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Os comentários de Frampton sobre fotografia se revelam mais numerosos que os de Bazin, consequência de sua atividade artística, tendo se dedicado à fotografia antes do início de sua carreira como cineasta. Suas reflexões tomam a forma de críticas dos nomes tomados por ele como referências pessoais, seu próprio “conjunto de monumentos”. Ensaios sobre Muybridge, Paul Strand e Edward Weston, além de outros fotógrafos (como Fox-Talbot e Marey) abordados indiretamente em textos sobre questões específicas, são os pontos de partida para explorar os tópicos de seu interesse, nos quais reencontramos alguns aspectos do seu mito.

Assim como Bazin, Frampton apresenta uma narrativa que determina a posição do cinema no sistema das artes. Para descrever o surgimento da fotografia, ele propõe que vejamos cada obra de arte como possuindo duas partes: uma “estrutura deliberada”, formada pelos elementos e operações aparentes, conscientemente disposta pelo artista, e uma “subestrutura axiomática”, formada por tudo que o artista, conscientemente ou não, considerou auto-evidente o bastante para não justificar. Axiomas estão sujeitos a alterações, mas se a subestrutura é entrevista apenas através da estrutura, eles permanecem inconscientes; para que as raízes da arte possam ser interpretadas, a atenção deve se voltar diretamente para os axiomas.45

A fotografia, para Frampton, surge num momento em que “se sabia o que era arte”. As suposições axiomáticas estavam estabelecidas, e no caso da fotografia, suas suposições eram aquelas da pintura. Dessa forma, as condições estavam determinadas: a fotografia, como a pintura, imitava a natureza através de imagens. No final do século XIX, a pintura começa a examinar suas próprias suposições e descarta aquelas entregues à fotografia, que havia se bifurcado: de um lado, o “registro fotográfico” (o potencial utilitário das artes mecânicas); do outro, a “arte fotográfica” (o potencial estético, como nas belas-artes). O primeiro segue seu próprio caminho, enquanto a segunda imita a pintura tradicional.46 Seguir o próprio caminho, nesse caso, diz respeito ao confronto com a subestrutura axiomática da fotografia, suas condições específicas, inevitáveis.

45 Cf. Frampton, “Meditations around Paul Strand”, in Jenkins, Op. cit., p. 131. Originalmente em

Artforum, Vol. 10, nº 6, fevereiro de 1972.

Em princípio, seria possível livrar uma arte de tudo, menos de suas próprias especificidades. Podemos nos ver livres de pessoas, animais, objetos, paisagens, e ainda assim ter uma pintura (“um código desprovido de tudo exceto sua própria descrição”). Mas a fotografia parece impossível de ser dissociada da mesma maneira, pois ao afirmar a existência de seu pretexto, ela parece depender dele ontologicamente. A natureza (“tudo do outro lado da câmera”) é a gramática, e também a sintaxe da fotografia. Se tentássemos livrar a fotografia de suas especificidades, teríamos uma imagem branca, e se tentássemos livrar a impressão fotográfica teríamos apenas um pedaço de papel. Nas palavras de Frampton, “não podemos fazer uma fotografia que seja uma imagem de

nada”.47

Essa tendência à autodefinição, à determinação das especificidades, é um procedimento tipicamente modernista, que Clement Greenberg identifica como sendo “a intensificação da tendência autocrítica iniciada pela filosofia kantiana”. O cerne do modernismo estaria no uso de métodos característicos para que uma discipline critique a si mesma, para afirmá-la mais firmemente em sua área de competência. Segundo Greenberg, as vanguardas modernistas enfatizaram o “instinto de autopreservação das artes”. As belas-artes, na concepção iluminista, procuraram demonstrar quais tipos de experiência deveriam ser imitados, e que por si só seriam válidos; a via do modernismo, por outro lado, consiste na demonstração do que é irredutível a cada arte, seu terreno particular, exclusivo. A tarefa da crítica modernista é, portanto, eliminar efeitos compartilhados com outras artes. Surge assim a noção de que a garantia de eficiência de uma arte, a definição de sua pureza, coincide com a definição de seu próprio meio.48 As teorias de Batteux, Mendelssohn e Lessing, ao tentar delinear como cada arte tornaria possível a imitação de acordo com diferentes meios, são de certa forma os primeiros passos para a vertente autocrítica que resulta no modernismo. À homogeneidade do objetivo das artes se soma a heterogeneidade de seus meios.

