• Nenhum resultado encontrado

Bazin inicia seu ensaio sobre a ontologia da imagem fotográfica com o que chama de “uma psicanálise das artes plásticas”, identificando um fato fundamental de sua origem na prática do embalsamamento. A concepção do corpo como um invólucro da vida e a fixação de suas características como a manutenção de sua perenidade são apontadas por ele como cruciais em toda a orientação da religião egípcia. A restituição das aparências como defesa contra o tempo: é essa função que Bazin considera central para o entendimento das artes plásticas, sendo realizada, no caso das múmias egípcias, na própria materialidade do corpo. “O desejo de sobreviver”, na expressão de Élie Faure, acordava nos egípcios a eternidade individual “de que a duração dos fenômenos cósmicos lhes dava a vã aparência”.32

A necessidade de exorcizar o tempo se altera com a destituição das funções mágicas da arte e o fim da crença na identidade entre o modelo e o retrato. A múmia é o próprio corpo, mas uma escultura ou uma pintura permanecem objetos diferentes daquilo que representam. Bazin nos lembra que Luís XIV não se fez embalsamar: contenta-se com seu retrato pintado. Não sendo mais necessária a relação de identidade entre o representado e a representação, a importância da fabricação de imagens passa para a construção de um universo ideal à semelhança do real.33

A fotografia e o cinema, para Bazin, podem explicar a “grande crise espiritual da pintura moderna”. Em consonância com André Malraux, ele coloca o cinema como uma instância mais evoluída do realismo plástico que teve início no Renascimento. O acontecimento decisivo do período teria sido a invenção da perspectiva, o sistema científico que permite ao artista a elaboração de uma ilusão de espaço tridimensional, e consequentemente a disposição dos objetos como se apresentam à nossa percepção direta.34

Desde então, a pintura viu-se esquartejada entre duas aspirações: uma propriamente estética – a expressão das realidades espirituais em que o modelo se acha transcendido pelo simbolismo das formas –, e outra, esta não mais que

32 Élie Faure, A Arte Antiga (Lisboa: Estúdios Cor, 1951), p. 46. 33 Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica”, Op. cit., pp. 27-28. 34 Ibid., pp. 28-29.

um desejo puramente psicológico de substituir o mundo exterior pelo seu duplo. Esta necessidade de ilusão, que aumentava rapidamente por sua satisfação mesma, devorou pouco a pouco as artes plásticas. Porém, tendo a perspectiva resolvido o problema das formas, mas não o do movimento, era natural que o realismo se prolongasse numa busca da expressão dramática do instante, espécie de quarta dimensão psíquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte barroca.35

Se a perspectiva foi “o pecado original da pintura ocidental”, a fotografia foi sua redentora, livrando-a da obsessão pela semelhança através da objetividade essencial de sua gênese. Ainda que a fotografia continuasse inferior à pintura por algum tempo na imitação das cores, era sua objetividade que a conferia uma credibilidade ausente nas artes plásticas. Este é o ponto reforçado por Bazin, e onde se deve desfazer o mal- entendido entre o realismo “estético” e o “psicológico”. O primeiro seria o pseudo- realismo, contente com a ilusão das formas, como no trompe l’oeil; o segundo seria a

expressão de um significado “a um só tempo concreto e essencial do mundo”. O desenvolvimento de técnicas pictóricas para instituir uma ilusão de semelhança com o mundo visível deixa de ser um objetivo para a pintura quando ela se defronta com uma tecnologia que o realiza sem o esforço construtivo do homem, e que institui não apenas a semelhança, mas ainda uma relação de identidade. É a dependência deste segundo modo que torna a fotografia importante em relação à pintura, pois sua objetividade não se encontra em seu resultado, em sua aparência, mas no fato psicológico advindo do elemento mecânico em sua origem.36

A fotografia representa “literalmente” os objetos. A imagem pode vir a ser nebulosa ou descolorida, mas sua objetividade garante que ela “é” o modelo. Assim como na descrição do realismo feita por Andrew, aqui é o próprio traçado da luz que garante essa relação ontológica. Bazin enfatiza o fator natural do processo, diminuindo o papel do artista como responsável pela constituição da obra:

Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do fotógrafo não entra em jogo senão pela escolha, pela

35 Ibid., p. 29. 36 Ibid., pp. 29-30.

orientação, pela pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. Ela age sobre nós como um fenômeno “natural”, como uma flor ou um cristal de neve cuja beleza é inseparável de sua origem vegetal ou telúrica.37

