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A plausibilidade da ilusão fotográfica

A definição da subestrutura axiomática do cinema

II. A plausibilidade da ilusão fotográfica

A expressão “plausibilidade da ilusão fotográfica” é o que Frampton chama de “um reflexo automático que triangula a distância entre a imagem projetada e uma „norma imaginária‟; um processo que depende da suposição ontogenética de que cada fotografia

110 Frampton, “The Withering Away of the State of the Art”, in Jenkins, Op. cit., p. 264. 111 Frampton, “A Lecture”, in Jenkins, Op. cit., pp. 125-127.

implica um fenômeno concreto, e vice-versa”.112 Numa primeira leitura, esta parece ser uma formulação idêntica à de Bazin. Mas, como vimos, o campo considerado por Frampton é distinto, pois ele parte do princípio de que qualquer traçado feito pela luz sobre o material sensível – com ou sem câmera, focado ou não por uma lente – é uma imagem fotográfica, e também que esta pode ser “interpretada” na impressão.

É importante ressaltar que Frampton coloca a “ontologia fotográfica” (que, ele insiste, não é a simples re-apresentação dos fenômenos) ao lado da articulação de seus elementos, o que no cinema resulta na negação da ilusão do espaço em profundidade como inevitável. Em outras palavras, a “ilusão fotográfica” não é sinônima de “ilusão em profundidade”, o que significa que a “plausibilidade” citada por Frampton não é sinônima do “efeito psicológico” citado por Bazin. Ele usa a obra de Paul Sharits como um exemplo de cineasta inteiramente dedicado a esta crítica, e à asserção de que a representação realista nada mais é que uma gramática particular. Sharits vê o cinema como um “sistema de informações”, e a teoria cinematográfica como uma taxonomia de seus elementos concretos, não de suas intenções.113 A concretude dos elementos, nesse caso, não é a dos eventos em sua relação física criada pelo processo fotográfico, mas da própria faixa de filme. Um filme de Sharits que representa diretamente essa preocupação é Tails (1976), em que ele registra a passagem de uma película em diferentes velocidades. Vemos, portanto, os furos pelos quais a faixa de filme é carregada no projetor, os flares e as marcas em sua superfície, e a passagem entre diferentes fotogramas, que normalmente seria dissolvida na projeção. Tanto Frampton como Sharits sugerem que a faixa de filme é uma espécie de notação criada pelo cineasta, a organização e ordenação de imagens e sons, fisicamente dispostos sobre uma mesma estrutura.

Annette Michelson comenta a oposição realizada pela vanguarda americana dos anos 60 e 70 (da qual Frampton e Sharits fazem parte) à concepção realista do cinema, empregando uma citação de Adorno:

O processo fotográfico do cinema, primordialmente representacional, coloca uma maior significância intrínseca no objeto, indiferente mais à subjetividade que às técnicas esteticamente autônomas; esse é o aspecto atrasado do cinema no processo histórico das artes. Mesmo quando o filme se dissolve e modifica

112 Frampton, “A Pentagram for Conjuring the Narrative”, in Jenkins, Op. cit., p. 143.

seus objetos o quanto pode, essa desintegração nunca é completa. Consequentemente, [o cinema] não permite a construção absoluta: seus elementos, independente de quão abstratos, sempre retêm algo de representacional; eles nunca são valores puramente estéticos.114

Em seguida, ela reforça que o projeto teórico de nomes como Brakhage, Kubelka, Snow, Landow, Gehr e Jacobs “é mais claramente entendido como direcionado à destruição dessas suposições, canonicamente recebidas e estabelecidas”. O que veríamos nos filmes e textos desses cineastas seriam diversos métodos de ataque, através “dos processos e propriedades fílmicos (grão, luz, emulsão...)” e da “insistente interceptação e bloqueio da continuidade diegética”.115

Frampton reconhece Ernie Gehr como um cineasta preocupado com a dimensão física da luz, com a própria radiação luminosa do aparato cinematográfico como elemento formador. Se todo o cinema é “sobre a luz” – sobre modos de articulação da luz no tempo –, a obra de Gehr é a projeção de sua sensibilidade sobre essa qualidade absoluta. Em seus filmes, segundo Frampton, há uma ênfase no fato de que a luz está na imagem, que a imagem é constituída por essa luminosidade.116 O próprio Gehr reforça essa interpretação em sua definição da imagem e do plano:

Um fotograma tem a ver com uma intensidade particular de luz, uma imagem, uma composição congelada no tempo e no espaço. Um plano tem a ver com a intensidade variável da luz, um balanço interno de tempo dependente do movimento intermitente e um movimento dentro de um determinado espaço dependente da persistência da visão.117

III. A narrativa

A inclusão da narrativa como uma condição inevitável do cinema inicialmente parece um contrasenso, visto a dedicação de Frampton ao projeto modernista. Mas veremos

114 Theodor Adorno apud Annette Michelson, “Frampton‟s Sieve”, in October, nº 32, primavera de 1985,

p. 158.

