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Do cinema total às propriedades da mise en scène

III. O problema da expressão

No artigo célebre em que cunha a expressão “câmera-caneta”, no final dos anos 40, Alexandre Astruc defende que o cinema caminha na direção das outras artes, no sentido

de que “irá se desfazer pouco a pouco desta tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do concreto, para se tornar um meio de expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita”. Numa primeira leitura, a visão de Astruc é extremamente próxima da de Frampton, em seu projeto do cinema como uma contraparte da linguagem. O que parece importar para ele nessa caminhada é a diminuição da presença ontológica dos objetos, de sua imposição espacial pura – em outras palavras, do que constituía a veracidade e força do cinema para Bazin, Rohmer e Rivette. Astruc parece se aproximar ainda mais de Frampton ao dizer que o problema fundamental do cinema é “a expressão do pensamento”.189

Mas ao descrever o núcleo do que seria essa “linguagem” do cinema, ele revela sua filiação ao realismo de outra forma:

Todo filme, por ser um filme em movimento, ou seja, que se desenrola no tempo, é um teorema [...]. Essa ideias, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes. Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo. É explicitando essas relações, desenhando as tangentes, que o cinema pode ser verdadeiramente o lugar de expressão de um pensamento.190

A mise en scène é para Astruc, como para Rivette, sinônimo da composição do filme. O que parecia na superfície uma negação dos aspectos realistas termina por ser novamente a submissão destes a um desígnio, uma intenção que conduz a matéria concreta da realidade visível, em continuidade (ou seja, unificada no espaço e no tempo), ao seu objetivo. A mise en scène, ele continua, “não é mais um meio de ilustrar ou apresentar uma cena, mas uma verdadeira escritura”. O caráter de linguagem do cinema, o que possibilita a expressão individual de um cineasta, não se encontra na articulação através da montagem, como pensada por Eisenstein, ou da abstração da própria imagem, mas no olhar que submete o real a um princípio, a uma ideia. Dessa

189 Astruc, “Naissance d‟une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”, in L’écran français, nº 144, março

de 1948. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/stylo.htm. Acesso em julho de 2014. Tradução de Matheus Cartaxo.

forma, há ainda uma ligação com a postura realista de Bazin. A mise en scène, afinal, é vista como um olhar ativo e incisivo sobre o mundo, sobre o todo utilizado na construção do filme, a narrativa, seus elementos constituintes, o cenário, os objetos, os personagens em suas relações com a câmera – estática ou em movimento.191 O princípio realista, a aceitação de uma unidade a priori, permanece: é a esta unidade que o compositor deve se reportar, pois sua matéria é inextricavelmente ligada a ela. Suas ideias, sejam elas quais forem, surgem em relação a essa unidade. A mise en scène para Astruc é “a organização das trevas à luz de uma idéia fixa”.192

O ponto divergente é, portanto, a noção de que deve haver uma ideia por trás da encenação, um fator controlador, que guie o sentido e o movimento interno da realidade representada. O que em Rivette era apenas um dos pólos da composição, em Astruc parece ser o principal. Ele exemplifica, ao falar de Murnau, que cada escolha por parte do cineasta expressa um aspecto, e que é a coordenação destes que forma a ideia geral da cena. Ele se refere à “história do plano” – o resultado de sua direção, ângulo, densidade, tonalidade e ritmo próprios, seguindo um princípio comum. O desenvolvimento desses fatores “não será em definitivo nada além da realização no tempo de uma fatalidade plástica original em que tudo que deverá se desenlaçar nesses poucos segundos é dado de uma vez por todas”.193

Há neste ponto uma proximidade entre a proposta de Astruc e algumas das ideias de Eisenstein. Ao se perguntar qual seria o método para retratar os eventos no cinema de modo que eles não sejam apenas registrados e reapresentados, mas para que uma atitude em relação a eles também seja proposta, Eisenstein diz que uma possibilidade é que o objeto e a atitude coincidam – ele exemplifica com o que seria um correspondente verbal: “a alegre alegria”. “Em outras palavras, o herói se entristece e, em uníssono, a natureza se entristece, e a iluminação, algumas vezes a composição do plano e (mais raramente) o ritmo da montagem – porém mais frequentemente apenas acrescentamos música”.194 Outras possibilidades envolvem os diferentes tipos de contraste e conflito

191 Astruc, “Da Imagem à Ideia”. Disponível em:

http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/imagemideia.htm. Acesso em julho de 2014. Tradução de Bruno Andrade.

