidade, a identificação diz respeito à internalização de referenciais externos que modificam o sujeito e se tornam uma parte dele. A atitude inicial de Edmilson de usar a camiseta do MST para dizer “Sou do MST mesmo” pode ser interpretada como uma necessidade de fazer-se visível, de ostentar sua identidade; com o passar do tempo e a internalização de referenciais, já não sente a necessidade de exibir sua identidade. Neste caso, é possível entender que os referenciais em jogo são os ideais do MST e que há uma interação dinâmica entre identidade e identificações. Segundo Lago (citada por RODRIGUES, 2006),

A identidade como representação ficcional do eu, elaboração do registro imaginário, procura justamente dar conta das contradições do sujeito, organizando-as numa história coerente, unitária, através da qual ele se referencia, como portador de um passado, relacionado ao presente e as expectativas de futuro. Identidade não é algo acabado, com peso constituinte, mas, enfatizamos, uma construção imaginária, em permanente processo de significação, de reelaboração, de investimento em novas identificações e novas significações. (p.67)

A identidade não é algo fixo e acabado, mas algo que está em movimento, sendo constantemente alimentado pelas novas identificações. Quando se trata de uma identidade coletiva − como é a identidade de sem-terra – concorda-se com Souza (1994) quando ele diz que a identidade coletiva significa mais o “traço constitutivo de um ideal

do eu” do que uma ilusão de unidade de si mesmo. No mesmo sentido que o de Souza, Muldworf (2000), já citado no segundo capítulo da segunda parte, diz que o ideal é a coluna vertebral da identidade militante. No que diz respeito à identidade de sem-terra, segundo os autores citados, é possível dizer que são os ideais sustentados pelo MST a sua coluna vertebral.

O ideal do eu é a instância psíquica do sujeito que acolhe e interage com os ideais sociais, instância formada também a partir da identificação com os pais e demais modelos que vêm se agregar a eles. No capítulo sobre a Utopia e os ideais coletivos foram apresentados três tipos de identificação, segundo Freud (1921). O primeiro tipo é a identificação que é mais primitiva e que, segundo Souza (1994), foi pouco teorizada por Freud; o segundo é o daquela em que o objeto ou um traço dele é introjetado no eu; e o terceiro tem como base algo comum. A modalidade de identificação que está na origem do ideal do eu é a segunda, que, assim como a terceira − que faz com que os sujeitos façam laços entre si−, continua atuando ao longo da vida do sujeito. Neste sentido, a diferenciação que Enriquez (1999) propõe entre identificação e substituição é bastante esclarecedora:

Existe uma (ou muitas) identificação quando o objeto (desaparecido ou se mantendo) se torna parte integrante do ego; por outro lado, trata-se de uma substituição quando o objeto é posto no lugar do que constitui o ideal do ego. Assim, através da introjeção, a identificação com os pais permite ao sujeito assimilar propriedades e atributos dos mesmos e se transformar conforme o modelo que eles propõem, independentemente de suas presenças ou ausências na realidade. O ego se torna, então, o produto do conjunto de identificações passadas. A situação de substituição, ao contrário, é percebida quando aquilo que era para nós um ideal se localiza num objeto presente que vem, no interior de nós mesmos, representar completamente e sem crítica esse ideal. (p.68)

Na substituição, o objeto, que pode ser ideais sociais, outro sujeito que sirva como modelo, etc., vem ocupar o lugar do ideal do eu do sujeito, enquanto na identificação o sujeito se enriquece com os atributos do objeto que são internalizados e passam a constituir uma parte de si. Não obstante, como nos lembra Zizek (1992), o sujeito nem sempre se identifica com um atributo positivo, ele também pode se identificar com um atributo oculto e/ou negativo. A identificação contribui para a construção de uma imagem positiva ou negativa de si que faz parte da identidade.

Até agora enfatizou-se a dimensão negativa da identidade de sem-terra, a qual foi construída principalmente pela mídia; mas cabe abordar também sua dimensão positiva. Convém esclarecer que as dimensões negativa e positiva da identidade de sem- terra dizem respeito, principalmente, ao modo como o integrante do MST é visto pelos outros, o que é diferente da identificação do sujeito com atributos positivos ou negativos. As dimensões negativa e positiva da identidade de sem-terra afetam o sujeito que integra o MST, pois, como diz Narita (2000), “a condição sem-terra traz consigo uma identidade que ao mesmo tempo que fortalece o indivíduo em determinado meio, o enfraquece em outro”(p.861); e mesmo que o integrante do MST não se veja como sem- terra, a sociedade de uma forma geral lhe atribuirá esta identidade. As situações vividas e relatadas por Márcio no penúltimo encontro da pesquisa-intervenção são bastante representativas de como a identidade de sem-terra pode ser negativa e enfraquecer o sujeito em um contexto e ser positiva e fortalecê-lo em outro.