115 Michelson, Id.

116Frampton, “Notes on Filmmakers”, in Jenkins, Op. cit., p. 190.

que sua elaboração do termo é bastante heterodoxa, e que o uso da “narrativa” talvez seja mais uma provocação de sua parte do que uma defesa propriamente dita do termo em seu uso corrente.

Ele começa citando um diálogo com Stan Brakhage, que, “colocando a máscara de advogado do diabo”, teria proposto a narrativa como um dos axiomas do cinema. Frampton então tenta descrever o posicionamento de Brakhage em suas próprias palavras:

TEOREMA DE BRAKHAGE: Para cada série finita de planos [“filme”] existe em tempo real uma narrativa racional de modo que cada termo na série, junto com sua posição, duração, partição e referência, pode ser perfeita e inteiramente determinada.118

Ele segue com a metáfora matemática num exemplo que funcionaria como uma prova do teorema. Ele cita a equação

p = 30 e sua expansão 6 10 6 5 3      p p p p p

como algo que pode ser determinado pela seguinte narrativa: “Um colar se quebra durante um conflito amoroso. Um terço das pérolas caiu no chão, um quinto permaneceu no sofá, um sexto foi encontrado pela garota, e um décimo recuperado pelo amante: seis pérolas permaneceram no colar”.119

Seu próximo passo é baseado em uma sugestão de Joseph Conrad, para quem a biografia de uma pessoa poderia ser reduzida a três termos: “Ele nasceu, ele sofreu, ele morreu”. Frampton descarta o primeiro e o terceiro como os limites da série; se foca no segundo como o desenvolvimento da narrativa biográfica, e o considera como a incógnita x. Diferentes narradores elaboram a equação em diferentes níveis de complexidade, construindo operações que envolvem a relação de x com outros termos. Ele apresenta então a equação

ax + b = c ,

118 Frampton, “A Pentagram for Conjuring the Narrative”, Op. cit., p. 144. 119 Ibid.

que pode ser reescrita pelo “ponto de vista” de cada um de seus elementos. Por exemplo: a = x b c  , bcax, caxb, ou mesmo 0 = c ax b

Os valores de cada termo são variáveis; a equação permanece a mesma para qualquer série de valores que mantenha essas relações. Nas palavras de Frampton, esta equação é “um padrão estável de energia pelo qual pode passar uma infinidade de tétrades numéricas”. A partir desta terminologia ele descreve a narrativa como um “padrão estável de energia pelo qual pode passar uma infinidade de personagens”.120 Vemos aqui uma espécie de redução e abstração da narrativa a seus elementos constituintes, como no formalismo de Vladimir Propp, ou como na descrição de Kenner para o método de James Joyce em Ulisses:

Todas as versões da mesma trama, independente do ponto de vista, possuem o mesmo sistema de interconexões. Podemos utilizar um termo da topologia e chamá-las de homeomórficas; Joyce viu que a trama da Odisséia e a de Hamlet eram homeomórficas, uma concentrada no pai, outra no filho, mas comparáveis na estrutura dos incidentes.121

Em uma entrevista, Frampton descreve mais diretamente sua posição sobre o papel da narrativa no cinema, e sua inevitabilidade como algo consideravelmente mais abstrato. Ele cita Brakhage mais uma vez, lembrando que este descreveu Arnulf Rainer (filme de 1960 de Peter Kubelka, constituído inteiramente por padrões alternados de fotogramas pretos e brancos, silêncios e ruídos) como a respiração de um homem que sobe e desce uma série de escadas. Esta descrição obviamente não diz respeito ao que é visto na tela – durante todo o filme, vê-se a tela completamente negra por alguns instantes, depois a tela completamente branca, às vezes em alternância extremamente rápida. A descrição de Brakhage seria uma maneira de capturar a forma geral da obra, o padrão formado pelas relações entre esses elementos. Frampton diferencia o padrão de

120 Ibid., pp. 146-147.

Arnulf Rainer daquele de The Flicker (filme de 1963 de Tony Conrad, também

constituído por fotogramas pretos e brancos),122 ao qual ele atribui um aumento e diminuição de “densidade de evento”,

muito como uma curva abstrata, como, digamos, um conto de Chekhov, em que, por exemplo, há uma crise em que duas pessoas ou uma família são separados. [...] E então dez anos depois há um pico secundário de densidade de evento em que eles se reúnem, depois do qual a curva retorna a zero.123

É evidente que a noção de narrativa de Frampton não é a mesma de Bazin ao falar da narrativa, do “relato”, como o ponto comum entre a literatura e o cinema. O relato de Bazin envolve, na totalidade dos casos descritos, uma psicologia comum, um ponto de vista sobre uma realidade possível – o que na maior parte dos casos envolve as noções de verossimilhança e plausibilidade citadas por Kenner. O mais próximo desse posicionamento que encontramos nos escritos de Frampton é sua descrição de Malone

