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O espaço em profundidade e a materialidade da película

Entre a matéria e a forma

II. O espaço em profundidade e a materialidade da película

A concepção espacial de Bazin é um acréscimo de dimensão à sua definição do quadro, uma extensão temporal do que para ele é a continuidade unificada da imagem fílmica. A comparação com o teatro, como ele nos diz, é inevitável: se o quadro é o limite bidimensional da imagem, a cena teatral é a circunscrição da área em cujas dependências flui a energia dramática. A manutenção da unidade do espaço é essencial para o aproveitamento dessa energia. Lembremos do comentário sobre o filme de Welles, em que a “voltagem da cena” permanece ligada à presença dos atores no cenário. Soma-se a isso a noção de que o cinema para ele é uma arte com uma vocação anti-antropocêntrica, ou seja, que, em sua objetividade fotográfica, registra aspectos da realidade independente destes estarem conscientemente dispostos como partes do drama. A fascinação de Méliès com as folhas das árvores se movendo no fundo de um filme dos Lumière é um exemplo dessa vocação. A unidade do espaço, sua complexidade orgânica, que sugere o movimento da natureza, que torna o drama um evento que integra e concentra as ações sob um mesmo princípio, é um efeito dependente da ontologia fotográfica tal como defendida por Bazin. É o que garante que o abandono e a imensidão em torno das ruínas de Nápoles tenham um peso efetivamente dramático no filme do Rossellini, e que a simples observação de um caminho longo a ser percorrido pelo casal tenha um caráter tão imediato que quaisquer conotações metafóricas parecem submetidas à realidade concreta da cena. Ou ainda que Welles possa atravessar com a câmera o espaço das mansões em Cidadão Kane e

Soberba e, no decorrer desses movimentos, realizar a apreensão puramente sensível de

suas dimensões de modo que elas constituam referências que permanecem estáveis em cenas seguintes, executadas com planos mais restritos e com mais cortes. O caráter metafórico de Frampton não parece exatamente ausente dos filmes elogiados por Bazin; ele parece, antes, submetido a um princípio de realidade baseado no espaço, e que regula seus aspectos conotativos.

Para Frampton, este espaço é um dado, mas em seus filmes o espaço é constantemente bombardeado por informações que problematizam sua unidade. Através da quebra de seu valor concreto pela interferência rítmica e verbal (Zorns Lemma) ou pela reiteração dos gestos e um atraso na continuidade (Critical Mass), o que é enfatizado é a própria textura e superfície do espaço fílmico. É como se houvesse

diferentes espaços viáveis, coabitando em conflito um mesmo período. As referências externas, minimizadas pelos enquadramentos e pela concentração de seus pretextos, preparam ainda sua articulação do som e da narração como novas interferências nesse espaço. A unidade espacial não é mais concreta, ou pelo menos não é apenas concreta: ela depende (em Poetic Justice, por exemplo) e é ao mesmo tempo definida por uma camada que descreve seu entorno, expande sua influência, mas nunca determina claramente, e nunca revela diretamente aos sentidos sua presença.

A importância da materialidade da película na constituição da organização espaço-temporal das obras é um fator central em outro filme de Frampton, Palindrome (1969), inteiramente composto por pontas de negativo descartadas por laboratórios. Frampton selecionou as imagens que considerou mais interessantes, que tendem a certo “biomorfismo”, e aplicou sobre elas uma estrutura métrica que repete um mesmo padrão com variações de posição e cor. O título se refere ao fato de que os padrões são apresentados de maneira simétrica: caso o filme seja visto de trás pra frente, ou mesmo invertido lateralmente, ele mantém sua característica de palíndromo. Mas o importante a ser citado é que, ao compor um filme unicamente com imagens que remetem à superfície da película, e cuja lógica é absolutamente externa, mecanicamente imposta sobre o material (ou seja, não há “melodias visuais” como em Richter), Frampton sobrepõe uma medida arbitrária sobre o próprio processo de projeção. Este filme (como todos os filmes) foi originalmente uma faixa contínua, e é apenas através do padrão criado por Frampton que podemos perceber as dimensões e proporções do quadro, bem como as dimensões e proporções do tempo da projeção.

As formas representadas por Welles em Cidadão Kane – a arquitetura dos lugares, as curvas e espirais dos ornamentos, o traçado feito pelas luzes nas diferentes superfícies – formam um todo, um volume espacial que é a própria câmara onde ocorre o drama dos personagens. O filme de Welles conta a história de um homem esmagado pelo acúmulo desmedido de matéria, encarcerado em suas dependências, acreditando dominá-las enquanto se deixa lentamente definir por elas. A célebre imagem final, o trenó com a inscrição nostálgica, é reveladora no sentido de que a própria lógica de sua trajetória é representada por um objeto, que finalmente é destruído. Este é o sentido, o

espírito das formas do filme, moldado pela psicologia da narrativa. Essas formas

diferem daquelas de Richter em Rhytmus 21 (ou das de Frampton em Palindrome) por terem uma conotação específica e nos remeterem à sua própria presença num espaço

tridimensional análogo ao que experimentamos “fora do filme”. Ao ver uma porta sendo aberta, ela nos revela um espaço específico, um salão, um quarto onde um drama determinado ocorre, e no qual somos inevitavelmente levados a considerar a psicologia envolvida. Mas ao ver a tela ser partida por linhas geométricas – em blocos de cores puras, o completo branco sobre o completo negro – elas não nos remetem a nada que não seja sua própria determinação material na superfície fílmica, e suas relações parecem existir apenas em nossa própria consciência. O que vemos é a demonstração de uma característica fundamental do quadro do cinema como um todo: a dimensão metafórica apontada por Frampton. Lembremos da descrição de Mitry para o referencial

absoluto do quadro, de que é apenas através de suas proporções que apreendemos os

objetos; seu sentido é contingente de operações absolutamente superficiais. As operações de Richter são abstrações de processos que podem ser realizados de diferentes maneiras; nos termos de Frampton, são padrões estáveis em que podemos imaginar uma infinidade de objetos. A abertura de uma porta de Welles seria uma das encarnações possíveis do movimento abstrato de Richter.