A base fotográfica do cinema o colocaria como herdeiro dessa objetividade, com o acréscimo da dimensão temporal. Se a fotografia “embalsama o tempo” (Bazin usa como exemplo os corpos dos insetos intactos no âmbar), o cinema nos dá a própria duração das imagens, mantendo, portanto, a mesma relação ontológica, “uma múmia da mutação”.38

Podemos amplificar o ponto de vista de Bazin e entender alguns de seus fundamentos retomando o contexto em que a Estética surge como uma disciplina autônoma: as discussões sobre as belas-artes no século XVIII. O tratamento teórico que levou à criação de um subconjunto da filosofia teve seus alicerces na defesa, por Charles Batteux, de um princípio comum, a “imitação da bela natureza”.39

Este princípio seria único às belas-artes, que têm como objeto o prazer, e que “só puderam nascer no seio da alegria e dos sentimentos que produzem a abundância e a tranquilidade”. Entre as belas-artes estão, por exemplo, a música, a pintura e a poesia. As chamadas artes mecânicas, por outro lado, não são empregadas tendo em vista o prazer, mas as necessidades do homem que exigiram sua criação. Haveria ainda um terceiro tipo – exemplificado pela arquitetura – de artes que combinam características dos dois grupos anteriores: “foi a necessidade que as fez eclodir, e o gosto que as aperfeiçoou”. Enquanto as artes mecânicas empregam a natureza tal como ela é, visando seu uso, as artes do terceiro grupo a empregam “polindo-a, para o uso e para o encanto”; mas as belas-artes não utilizam a natureza no mesmo sentido, apenas a imitam, cada uma à sua maneira. Essas maneiras, para Batteux, não são criadas arbitrariamente, e sim traçadas a partir do próprio exemplo da natureza.40 O artista deve transpor traços dessa

37 Ibid., p. 31. 38 Ibid., pp. 32-33.

39 Ver John Poulakos, “From the Depths of Rhetoric: The Emergence of Aesthetics as a Discipline”, in

Philosophy and Rhetoric, vol. 40, nº 3, 2007, p. 337. Para mais detalhes sobre a divisão das artes neste contexto, ver Paul Oskar Kristeller, “The Modern System of the Arts”, in Renaissance Thought and the Arts (Nova Jersey: Princeton University Press, 1980).

40 Charles Batteux, As Belas-Artes Reduzidas a um Mesmo Princípio (São Paulo: Humanitas, 2009), pp.

natureza para objetos que não são naturais, elaborados tendo como único fim a imitação.41

É sobre o pensamento de Batteux que autores como Moses Mendelssohn e Gotthold Lessing constroem suas próprias investigações, e enfatizam diferentes aspectos desse sistema. Mendelssohn reforça os diferentes signos pelos quais as artes realizariam a imitação. Ele afirma que artes como a poesia e a retórica fazem uso de signos

arbitrários, que não possuem nada em comum com o tema designado. A linguagem, por

esse ponto de vista, não é retirada diretamente da natureza, mas desenvolvida pelo homem; sua estrutura independe dos temas e procedimentos utilizados na imitação. Outras artes fariam uso de signos naturais: a música, através da justaposição de sons; a dança, pela sucessão de movimentos visualizados; a pintura, através da justaposição de formas visuais em superfícies; a arquitetura e a escultura, pela justaposição de formas e corpos no espaço.42

Lessing, por sua vez, divide as artes em espaciais e temporais. As primeiras, como a pintura e a escultura, são ações inertes, em que as diferentes partes se desenvolvem uma ao lado da outra; as segundas, como a música e a poesia, são ações progressivas, em que as diferentes partes se desenvolvem uma após a outra. Confrontadas com os mesmos temas e eventos, as artes devem então recorrer a diferentes estratégias: enquanto à poesia é possível narrar uma série de ações de modo a criar uma sucessão de causas que leva de um termo a outro, à escultura tal possibilidade é negada pela simultaneidade espacial de suas partes; da mesma forma, a pintura pode selecionar um único momento e dele extrair toda a sua expressividade, enquanto a música deve transformar esses fatores em etapas e processos a serem apresentados em uma ordem específica.43

A genealogia de Bazin não discute em qual dos grupos o cinema se encaixaria. Sua concepção da fotografia, assim como sua definição do cinema total, parece apontar para uma adequação às artes voltadas para a necessidade – o cinema, como produto dos inventores, possui, afinal, uma aplicação científica –, mas a dimensão artística também é

41 Cf. Leonardo da Vinci, Treatise on Painting (Londres: J. Taylor, 1802), p. 206. “O homem não deve

confiar em si mesmo, mas consultar a natureza. Qualquer um que se gabe de manter na memória todos os efeitos da natureza é enganado, pois nossa memória não é tão capaz; deve, portanto, consultar a natureza para tudo.”