Morre, o romance de Beckett, visto como a jornada da consciência de um personagem,

realizada pela divisão de sua unidade em duas partes: o orador e o leitor. Mas a proximidade não se mantém; Malone, como Frampton nos lembra, não é descrito com precisão, e nem o são suas ações ou o próprio espaço onde ele se encontra na ficção. A obra de Beckett é vista por ele como uma digressão consciente, um padrão organizado sobre as páginas e que realiza parte da imaginação daqueles que o encontram, enquanto o encontram. Ainda que Bazin dê importância ao estilo do autor do romance como um fato a ser considerado no processo de adaptação para o cinema, e do uso de um estilo propriamente cinematográfico para realizar a narrativa de acordo com o espírito da obra original, de maneira alguma podemos dizer que ele se refira a obras do cinema e da literatura como partilhando “uma curva abstrata”.

Em um ensaio fundamental para a integração de seu pensamento – e citado por ele mesmo como uma espécie de manifesto – Frampton desenvolve o que chama de uma “metahistória” do cinema. O termo não é definido no texto, mas por sua ampla utilização em outros campos, podemos supor que o prefixo “meta” indique o direcionamento do estudo para os fundamentos de determinada disciplina, o que implica

122 Para mais detalhes sobre as diferenças entre Arnulf Rainer e The Flicker, ver Malcolm LeGrice, “On

The Flicker”, in Peter Gidal (ed.), Structural Film Anthology (Londres: British Film Institute, 1978), pp. 135-136.

em uma abordagem que “dá um passo para trás”, realizando uma observação mais distanciada daquele campo de conhecimento, posicionando-se em suas fronteiras. Encontramos, por exemplo, na proposta de Hayden White, em que a investigação metahistórica é feita a partir das bases do discurso histórico: se todos os historiadores, independente de suas ideologias, utilizam palavras, modos de conceptualização e figuras retóricas, estes são os objetos através dos quais o metahistoriador identifica padrões no campo de estudo da história.124 Em resumo, o metahistoriador não faz história “propriamente dita”: ele estuda os modos pelos quais essa história pode ser feita.

Na busca pelos parâmetros através dos quais o metahistoriador do cinema conduziria sua pesquisa, Frampton parte da definição já citada do material fílmico, a própria superfície física da faixa de filme. Ele reforça que a ilusão espacial em profundidade e a representação do movimento contínuo são possibilidades, mas não condições inevitáveis. E acrescenta a estas a noção de que, pelo exame da lógica estrutural da faixa de filme, não encontramos evidência que permita diferenciar “material bruto” de “obra terminada” – essa diferenciação depende de uma condição social, externa ao material fílmico, portanto alheia aos seus objetivos.

Assim como o metahistoriador de White identifica os tropos literários que constituem o discurso histórico, Frampton apresenta sua metahistória como uma maneira de identificar os princípios envolvidos na composição do discurso fílmico. A descrição do campo histórico de White é análoga à descrição do campo do cinema para Frampton, e é essa a direção tomada por ele ao apresentar uma metáfora que ele chama de cinema infinito:

Uma câmera polimorfa sempre esteve ligada, e estará para sempre, com sua lente focada em todas as aparências do mundo. Antes da invenção da fotografia estática, os fotogramas do cinema infinito eram vazios, como pontas pretas; até que poucas imagens começaram a aparecer sobre a interminável faixa de filme. Desde o nascimento do cinema fotográfico, todos os fotogramas estão preenchidos por imagens.125

124 Ver a introdução de White em Metahistória: A Imaginação Histórica do Século XIX (São Paulo:

Edusp, 1992).

A metáfora de Frampton evidencia mais uma vez a afinidade de seu pensamento com as ficções de Jorge Luis Borges. Seu cinema infinito é como a “Biblioteca de Babel” do conto homônimo: a definição dos elementos e do conjunto de todas as possibilidades envolvidas em suas articulações. Um “campo puramente combinatório”, para usar uma expressão de Paul Valéry.126

A relação do cinema infinito de Frampton com a realidade sensível é obviamente diferente daquela proposta pelo cinema total de Bazin. Enquanto Bazin busca os modos pelos quais o cinema poderia manter a integridade do real, e principalmente como as condições sociais e históricas do cinema propõem novos métodos e interpretações para a própria realidade, Frampton estipula o que parece ser uma transposição de sua definição da realidade como “a gramática e a sintaxe da fotografia”. Se todos os fotogramas são determinados pela estrutura material da tecnologia cinematográfica, a composição fílmica se torna o ato de apreender os elementos e ordená-los de modo a criar o sentido desejado. Duas ordenações dos mesmos elementos configuram diferentes obras, como visto nos filmes de Kubelka e Conrad. Da mesma forma, uma obra não necessita gerar material próprio, original; pode-se reutilizar material alheio para que novas relações sejam estabelecidas, como em Tom, Tom, the Piper’s Son (Ken Jacobs, 1969) ou Outer Space (Peter Tscherkassky, 2000).