Para Frampton, Weston foi o primeiro a propor essa abordagem na fotografia, identificando a obra com seu próprio material. Isso exige que se determine a natureza do

47 Frampton, “Impromptus on Edward Weston: Everything in its Place”, in Jenkins, Op. cit., p. 141.

Originalmente em October, nº 5, verão de 1978.

48 Clement Greenberg, “Modernist Painting”, in John O‟Brien (ed.), Clement Greenberg – The Collected

Essays and Criticism, vol. 4: Modernism with a Vengeance, 1957–1969 (University of Chicago Press, 1988), pp. 85-86.

material, e que seus atributos sejam limitados. Mas também gera um problema, pois a fotografia seria identificada duas vezes: com ela mesma, e com seu referente.49

Frampton sugere então uma saída para o problema, baseando-se em certos nomes do modernismo literário. Ele nos diz que, nas obras de Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Alain Robbe-Grillet, é utilizada uma estratégia que denomina “deslocamento”, que consiste em desfazer sistematicamente as conexões causais e temporais, tornando-as virtualmente irrelevantes, e igualando o texto com a ilusão de uma imagem. Isso resultaria em textos que são nada mais que descrições minuciosas e “planas” de espaços, de objetos dispostos nesses espaços, de atributos volumétricos desses objetos – e em que “nada parece acontecer”. A causalidade e a temporalidade seriam retiradas do texto, e estaríamos assim frente não a uma representação de um espaço desenvolvido cronologicamente, mas à construção gradual de um espaço, em nossa consciência, que reflete a atemporalidade do próprio texto.50

Na obra de Weston encontramos uma estratégia semelhante. O conjunto de pretextos possíveis é reduzido a uma série de categorias abstratas, baseadas na pintura ilusionista (retrato, paisagem, natureza morta, etc.). A ênfase é dada às superfícies, diminuindo a profundidade e identificando a imagem plana com a própria impressão fotográfica. Há uma recusa completa pelo snapshot, o registro de momentos fugidios que sugiram o movimento por sua configuração espacial. Com os pretextos isolados e abstraídos, com o espaço suprimido e refletido na própria materialidade da fotografia, e com a sugestão de movimento neutralizada, Weston “retiraria as coisas das garras da causalidade, resgatando-as do inferno da entropia”.51

Outras estratégias, tentativas de compressão ou expansão do tempo cronológico, seriam encontradas nas séries de Eakins, Muybridge e Marey. O fato de as publicações de Muybridge se darem na forma de livros é um exemplo de disposição que possibilita acesso aleatório às placas, portanto uma decomposição do movimento em elementos dispersos e observáveis de acordo com outra lógica que não a da cronologia linear. Entre seus contemporâneos, Frampton cita Leslie Krims e Duane Michals como aqueles que estariam buscando revelações na própria estrutura da série, como nas sequências circulares e paradoxais de Michals que parecem subverter o tempo construindo loopings

49 Frampton, “Impromptus on Edward Weston: Everything in its Place”, in Jenkins, Op. cit., p. 142. 50 Ibid., p. 143.

e labirintos narrativos.52 Torna-se claro, por essa solução e pelos exemplos citados, que Frampton considera a sugestão da temporalidade um fator a ser combatido na fotografia, seja em obras isoladas ou partes de um conjunto.