A primeira situação vivida e relatada por Márcio foi a de ter sido proibido de entrar em um festival de cultura com a camiseta do MST: “... o porteiro me disse que lá havia fazendeiros e eles poderiam não gostar”. Para Márcio, as pessoas que participavam daquele festival não iriam se importar com sua camiseta, mas ele acabou tirando a camiseta do MST e colocando uma camiseta do festival, para poder entrar. A segunda situação foi um show de rap, em que o rapper lhe ofereceu 50 reais por sua camiseta, oferta que Márcio não aceitou, pois segundo ele “aquela era sua única camiseta do MST”. A terceira e última situação foi uma festa à fantasia, em que Márcio foi com a camiseta do MST e alguém lhe disse que era “legal sua fantasia”, comentário ao qual ele respondeu que “não era fantasia, que ele era sem-terra mesmo”.

Estas três situações relatadas por Márcio mostram as dimensões negativa e positiva da identidade de sem-terra: na primeira situação, a dimensão negativa e/ou de afronta; nas demais situações, a dimensão positiva relacionada ao MST e ao ser sem- terra, pois, se só existissem aspectos negativos, dificilmente os sujeitos iriam aderir a ela. Aparentemente, Márcio lida bem com todas estas situações e até brinca de “fantasiar-se de si mesmo”, mas para outros sujeitos, principalmente para as crianças que fazem parte do MST, a identidade de sem-terra também pode ser motivo de discriminação e humilhação83.

Márcio e Giseli relatam situações em que tiraram a camiseta do MST – ele, por ter sido solicitado a fazê-lo, ela, por medo, e ambos, para entrar em algum lugar onde

supostamente os sem-terra não seriam bem-vindos. Tal ato não afeta seus sentimentos de pertença, apenas mostra situações em que não puderam ou não quiseram ostentar sua identidade de sem-terra. Situações diferentes são as marchas, manifestações e encontros em que os sujeitos estão em grupos e em que um dos objetivos é justamente dar visibilidade à identidade de sem-terra, à causa e às reivindicações do MST. Nestas situações entram em cena outros símbolos do MST, além do boné e da camiseta vermelha: as músicas, as palavras de ordem, a bandeira e o hino.

O MST tem uma bandeira e um hino, como um país, e, tal como um país, emprega tais símbolos para construir certa identidade nacional de sem-terra em meio às diferenças, e tal como um país, também está sujeito aos movimentos separatistas em seu interior. Destes movimentos separatistas já surgiram muitos outros movimentos, embora o MST venha mantendo sua unidade; porém, como nos diz Bauman (2005), a identidade nacional é uma espécie de ficção, e para que ela se transforme em realidade é necessário haver “muita coerção e convencimento”.

Para Bauman (2005), a investigação de qualquer identidade no campo social demanda a consideração de dois aspectos que lhe são inerentes: a opressão e a libertação. Uma identidade é opressiva quando ela é imposta, estigmatiza, humilha e desumaniza o sujeito; também quando ela, mesmo que “escolhida”, cristaliza-se em um pensamento único que nega ou submete a ela todas as outras pertenças do sujeito, tal como acontece nos fundamentalismos religiosos. Uma identidade é libertadora quando representa “um grito de guerra usado em uma luta defensiva” de um grupo mais fraco que se vê ameaçado por outro mais forte, quando “é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa em ser devorado”(BAUMAN, 2005, p. 83-4). Estes dois aspectos, embora contraditórios, podem vir juntos; a “libertação” de uma opressão pode levar a uma opressão diferente.

A identidade de sem-terra, como qualquer outra identidade coletiva, traz em si estas duas possibilidades: a da libertação e a da opressão. Se pensarmos na sua construção em meio à luta dos expulsos e expropriados da terra por nela permanecer e para ter uma identidade, pois a que tinham estava sendo perdida (agricultor, arrendatário, posseiro, boia-fria, etc.), a identidade de sem-terra representou libertação, uma nova possibilidade para o sujeito ser e estar no mundo, de fazer laço com outros sujeitos e de se reconhecer e ser reconhecido no seu semelhante; mas não se pode

esquecer que a identidade de sem-terra também pode ser opressiva e alienante se ela cristaliza-se e se impõe como a única identidade possível ao sujeito que integra o MST.