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O cinema de vanguarda e a mímese da consciência

I. Diferenças internas

Os três pontos levantados por Andrew se confirmam nos textos comentados de Rohmer, Rivette, Astruc e Mourlet: os quatro partem da objetividade fotográfica, tal como descrita por Bazin, em sua extensão ao movimento e ao som. O “princípio realista” – que podemos considerar como a tendência centrífuga aplicada não apenas ao quadro, mas também à cena e à própria narrativa – está presente de alguma maneira em todos

eles, ainda que em diferentes níveis. Essas diferenças devem ser apontadas, pois o desdobramento da essência realista como proposta por Bazin não forma uma escala bidimensional, em que cada um dos nomes pode ser disposto de maneira unívoca, mas se aproxima do modelo tridimensional do globo, com a consideração de outras coordenadas. Em resumo, existem diferenças quantitativas, de um maior ou menor número de pontos consonantes, mas também qualitativas, com diferentes modos e acréscimos servindo como pontos dissonantes

Rohmer parece o mais próximo de Bazin tanto na maneira de argumentação como em seu gosto particular e nos tópicos que atraem seu interesse. É nos textos de Rohmer que encontramos algo como uma continuação dos posicionamentos de Bazin, ou de uma extensão de sua postura a tópicos adjacentes. O que Bazin aponta em relação ao quadro ou à cena, por exemplo, Rohmer o faz em relação à cor e ao diálogo. A concepção de uma realidade unificada e organicamente determinada, tendo sua imanência revelada por encontros que resultam de uma interferência mínima, ou ainda de uma abstração que faz transparecer uma simpatia solene entre os elementos da representação sensível, afirmando algo que se encontra além de sua superficialidade – estes são pontos importantes tanto para Rohmer como para Bazin. Há uma concordância na visão da realidade como uma entidade com valor espiritual, uma postura quase religiosa em relação a ela, o que Rohmer manifesta mais claramente em seu reconhecimento da presença divina em Stromboli.272 Em Minha Noite Com Ela, essa visão surge nas próprias discussões entre os personagens, e é questionada pelo narrador como um jogo entre acaso e predestinação, ou seja, entre o quão fortuitos são aqueles eventos, e o quanto deles é parte de um plano superior, uma integração necessária.273

Nos textos e filmes de Rivette também encontramos algum interesse na abordagem da realidade como um organismo, um todo com uma pulsação particular. Mas enquanto Rohmer parece ver a narrativa como um núcleo que atrai ou conduz os elementos dessa realidade – onde talvez possamos reconhecer seu temperamento literário, em sua insistência na palavra como um veículo dramático –, Rivette se volta mais diretamente para o “arejamento” dessa realidade através da articulação puramente espaço-temporal. Essa articulação não parece ser o meio para a revelação de uma

272 Cf. Rohmer, The Taste for Beauty., pp. 124-127.

273 A crítica de Mourlet sobre o filme de Rohmer enfatiza este ponto. Ver “Rohmer ou La mise en scène

du langage”, in Sur un art ignoré ou La mise en scène comme langage (Paris: Ramsey, 2008), pp. 260-265.

unidade subjacente, mas parece ser ela própria o fim da mise en scène, como em seus elogios a Preminger. A dialética entre ordem e acaso, entre o controle e o improviso, está presente de maneira mais abstrata na obra de Rivette que na de Rohmer. O Raio

Verde (Le Rayon vert, 1986), de Rohmer, converge para um fenômeno que sublima o

conflito da protagonista, num encontro entre os movimentos internos, da psicologia da personagem, e os movimentos externos, do sol que desaparece no horizonte, numa cena que em alguns aspectos se assemelha à conclusão de Stromboli. Em Rohmer é possível haver revelações deste tipo, elas são mesmo os temas dos filmes, a substância que resulta ao final do processo.274 Nos filmes de Rivette, essa mesma realidade não parece invadir as tramas que são traçadas entre os personagens: estas são perseguidas com um olhar amplo o bastante para que percebamos sua integração aos espaços (seja nos prédios e ruas de Paris ou nas praias e regiões montanhosas), mas há uma opacidade na caracterização e na resolução psicológica, quase uma rarefação do drama.

