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O quadro centrífugo ou metafórico

Entre a matéria e a forma

I. O quadro centrífugo ou metafórico

A tela, ou o quadro do cinema, para Bazin, difere daquele da pintura pelo que ele chama de seu aspecto “centrífugo”. A pintura, uma das belas-artes, trabalha sua representação através da semelhança, enquanto o cinema, ontologicamente ligado a este real pela fotografia, o representa diretamente. Disso decorre que o espaço pictórico não sugere um espaço externo às suas fronteiras, à moldura da obra, mas se volta para seu interior. O cinema, por outro lado, sugere precisamente o espaço além de suas bordas: a câmera, ao limitar o espaço da realidade, sobrepõe a ela uma espécie de máscara, pois sua natureza ontológica garante que a realidade continua no espaço não visualizado. A borda limita a imagem, contendo-a, mas o fato de a imagem transbordá-la deve-se justamente à atividade em suas bordas. Nas palavras de Jacques Aumont, “as bordas são operadores ativos de uma transformação progressiva”.136

Para Frampton, o papel do quadro não é o de mascarar a realidade, de realizar um recorte em sua unidade bruta, mas o de constituir “um ícone da fronteira entre o conhecido e o desconhecido”. Frampton enfatiza o que considera o potencial metafórico do quadro. Dessa forma, seu interior é determinado primeiramente pelo que é visível, mas seu exterior (e depois, também o interior) não é sugerido apenas pela ligação

ontológica entre a fotografia e a realidade sensível, mas por níveis de abstração acrescentados à presença concreta. Em outras palavras, as bordas do quadro não são apenas materiais, mas também conceituais. Isso pode ser melhor entendido se considerarmos que Frampton não defende a representação de eventos de maneira realista como uma prioridade. Um fotograma para ele é, acima de tudo, o registro de uma configuração luminosa, que pode ser virtualmente irreconhecível como um objeto correlato do mundo sensível. Um plano é apenas uma série estável que direciona uma mesma configuração luminosa, não uma necessidade lógica do material. Para que o quadro, na forma do fotograma, seja o elemento básico de uma linguagem universal, Frampton parece exigir que ele seja tomado como um átomo, um ponto indivisível que marca a representação consciente em sua menor medida – “uma fotografia é apenas um fotograma isolado, retirado do cinema infinito”.

Podemos realizar o cruzamento dessas concepções de quadro através de dois exemplos. Tomemos primeiramente o registro, pelos irmãos Lumière, da chegada de um trem à estação de La Ciotat (L’arrivée d’un train en gare de La Ciotat, 1895). A descrição da primeira projeção pública do filme já constitui uma espécie de lenda cinematográfica, mas sua veracidade histórica nos interessa aqui menos que os detalhes que evidenciam aspectos da composição da obra. A reação do público, segundo relatos, teria sido de completo pânico: surpreendidos pela reprodução do movimento, pela integridade e complexidade dos fatores envolvidos num mesmo evento, os espectadores teriam fugido da sala com a visão do trem, por medo de serem atingidos pelo próprio objeto representado. A história guarda alguma semelhança com a anedota sobre Zêuxis, de que este teria pintado uvas tão verossímeis que os pássaros tentaram bicá-las. O arrebatamento causado pela integridade da cena sugere também, é claro, alguma proximidade com o cinema total de Bazin, e são as características que apontam para essa integridade que parecem representar mais diretamente o que Bazin defende no uso do quadro cinematográfico.

O quadro do cinema, em sua potência centrífuga, é o que encontramos no filme dos Lumière. Não há qualquer elemento que reforce os limites materiais da tela, que busque enfatizar a autonomia interior da imagem como algo independente da realidade externa. Não há simetria ou moldura artificial, ou mesmo sugestão de equilíbrio entre as linhas de força, nada que traga um potencial estático ao enquadramento. Os trilhos cortam a tela em diagonal, e parte dela permanece imóvel enquanto o outro lado segue

em movimento constante – mas não exatamente agitado – com a presença das pessoas. A progressão do filme, como o movimento do trem, é linear, estabelecendo a mudança nas proporções do quadro e tornando esse movimento um fator tanto espacial como temporal: o trem surge no horizonte e literalmente atravessa a tela. Esse movimento é reforçado pelas pessoas que partem em direção às portas, algumas deixando também o campo visível da ação.

O que temos, então, é um recorte contínuo de um evento imediatamente reconhecível, cujos elementos são integrados pela atração efetiva de seus movimentos, direcionados ou modulados pela própria moldura da composição. Não há controle sobre cada elemento no interior do quadro, apenas sobre as coordenadas gerais. A vivacidade do filme, a naturalidade de cada movimento microscópico, é diretamente proporcional à organicidade de suas relações internas, em sua aparência de infinita complexidade convergente. Retomando o termo de Aumont, a borda da tela é o agente transformador de uma ação progressiva, o fator que permite o mínimo de articulação dentro do registro, fazendo com que a “vista” dos Lumière seja, mais do que a criação, uma espécie de dinamização de um evento.

