• Nenhum resultado encontrado

A definição do cinematográfico pelo não-cinematográfico

II. Cinema e teatro

O teatro é visto como a principal referência para a relação entre a presença dos objetos (especialmente os atores), a experiência do espaço e a construção dramática como um todo. A “arte específica do drama” é uma influência praticamente inescapável para o cinema como pensado por Bazin.78

76 Bazin, “Um filme bergsoniano: Le Mystère Picasso”, in Op. cit., p. 212. Originalmente em Cahiers du

Cinéma, nº 60, junho de 1965.

77 Ibid., pp. 214-215. Bazin comenta brevemente o que considera “a tradição mais interessante do

desenho animado”: nomes como Len Lye e Norman McLaren, que, segundo ele, realizariam a autonomia dessas formas abstratas, sem “justificá-las”, concebendo apenas a transformação lógica do espaço. A animação parece ser considerada por ele como um ramo isolado da arte cinematográfica, quando não uma arte distinta.

Para marcar mais claramente as diferenças, Bazin comenta duas possibilidades de apropriação do teatro pelo cinema: a simples fotografia da peça (o “teatro filmado”) e a adaptação da peça às exigências da arte cinematográfica. A primeira cria problemas semelhantes ao já citado uso da pintura, pela distância entre as condições que permitem a representação. Ele resume:

Se por cinema entende-se a liberdade de ação em relação ao espaço, e a liberdade do ponto de vista em relação à ação, levar para o cinema uma peça de teatro será dar a seu cenário o tamanho e a realidade que o palco materialmente não podia lhe oferecer. Será também liberar o espectador de sua poltrona e valorizar, pela mudança de plano, a interpretação do ator. Diante de tais mises-

en-scène, deve-se convir que todas as acusações contra o teatro filmado são

válidas. Mas é que, precisamente, não se trata de mise-en-scène. A operação constituiu apenas em injetar, à força, o “cinema” no teatro. O drama original, e com muito mais razão o texto, encontram-se ali fatalmente deslocados. O tempo da ação teatral não é evidentemente o mesmo que o da tela, e a primazia dramática do verbo fica defasada pela dramatização adicional que a câmera dá ao cenário. Enfim, e sobretudo, uma certa artificialidade, uma transposição exagerada do cenário teatral é rigorosamente incompatível com o realismo congênito do cinema.79

Um ponto crucial que, para Bazin, separa o teatro do cinema, é que o primeiro está fundado na convenção, enquanto o segundo possui uma identidade com a natureza. Assim como o quadro da pintura era interpretado como espaço de representação de um universo ideal, aqui o cenário teatral é visto como um lugar circunscrito e que volta todas as aparências para seu próprio interior. Sua moldura, nesse caso, é sua própria arquitetura, que separa o público da cena, vista como “um microcosmo inserido à força no universo, mas essencialmente heterogêneo à natureza”.80 O mesmo termo utilizado para a pintura retorna para diferenciar a tela do palco:

É bem diferente o que acontece no cinema, cujo princípio é negar qualquer fronteira para a ação. O conceito de lugar dramático não é apenas estranho, mas essencialmente contraditório à noção de tela. A tela não é uma moldura, como a

79 Ibid., p. 164. 80 Ibid., pp. 181-182.

do quadro, mas uma máscara que só deixa uma parte do evento ser percebida. Quando um personagem sai do campo da câmera, nós admitimos que ele escapa ao campo visual, mas ele continua a existir, idêntico a si mesmo, num outro ponto do cenário, que foi mascarado. A tela não tem bastidores, não poderia ter sem destruir sua ilusão específica, que é fazer de um revólver ou de um rosto o próprio centro do universo. Ao contrário do espaço do palco, o da tela é centrífugo.81

O fracasso do teatro filmado viria da inabilidade de reter a energia dramática em outro espaço – o da tela. Um problema de realismo, como Bazin exemplifica em sua crítica ao “caligarismo”, que “quis substituir-se ao realismo do cenário sob a influência do teatro e da pintura”. O realismo existe como um denominador comum entre a imagem cinematográfica e o mundo em que vivemos, o que passa por sua concepção espacial, essencialmente diferente daquelas da pintura ou teatro. Essa realidade do espaço, ele diz, é a única da qual não podemos desprover a imagem cinematográfica.82

A comparação com o teatro também reforça o que Bazin chama de um caráter anti-antropocêntrico do cinema. O fato de depender da convenção faz com que o teatro só exista com o homem, o que pode ser dispensado pelo cinema. “Uma porta que bate, uma folha ao vento, ondas que lambem uma praia podem aceder à potência dramática”. Tem importância decisiva na mise en scène o fato de que no cinema o drama vai do cenário ao homem (enquanto no teatro ele parte do homem).83

A construção do mundo dramático no teatro é feita pela presença efetiva dos atores, necessitando de uma abstração por parte do espectador. Essa presença não é o fim, mas o meio; ela deve ser transformada em um objeto imaginário, ainda que dela permaneça uma consciência recíproca por parte de ambos (ator e espectador). No cinema, por outro lado, “contemplamos solitários, escondidos num quarto escuro, através de persianas entreabertas, um espetáculo que nos ignora e que participa do universo”.84

É igualmente no que diz respeito à ontologia que a eficácia do cinema tem sua origem. É errôneo dizer que a tela é absolutamente impotente para nos colocar

81 Ibid., pp. 182-183. 82 Ibid., p. 185. 83 Ibid., p. 179. 84 Ibid.

“em presença” do ator. Ele faz isso à maneira de um espelho (que, é ponto pacífico, substitui a presença do que se reflete nele), mas de um espelho com reflexo deferido, cujo aço retivesse a imagem. É verdade que, no teatro, Molière pode agonizar no palco e que temos o privilégio de viver no tempo biográfico do ator; assistimos, entretanto, no filme Sangue de toureiro [Brindis a

Manolete, Florián Rey, 1948], à morte autêntica do célebre toureiro, e, se nossa

emoção não é tão forte quanto se estivéssemos na arena naquele instante histórico, ela é, no entanto, da mesma natureza. Não reganhamos o que perdemos do testemunho direto graças à proximidade artificial que o aumento da câmera permite? Tudo se passa como se, no parâmetro Tempo-Espaço que define a presença, o cinema só nos restituísse efetivamente uma duração enfraquecida, diminuída, mas não reduzida a zero, enquanto que a multiplicação do fator espacial restabeleceria o equilíbrio da equação psicológica.85