A narrativa tem uma importância evidente para Astruc como um princípio de organização. O ponto em que ele parece diferir de Rohmer é na importância dada à consciência sobre os elementos, ao que ele chama de expressividade plástica e seus encadeamentos. Astruc comenta como o desenvolvimento do cinema se daria por um afastamento da “tirania do visual”, se colocando contra a força bruta dos sentidos, retomando as preocupações de Bazin; mas o grau de controle inevitável, parte da equação entre cineasta e realidade, é consideravelmente elevado quando o estilo passa a seguir uma “ideia”. Vemos em suas descrições e na própria composição de seus filmes uma preocupação com a parcela de controle que submete os dados sensíveis a um princípio que reorganiza e ressignifica esses dados sob um novo sentido. Este sentido ainda deve residir na unidade espacial, e ser coordenado através de um ritmo próprio dos eventos representados, mas a mise en scène, identificada com a composição no cinema, se torna a marca de um desígnio consciente, o que sugere uma projeção do autor sobre a realidade, que se torna o meio para a encarnação da ideia. Astruc parece concordar com a descrição de Mitry de que no cinema “a realidade é empregada em sua própria narração”.275 A imagem nos absolve da necessidade de imaginar os conteúdos,

274 É importante notar que a mesma imagem do sol tocando o horizonte é comentada por Kubelka, mas

tendo em vista seus aspectos puramente sensoriais, e é utilizada como referência para uma composição baseada na fragmentação e reorganização da realidade. As duas modalidades se encontram num mesmo evento.

mas exige que imaginemos com eles, e a partir das relações feitas entre eles: a imagem não é o fim, mas o início da composição.

Mourlet concorda com os pressupostos de Bazin, mas é mais categórico ao confrontar os filmes com seus ideais. Os tópicos tratados por Bazin ou mesmo Rohmer, se vistos como entidades particulares, têm lugar no sistema de Mourlet, mas ali também parece estar uma parte do controle almejado por Astruc. O fator antropocêntrico em Mourlet é a chave para o entendimento de sua distância de Bazin: é o que determina tanto a relação entre o cineasta e o mundo, como entre os personagens e o mundo. As variações microscópicas na natureza que Rohmer buscava atrair só têm lugar em Mourlet quando subordinadas a esse confronto mediado por um centro dramático na figura do ator, que coordena e serve de referência tanto para a câmera (para a manutenção de um olhar “puro”, direto, ou seja, que não expresse nada independente do drama) quanto para as ações realizadas na cena. O apreço de Rohmer e Rivette pelo neorrealismo, e que parece estar na base de suas explorações do caráter documental no interior da narrativa, é evitado por Mourlet, assim como o elogio ao expressionismo de Murnau empreendido por Astruc. Nos filmes eleitos por Mourlet, reconhecemos acima de tudo a solidez da construção, a gravidade interna que regula os planos como os corpos em cada cena, que foca a energia dramática em sua absoluta necessidade.

A descrição de Sitney para a trajetória da vanguarda americana tem o cinema estrutural como uma espécie de ponto mais elevado. Há uma concordância com o ideal de Frampton no sentido de que o direcionamento seguido pelos cineastas citados por Sitney se dá no abandono gradativo do realismo, da cena, do personagem e da narrativa, para que o filme possa focar a atenção em sua própria construção. A descrição de Noel Carroll para Serene Velocity é reveladora: o filme opera como um experimento, ou uma máquina de pensamento, e o que ele pensa é sua própria condição, sua materialidade e exploração de categorias propriamente cinematográficas.

A discordância entre Frampton e Brakhage é relacionada ao quanto de “ordem” deve reger a composição dos filmes, e o quanto dessas ordens pode ser baseado em algo estabelecido à parte da experiência do próprio cineasta. Em Frampton, o desejo por essa ordem se reflete na linguagem, mas também em como ele busca ordens não-verbais que incluem procedimentos visuais e sonoros apresentados sistematicamente. A obra de Brakhage é marcada pela renúncia constante a diferentes tipos de ordem, e pelo uso dos materiais visuais como elementos a serem dissolvidos num mesmo fluxo. A tentativa de

Brakhage é a de mergulhar no caos das aparências e traçar sobre elas um movimento que possa refletir tanto sua interioridade, sua própria experiência, como documentar a riqueza visual com a qual ele se deparou nesse percurso. Há um interesse pela posição do cineasta como a força por trás da câmera, mas também por aquilo que ele observa através dela. A descrição de Sitney para a herança romântica na vanguarda americana – em particular na aspiração do filme estrutural de se tornar um objeto que não deseja se referir a algo, e que quer apenas ser – é mais presente em Frampton; em Brakhage, o romantismo toma a forma de um desejo pelo inefável, pela fusão entre consciência e mundo, sendo ambos libertos das amarras lógicas e verbais.