Comparando o filme dos Lumière com Critical Mass, temos distinções claras no uso dos espaços e na relação das pessoas neles envolvidas. No primeiro, a naturalidade reveladora dos movimentos (o que Bazin elogiava em Renoir) é apreendida e dissolvida no movimento geral, como se tudo o que é visto seguisse as mesmas leis gerais, naturais e independentes da criação humana. No segundo, essa naturalidade parece existir, mas é apenas entrevista através da montagem, que não cessa de dispersar e unir o que antes seria um único movimento, ou seja, que interage com essa dimensão, mas cria uma camada subjetiva sobre ela. A composição dos Lumière é baseada numa apreensão geral do evento; se há um centro gravitacional que coordena os elementos em seu interior, ele não é visível, não é colocado em foco, apenas intuído pelas várias interações e a sugestão de um universo externo. É disso que resulta sua qualidade de registro “objetivo” na concepção baziniana, que pressupõe um universo infinitamente complexo e integrado. O cinema, nesse sentido, mostra mais do que conseguimos imaginar. A composição de Frampton, por outro lado, é baseada justamente no foco de um princípio coordenador, da neutralização das referências espaciais. O fundo é uma superfície branca qualquer, da qual temos apenas uma noção da distância para os atores pelas sombras projetadas, e o que devemos intuir é aquilo que nos Lumière era um dado, a

presença contínua e natural das pessoas – devemos necessariamente acrescentar essa intuição à obra, pois na concepção de Frampton sua lógica não corresponde à prioridade do espaço realista, mas à estrutura pontuada pelos cortes, em sua unidade abstrata, formada tanto pelo discurso e pelos gestos como pelo padrão rítmico que retoma a materialidade da película.

O segundo exemplo é Rhytmus 21 (1921), de Hans Richter. Segue uma descrição do filme por P. Adams Sitney:

Uma tela escura se divide no meio e se espalha até uma tela branca; uma série de permutações, de transições e mudanças em que preto e branco se alternam, dá lugar a formas geométricas, e dessa dialética de preto e branco, quadrados e linhas começam a surgir. O filme termina se transformando numa construção em preto e branco que lembra uma pintura de Mondrian. É uma construção no tempo, baseada em ritmos musicais, evocando o estilo pictórico de Mondrian, mas expandida a partir dos elementos absolutos das telas preta e branca.137

Richter é um dos principais nomes da tendência que, como vimos, era renegada por Bazin, de artistas que buscavam desenvolver uma espécie de linguagem do “cinema puro”, a partir de seus elementos plásticos e rítmicos. A composição de Rhytmus 21 é em essência uma espécie de animação, uma série de imagens registradas em sucessão a partir de uma organização prévia; imagens temporalmente dispersas, em vez de imagens em tempo real que reforçariam seu vínculo com a realidade sensível. Esse é obviamente um primeiro ponto de afastamento em relação a Bazin, mas Frampton considera que o vínculo entre a imagem “registrada” e a imagem projetada passa necessariamente pela fisicalidade da faixa de filme: ele nos lembra que tecnologias como o zootrópio não se iniciaram com fotografias, mas com desenhos, e que a função do cineasta é, no fim das contas, a modulação da luz do projetor através dos fotogramas dispostos sobre a película. Dessa forma, os cartões fotografados por Richter, que são apresentados como formas abstratas, não parecem reforçar sua ligação com o referencial “real”, mas com a própria imagem da película.138

137 Sitney, “The Idea of Abstraction”, in Film Culture, nº 63-64, 1976, pp. 11-12.

138 Para uma descrição e apresentação histórica de Richter e de outros cineastas com posturas

semelhantes, ver o segundo capítulo de Malcolm Le Grice, Abstract Film and Beyond (Cambridge: The MIT Press, 1978).

O caráter metafórico do quadro defendido por Frampton depende da suposição de que o limite da tela não é exatamente a máscara baziniana, mas uma área autônoma, cuja abstração é um fator crucial para realizar a sugerida ligação com os conteúdos da consciência. Os limites do quadro de Richter são postos em xeque desde o início: o espaço da tela – ou seja, o espaço compartilhado por todos os fotogramas – é dividido em partes que sugerem movimentos, que revelam sua escala e suas orientações. Vemos figuras de diversos tamanhos, crescendo, diminuindo, invertendo suas posições, surgindo e desaparecendo. O quadro como um todo é um espaço neutro, às vezes negro, às vezes branco, em cujo perímetro ocorrem as transformações. Essa neutralidade decorre da separação entre a imagem visualizada e a realidade sensível. A continuidade dos movimentos não diz respeito a de ações “reais”, mas à composição conscientemente realizada por Richter, referente ao mesmo tempo a um espaço mental criado no espectador e à materialidade da película.

A abstração das formas de Richter, assim como sua concentração na autonomia do quadro fílmico, coincide então com o próprio material utilizado. Este é um ponto importante, pois é assim revelada uma qualidade inevitável do cinema. Uma aproximação com a visão de Bazin pode ser feita através da colocação de Jean Mitry de que a representação possui tanto o referencial espacial (em profundidade, ou seja, determinado ontologicamente pela realidade física) como o referencial absoluto do quadro, o eixo quadrilátero formado pelas linhas horizontais e verticais. O efeito do quadro é o de criar uma unidade formal entre os elementos que contém: ele é o denominador comum, com os quais aqueles objetos, na realidade sensível, não possuem originalmente uma relação.139 O espaço “fora de quadro” existe no filme de Richter, mas ele é puramente imaginário, a representação de um espaço idealizado, na consciência. Quando as linhas brancas atravessam a tela, elas não operam como o trem dos Lumière, que sabemos ter um destino específico. As formas de Richter desaparecem materialmente, tanto da imagem projetada como da imagem na superfície da película; é apenas na unidade imaginada criada por suas relações que elas permanecem ligadas às referências do quadro, e pelas quais podemos imaginar seus movimentos como tendo um sentido. Por isso “entendemos” esses movimentos, reconhecemos as relações propostas; há uma unidade visível no filme, um conjunto de “melodias”, ou padrões recorrentes.