42 Moses Mendelssohn, Philosophical Writings (Cambridge University Press, 1997), pp. 177-178. 43 Gotthold E. Lessing, Laocoon (Boston: Roberts Brothers, 1887), p. 90.

considerada, e a função mimética é priorizada, permanecendo em consonância com o que Batteux entende por imitação, a função das belas-artes.

É evidente que Bazin considera o cinema como uma das artes que faz uso de signos naturais. Ele se refere ao “universo ideal” da pintura partindo da mesma postura de Batteux, de que as artes em geral operam através da semelhança, com materiais diferentes dos objetos representados. Batteux e Mendelssohn, numa época anterior à fotografia, consideram como “naturais” os signos que realizam a imitação a partir dos mesmos parâmetros que elas visam articular. A pintura e escultura, por exemplo, apresentam o caráter visual e tátil dos objetos, sendo elas próprias construções visuais e táteis, enquanto a linguagem, utilizada pela poesia e retórica, deve descrever relações entre objetos a partir de algo desenvolvido à parte destes. O argumento de Bazin é que a entrada da fotografia no sistema das artes acrescenta uma nova possibilidade, a de que os objetos representem a si mesmos. É a própria constituição deles que visualizamos nas imagens fotográficas, assim como é sua própria duração física que visualizamos no cinema. A nova possibilidade, vista dessa forma, efetua um retorno à relação física do embalsamamento, pois a fotografia, ainda que não seja o próprio objeto, é seu rastro luminoso, portanto a marca de sua existência no espaço. Este é o fato em cuja extensão podemos reconhecer a mesma disposição comentada por Dulac, de que o movimento “concreto e essencial” expressa um princípio de realidade por meio de um processo automático.

O cinema também compartilha as duas categorias definidas por Lessing. Assim como a pintura e a escultura, possui um aspecto espacial; sua base fotográfica não apenas realiza a apresentação do espaço tridimensional através da semelhança, mas também a confirmação psicológica de sua materialidade. E assim como a música e a poesia, possui um aspecto temporal, de modo que o desenrolar das imagens no tempo torna inevitável a submissão destas a um mesmo processo. A representação dos eventos se abre à possibilidade da síntese pela simultaneidade, como na pintura, tanto quanto à transformação desta por diferentes etapas, como na poesia.

As condições das quais dependiam as artes espaciais ou temporais de Lessing são então reformuladas pelo cruzamento das duas categorias. Com o cinema, não apenas não é necessário que a composição espacial busque sintetizar o tempo através de uma sugestão que só existe por sua ausência, como a própria configuração da imagem fílmica pensada por Bazin torna problemática essa separação. Jean Mitry nos lembra

que a profundidade da imagem no cinema, e seu “efeito de realidade”, dependem diretamente de sua integração a uma série contínua:

Enquanto a imagem em uma pintura ou fotografia (que sugerem a dimensão através do efeito de perspectiva) dá a impressão do relevo ao permanecer fixa a uma superfície, a imagem fílmica, através do movimento que reproduz, acentua essa impressão tornando-a uma genuína sensação.44

Uma demonstração deste princípio ocorre quando um único fotograma é repetido sucessivamente: o relevo e o desenrolar do movimento são substituídos por um achatamento da imagem, assim como de sua duração. A experiência do espaço e do tempo permanece, pois ambos são inevitáveis no cinema, mas a representação de sua continuidade e integração é quebrada. Nesse sentido, a unidade defendida por Bazin só é alcançada através da codependência das duas categorias, da submissão de ambas ao princípio realista que encontramos no mito do cinema total.

44 Jean Mitry, The Aesthetics and Psychology of Cinema (Bloomington: Indiana University Press, 2000),

p. 73. Para uma discussão sobre essa definição, ver também Edward Branigan, “What is a Camera?”, in Patricia Mellencamp e Philip Rosen (ed.), Cinema Histories, Cinema Practices (University of Michigan, 1984), p. 89.