192 Ibid.

193 Astruc, “Le feut et la glace”, in Cahiers du Cinéma, nº 18, dezembro de 1952. Disponível em:

http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/feu.htm. Acesso em julho de 2014. Tradução de Bruno Andrade.

194 Eisenstein, “Sobre a estrutura das coisas”, in A Forma do Filme (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002),

entre o objeto e a atitude. Dessa forma a composição pode se apoderar dos fenômenos para representar, através deles, uma única lei estrutural. Astruc parece indicar algo semelhante, ainda que por outra via, sem privilegiar a montagem e o choque entre diferentes imagens.

Jacques Aumont comenta que a “escrita cinematográfica” para Astruc seria talvez algo próximo dos ensaios filmados de Chris Marker e Jean-Luc Godard, isto é, mais dependente dos procedimentos de montagem e da resolução da “ambiguidade intrínseca da imagem”. O cinema de Astruc, para Aumont, não seria um exemplo desse direcionamento – que ele vê em uma obra como História(s) do Cinema (Histoire(s) du

Cinéma, Godard, 1988-98). Mas em outro momento Aumont diz que talvez o cinema de

Robert Bresson seja um exemplo mais adequado à aspiração de Astruc.195 Bresson desconfia da imagem que é simplesmente bela, ou expressiva; ele chega a estender essa desconfiança ao texto, à atuação, à montagem, à composição como um todo. Se há um ideal para Bresson, é a neutralidade das partes, em que cada uma delas só possui função, sentido e força dentro da organização elaborada pelo cineasta. Em outras palavras, um cinema que não represente ou expresse, mas que figure um pensamento.

Os textos e filmes de Astruc tornam a questão mais complexa, e se sua postura pode ser resumida, talvez ela se aproxime mais do segundo ponto proposto por Aumont, ou seja, mais da postura de Bresson do que de Marker ou Godard. Mas Astruc não é contrário à “expressividade”; ele defende, num texto altamente elogioso, que é em Murnau que “o expressionismo alemão terá encontrado o seu florescimento”. A arte de Murnau é descrita como sendo baseada na transfiguração do real, uma “orquestração lírica e apaixonada de um visual exacerbado por um senso plástico impressionante, em que a plástica no entanto se recusa incessantemente a ser recebida como tal”.196 O drama da luz e da sombra em Fausto (Faust, 1926) é um dos exemplos mais evidentes do que Astruc reconhece: aqui a plasticidade se torna a concretização dos temas pelas figuras desenhadas e esculpidas pela iluminação, pela própria densidade da luz entrevista pela fumaça ou difusa por outras superfícies, pelo jogo de efeitos que move e reconfigura os personagens e os cenários (as maquetes, as aparições de Mefistófeles). Em A Última Gargalhada (Der letzte Mann, 1924), Murnau abdica dos intertítulos e constrói toda a narrativa a partir da perspectiva do protagonista, com a câmera se

195 Cf. Aumont, O Cinema e a Encenação, op. cit., pp. 68-70. 196 Astruc, “Le feut et la glace”, in Cahiers du Cinéma nº 18, p. 11.

movimentando e alterando o campo de visão (também com efeitos, filtros e distorções) para traduzir diretamente seu estado psicológico.197 Em ambos os casos, há um controle óbvio do cineasta sobre esses aspectos, o que reforça o ponto sobre a concretização da ideia através dos elementos cênicos. O importante é que essa plasticidade esteja na

realidade, e não apenas no aparato fílmico.

Astruc comenta como em O Poço e o Pêndulo (Le Puits et le Pendule, 1964) ele se deparou com questões ligadas à aplicação prática dessa concepção, na adaptação literária do conto de Edgar Allan Poe. O texto original, ele diz, trata da “narrativa de um pesadelo”, “da primeira à última linha um raciocínio ou uma sequência de raciocínios de uma lógica perturbada”. Uma progressão mental, portanto; a exploração dos meandros de um movimento interno, psicológico, e que, seguindo a ocasião proposta por Poe, ocorre com um homem aprisionado numa cela, acorrentado, à espera de uma lâmina que balança pendurada sobre o teto e que dele se aproxima lentamente. O filme de Astruc é quase sinônimo da descrição dos espaços em que ocorre a ação, começando com os corredores que levam à cela enquanto ouvimos a narração e finalmente chegando ao prisioneiro, cercado por elementos que a câmera logo se põe a mostrar, “ligados uns aos outros, passando de uns aos outros, Poço, Pêndulo, um prato cheio de uma refeição gordurosa, ratos, correntes, isto quer dizer os objetos e seres mais concretos, mais reais, as súplicas, dispostas aqui numa ordem rigorosa para servir de limite a um pensamento que nunca cessa de funcionar”.198 No sistema fechado da cela, esses elementos têm poucas relações possíveis, e o andamento geral da ação é medido pela descida do pêndulo. O prisioneiro lamenta, estremece, considera seus entornos, até que os ratos roem as cordas e o libertam a tempo de fugir do corte fatal. Mas em seguida, outro problema se coloca, pois as paredes começam a se mover, ameaçando a constrição completa do espaço da cela, o que logo se revela tendo outra medida: a presença de um poço, para o qual o personagem aos poucos é empurrado.