Michael Snow demonstra uma preocupação constante com o espaço contínuo e em profundidade que encontramos em todo o cinema realista. Esse espaço não aparece com frequência na obra de Frampton, especialmente como o próprio objeto de investigação. Ainda assim, Snow e Frampton compartilham um gosto pelos sistemas geradores; a inclusão de ambos na categoria do cinema estrutural é claramente devida à repetição de operações por todo o decorrer de algumas obras, como se o princípio coordenador, o fator que estabelece o lugar e a função de cada uma das partes, permitisse a percepção de uma progressão no decorrer das repetições e variações. Comparemos, por exemplo, o ritmo fixo de um segundo das imagens alfabéticas na segunda seção de Zorns Lemma com as panorâmicas de Back and Forth, ou a exploração das possibilidades em La Région Centrale com o “preenchimento” da mesma seção do filme de Frampton por imagens naturais. Sobre a relação entre a linguagem e o aspecto concreto das imagens e dos sons, Frampton parece mais voltado à manutenção de uma tensão constante entre essas esferas, ou a passagem de uma configuração a outra, enquanto Snow parece mais voltado à exploração das possibilidades de maneira puramente descritiva. O filme de Snow que constrói uma progressão mais clara é Wavelength, baseado na oscilação entre os diferentes registros; os outros filmes comentados parecem manter o mesmo procedimento sem que a estrutura geral desenvolva as tensões, como Frampton faz em Critical Mass, por exemplo.

As exigências de Kubelka coincidem com as descrições teóricas de Frampton, e em algum sentido ele é bastante próximo dos cineastas estruturais, a ponto de Sitney considerá-lo um dos antecessores do gênero, junto com Warhol. Mas a forma em Kubelka nunca é perceptível de imediato; ainda que suas estruturas também sejam

baseadas em princípios simples, o acúmulo e a insistência na articulação ao nível do fotograma tornam os filmes mais próximos dos processos naturais que ele descreve. Frampton também reconhece o fotograma como unidade elementar, mas explora consideravelmente a continuidade e o espaço fotográfico, o que Kubelka quase sempre rejeita. Kubelka parece representar um dos casos-limite da descrição de Frampton, atravessando os tópicos do cinema estrutural, mas saindo deles de uma maneira diferente daquela de Brakhage: não pela rejeição da ordem, mas por um excesso de ordem que cria a impressão de desordem, como se sob a ordem pudéssemos vislumbrar a desordem, e olhando mais profundamente, encontrar uma nova ordem.

Podemos perceber entre Frampton, Sitney, Brakhage, Snow e Kubelka uma relação semelhante àquela descrita em torno de Bazin: pontos de encontro e diferenciação que não sugerem uma simples escala quantitativa, mas um espaço tridimensional, qualitativo, com a revelação das diferentes faces, combinações e aplicações das mesmas ideias. Se os ideais de Bazin e Frampton são os pólos do globo aqui descrito, os outros autores surgem como continentes que possuem partes mais próximas dos pólos, fazendo fronteiras uns com os outros, e em algumas de suas regiões – em diferentes proporções – se direcionam à linha imaginária que separa os dois hemisférios, onde as preocupações parecem se cruzar.

Para efetuar o cruzamento das duas vertentes, podemos recorrer a pelo menos duas estratégias, reconhecendo semelhanças nas preocupações que levam cada um dos autores a se afastarem dos pontos mais extremos, e observando como uma região intermediária parece se delinear através das diferentes trajetórias. A primeira estratégia seria a busca por algo que, mesmo com as dissonâncias, sugere alguma complementaridade, uma espécie de “igualdade na diferença”; a segunda seria a busca por uma continuidade possível, um terreno comum para as duas vertentes.