Paul Strand também é colocado como um dos modernistas que buscaram estabelecer a própria prática a partir de uma definição dos fundamentos da fotografia. Seu pensamento é resumindo em três pontos. Primeiro: a estrutura da imagem fotográfica é absolutamente ligada à ilusão. Os fotógrafos devem se comprometer, com a maior fidelidade possível, à realização tátil e espacial dessa ilusão. Segundo: dois fotógrafos, independente de suas habilidades ilusionistas, não fazem fotografias comensuráveis do mesmo pretexto. Essas diferenças devem ser consideradas; elas devem se situar na subestrutura axiomática da obra, entre suas suposições epistemológicas. O que leva ao terceiro ponto: cada parâmetro do processo fotográfico (forma, textura, linha, cor) implica e define uma visão da realidade.53

Strand condena a tendência, comum em seu tempo, de adaptar práticas da pintura ao trabalho fotográfico: a manipulação dos parâmetros da câmera, como o foco e a lente, ou mesmo a superfície do negativo e da impressão, em busca de resultados que se situem além da esfera objetiva do processo.54 Na defesa dos aspectos que considera específicos na fotografia, e da concretização desses aspectos pela restrição técnica do fotógrafo, Strand parece estar em consonância com a visão de Bazin. Mas a interpretação de Frampton nos leva a outro resultado; a objetividade fotográfica para ele é parte fundamental do processo, mas como uma espécie de catalisadora entre a consciência e a realidade exterior.

Frampton torna mais clara sua posição quando comenta uma fotografia de Henry Fox-Talbot tirada em Lake Como. Ele começa nos lembrando que o lago em si, desprezando variações estatísticas mínimas, é imutável – ou seja, um pretexto que, para os fins da sensibilidade humana, é razoavelmente independente de suas condições temporais. Em seguida, examina as circunstâncias da visita de Talbot: longe de casa, em um lugar estranho ao qual poderia nunca mais retornar, ele estaria imerso na tentativa de “desenhar” a paisagem (Frampton se refere ao prefácio de The Pencil of Nature para justificar o termo). A mudança fundamental viria com a realização de que a imagem que

52 Cf. Frampton, “Incisions in History / Segments of Eternity”, in Jenkins, Op. cit., p. 104.

Originalmente em Artforum Vol. 13, nº 2, outubro de 1974.

53 Frampton, “Meditations around Paul Strand”, Op. cit., p. 132.

o artista deseja representar já se encontra lá. Essa realização, como um momento extático, é o que Frampton diz ser uma negação da temporalidade. O que Talbot “vê” não é uma simples paisagem que o entrega imagens naturalmente, mas “a radiância de seu próprio insight”, a realização de que “a criatura do momento, logo destinada a desaparecer, era ele próprio”.55 Frampton continua:

podemos imaginar, em resumo, que a fotografia é precisamente “sobre” esses reconhecimentos, formações, percepções, suspensões, persistências, hesitações na mente que precedem, se não completamente prevêem, aquela descoberta, a peripateia, o desenrolar-em-movimento e a inspiração que é a consciência articulada.56

Este trecho demonstra como Frampton efetua um redirecionamento das preocupações que em Bazin se voltam para o aspecto automático da fotografia e que o levam a diminuir o papel do artista envolvido no processo. Frampton coloca na própria intervenção do fotógrafo, independente de quão mínima ela seja, o fardo da fotografia como arte. A disposição dos pigmentos sobre a superfície sensível, o traçado da luz resultante da configuração da câmera em determinado espaço, tudo isso, ainda que dependente da natureza à qual Talbot acreditava dar as ferramentas para desenhar a si mesma, seria uma representação da consciência do artista.

Outro tópico abordado por Frampton parece acrescentar uma nova camada a essa questão. Ele nos lembra que o negativo fotográfico possibilita a geração de uma infinidade de cópias, sendo comparável ao baixo cifrado nas partituras barrocas – um campo retórico permitindo variações sobre um mesmo elemento. O fotógrafo, nesse sentido, é o intérprete de seus negativos, tanto como da realidade visível.