Nesse contexto, não resta outra alternativa para Astruc senão o respeito pela fisicalidade do espaço, pois é através da altura, largura e comprimento da cela que o drama do personagem se realiza. Bazin se referia aos “fatos puros e insignificantes” de

197 Também aqui Astruc parece se aproximar do Eisenstein de “Palavra e imagem”, in O Sentido do

Filme (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002), pp. 13-19. Eisenstein diz que o objetivo do cinema deve ser “a exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação, do movimento interno da sequência cinematográfica e de sua ação dramática como um todo”. A própria seleção das imagens deve considerar os aspectos do tema a serem justapostos para que suscitem no espectador a “imagem do tema”. Ver também “Forma e conteúdo: prática”, p. 106.

Rossellini; Astruc parece diminuir consideravelmente essa “insignificância” por sua insistência na geometria da cena, na interdependência dos objetos, ainda que não efetue uma análise como a de Griffith. Se a história do plano é a realização no tempo “de uma fatalidade plástica original”, a história da cena é a decorrência da ordem dos planos, e a do filme a decorrência da ordem das cenas – uma lógica que inclui a plasticidade do cenário e dos próprios planos. O vocabulário e as referências de Astruc remetem às notas de Paul Valéry sobre o funcionamento da tragédia clássica:

A tragédia clássica, um experimento laboratorial em uma sala fechada – Pessoas, coisas e eventos, reduzidos ao que é necessário para os propósitos do argumento em questão. Eles não possuem existência fora da cena, fora daquela trama particular. Eles são simplesmente partes de uma única cadeia de circunstâncias. Eliminação do acaso – ou de acontecimentos casuais. Em tudo „clássico‟, leis naturais (que não possuem um rosto humano) são postas de lado – e o caos das coisas, seu desdobramento e sobreposição, é negado. A realidade é substituída pelas regras da arte, que são finitas, calculadas; e por seres racionais.199

A preferência de Astruc por construções claramente ordenadas e sua tendência a estruturar as narrativas nos moldes clássicos remetem ao elogio de Rivette sobre o controle de Lang, com o diferencial que Astruc não parece realizar a mesma “negação” dos elementos, e sim o potencial de certa forma catártico desse controle, direcionado aos seus limites.

Em Évariste Galois (1965), Astruc mostra a última noite do famoso matemático, morto num duelo ainda jovem. Vemos a obsessão de Galois com o manuscrito que deixará para a posteridade, em que elabora sua teoria dos grupos, enquanto amigos tentam persuadi-lo a se preparar para o duelo iminente.200 Acompanhamos o protagonista no que parece ser um estábulo, onde pratica muito brevemente o tiro ao alvo. A câmera acompanha Galois em suas caminhadas de um lado para o outro enquanto é repreendido por outros personagens – a angulação sendo alterada apenas para enviar nosso olhar ao ponto ao qual ele se direciona. O mesmo princípio é repetido

199 Valéry, in Stimpson, Op. cit., p. 257.

200 Frampton se refere à teoria dos grupos de Galois como “a metahistória da matemática”, uma disciplina

que descreveria as relações possíveis dentro da matemática. Ver “For a Metahistory of Film”, in Jenkins, Op. cit., p. 133.

no duelo. Acompanhamos Galois pela floresta, em movimentos retilíneos, até o espaço em que os assistentes o esperam, uma clareira ampla sob um céu límpido. Tem início então a coreografia que precede o duelo propriamente dito, na caminhada dos assistentes para marcar os pontos em que cada um dos participantes deverá se colocar. A câmera os acompanha, traçando no solo o perímetro que é ao mesmo tempo a razão social do evento e o princípio de composição, a coordenação formal que Astruc projeta sobre a cena. O resultado é esperado, a morte de Galois já estabelecida como um fato; resta a demonstração do teorema que é sinônimo da “ideia” do filme, a ênfase em algumas de suas qualidades, a percepção do drama do personagem que ecoa na música, na fuga dos outros participantes ao som da polícia e no movimento final da câmera, que mostra o matemático caído na estrada.