Essa associação da fotografia com a música e da multiplicação dos objetos fotográficos a partir de uma mesma matriz remonta às questões abordadas por Nelson Goodman em seu livro Languages of Art. Goodman propõe que chamemos de

alográficas as artes em que a distinção entre o objeto original e a cópia não é

significativa, e de autográficas as artes em que essa distinção é crucial. Na pintura, por exemplo, o objeto gerado pelo pintor na forma do quadro é a própria obra, de modo que rascunhos e reproduções não passam de tentativas aproximadas de prever ou repetir o

55 Frampton, “Incisions in History / Segments of Eternity”, Op. cit., p. 93. 56 Ibid., p. 100.

objeto original, e por isso são consideradas inferiores.57 Na música, por outro lado, a partitura serve como um mapa para as performances, que podem variar dentro de certos parâmetros, fazendo com que diferentes performances possam revelar diferentes potencialidades da obra-matriz. A pintura seria uma arte autográfica, como a escultura; a fotografia, como a música, seria uma arte alográfica.58

A conclusão de Frampton é que a ligação ontológica entre a imagem e o pretexto faz com que cada obra fotográfica pareça “iniciar e terminar toda a arte da fotografia”. Na pintura, veríamos uma relação oposta. Cada fenômeno possui sua fotografia correspondente e cada fotografia possui seu pretexto particular, mas o gesto do pintor é de outra ordem: não tendo uma relação ontológica direta com a realidade, ele deve ser compreendido como “uma metáfora para a relação entre a consciência criadora e a realidade exterior”.59 Nesse sentido, a arte da pintura, como um todo, seria maior que qualquer uma de suas obras.60

É importante notar que, apesar de reforçar a relação ontológica entre a fotografia e seu pretexto, Frampton entende que ela coexiste com o caráter matricial dos negativos. A fotografia está ao mesmo tempo ligada inextricavelmente ao seu fenômeno correspondente e aberta à interpretação do fotógrafo através da manipulação do negativo. Além disso, Frampton considera como “pretexto” tudo que é passível de fixação no material sensível:

O traçado feito pela luz no material sensível é uma imagem. Uma câmera pode ter estado envolvida, ou não. A luz pode ou não ter sido focada por uma lente. A

57 Hugh Kenner aponta alguns dos problemas que surgem quando procuramos considerar apenas “o

artefato”. Ele argumenta que, por esta ótica, somos incapazes de determinar, por exemplo, o que diferencia um falso Vermeer de um verdadeiro, exceto o fato de que um deles não foi pintado por Vermeer. Cf. Kenner, The Counterfeiters (Londres: Dakley Archive Press, 2005), pp. 29-31. O mesmo argumento é desenvolvido por Nelson Goodman, na obra citada na nota seguinte. Um dos textos canônicos e que propõe uma base filosófica para o tema é “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin, in Obras Escolhidas, vol. I (São Paulo: Brasiliense, 1985).

58 Nelson Goodman, Languages of Art (Indianapolis: Hackett, 1976), pp. 113-114. 59 Ibid., pp. 129-130.

60 Frampton parece considerar aqui exclusivamente a pintura tradicional. Podemos perceber, por esses

questionamentos, uma das razões de seu interesse pela chamada action painting, que parece coincidir com seu interesse pela obra de Stan Brakhage, em especial o que ele identifica como sendo a “dicção” da câmera de Brakhage, uma herança do expressionismo abstrato. A ênfase no gesto da pintura faria com que cada obra se tornasse um registro praticamente fotográfico de uma performance sobre um campo de possibilidades composicionais, assim como a constante movimentação e a proeminência da subjetividade da câmera nos filmes de Brakhage. Ver “Talking About Magellan: An Interview”, in Jenkins, Op. cit., pp. 245-247. Originalmente em Millennium Film Journal, nº 7-9, outono/inverno de 1980-81.

imagem pode muito bem não parecer com uma vaca, ou com Simonetta Vespucci; mas por ser uma imagem fotográfica, está sujeita aos mesmos procedimentos. Mais importante: é acessível às nossas sensibilidades

precisamente sobre a mesma base.61

Se “cada fenômeno possui sua fotografia correspondente”, diferentes exemplares de uma mesma fotografia, impressos de maneiras diferentes, não reforçam necessariamente os mesmos aspectos dessa correspondência. O exemplar fotográfico, como objeto, seria tão correspondente ao seu fenômeno quanto ao ato da impressão, às manipulações efetuadas no negativo. E se “o fotógrafo ajusta sua sensibilidade sobre toda a imagem, modificando seus parâmetros”, a correspondência de cada objeto particular seria precisamente a essa sensibilidade, à “criatura do momento”, fixada no material como uma projeção da consciência do artista.