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2.2 POLÍTICAS PÚBLICAS: COMPREENSÃO GERAL

2.2.1 Políticas Públicas como instrumento de concretização dos Direitos

2.2.1.1 A Política de Atendimento dos Direitos das Crianças e Adolescentes

O Estatuto da Criança e Adolecente ao estabelecer, em seu art. 86, que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abandona totalmente a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que tinha como características a centralização na esfera federal da definição de quais políticas públicas seriam executadas e a atuação de promoção de direitos atribuída quase que exclusivamente ao Poder Judiciário, através do Juizado de Menores.

Nasce, assim, com o novo regramento constitucional, disciplinado em âmbito infraconstitucional pela Lei n° 8.069/90 (ECA), uma Política de Atendimento como ação articulada entre os integrantes do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente, em razão da necessidade de diversas competências exercidas pelos atores do SGD e complexidade de situações vivenciadas pelas crianças e adolescentes, conforme bem explicitado por Luís de La Mora apud Cury:

A complexidade das situações vivenciadas pelas crianças e adolescentes, decorrente do caráter intersetorial de seus fatores, exige uma ação articulada da política de atendimento como forma de superar as lacunas, sobreposições e atitudes contraditórias frequentemente encontradas na ação dos órgãos públicos e organizações não governamentais atuantes neste campo. Com efeito, a política de atendimento, que abrange a promoção, prevenção, proteção e defesa dos direitos da criança, é viabilizada através de uma multiplicidade de ações específicas de natureza diferente e complementar na área das políticas sociais básicas, serviços de prevenção, assistência supletiva, proteção jurídico-social e defesa de direitos. 136

Fica notória a necessidade de atuação articulada por parte dos vários atores do SGD, no sentido de materializar os direitos infanto-juvenis estabelecidos na Constituição Federal, pois cada ator deve agir em sua esfera específica de atuação, bem como nas lacunas deixadas pelos outros, garantindo, assim, a proteção integral, com ênfase na necessidade da participação popular, que juntamente com as entidades governamentais deve manter uma

136 CURY, Munir (Coordenador). Estatuto da Criança e Adolescente Comentado. 11 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 357.

articulação constante na busca pela efetividade dos direitos formalmente fundamentais, também de acordo com as precisas lições de Luís de La Mora apud Cury:

Se o reconhecimento e administração das diferenças e semelhanças é uma tarefa difícil entre as entidades governamentais de diversos setores de atuação e níveis de governo, as dificuldades multiplicam-se quando se trata de articulação entre órgãos públicos e organizações não governamentais. É preciso reconhecer que a participação da população, por meio de suas organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis não constitui apenas um mandamento constitucional (art. 204), mas, também, trata-se da própria garantia da preservação da qualidade dos serviços, descentralizados política e administrativamente. 137

Traçado o perfil da política de atendimento, é importante enfatizar que o ECA em seu art. 87 definiu como linhas de ação da política de atendimento a ênfase nos seguintes setores: a) articulação de políticas sociais básicas; b) políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem; c) serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; d) serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; e) proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e adolescente; f) políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes e, finalmente, g) campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.

Com a definição das linhas de ação de forma objetiva, com o escopo de garantir os direitos infanto-juvenis, o que não ocorria com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, em razão da centralização federal, ficaram claras as linhas de ação que devem ser seguidas, não podendo o Prefeito, por exemplo, falar em discricionariedade adminitrativa com o escopo de materializar os direitos infanto-juvenis, eis que o ator do SGD deverá cumprir o estabelecido no art. 87 ao definir uma política de atentimento infanto-juvenil que será executada.

Portanto, em razão do caráter de urgência na implementação, as ações que devem ser desenvolvidas de forma articulada podem ser divididas de maneira didática em quatro grandes

áreas de atuação, de acordo com o Estatudo da Criança e Adolescente, ou seja, em Políticas Sociais Básicas (art. 87, I), de Assistência Social (art. 87, II), de Proteção Especial (art. 87, III, IV, VI e VII) e de Garantia de Direitos (art. 87, V).

As Políticas Sociais Básicas visam a universalização, continuidade e gratuidade dos direitos sociais, sendo as crianças e adolescentes credoras do Estado em relação aos referidos direitos, ressaltando que as mesmas são exigíveis de acordo com o estabelecido no art. 227 da CF, bem como nos arts. 4°, 5° e 6° do ECA e garantidas pelo estabelecido nos arts. 88 e 208 do referido Estatuto. Ressalte-se que o não oferecimento ou oferta irregular, de acordo com Edson Sêda, são “motivos suficientes para o desencadear da ação dos mecanismos previstos no âmbito administrativo (art. 88) ou das ações judiciais previstas no cap. VII do Livro II (arts. 108 e ss.)”138.

Quando ainda estava em vigor a Política do Bem-Estar do Menor, a atuação do Juiz de Menores estava restrita ao caso individual. Dessa forma, ao constatar a existência de um “menor” em “situação irregular”, o Magistrado buscava a resolução do problema específico, sem a preocupação com a análise em âmbito coletivo. Atualmente, a atuação do Judiciário é mais ampla. Em caso de omissão dos outros poderes, em razão da existência de problemas em âmbito coletivo, cabe ao Judiciário buscar a solução que garanta a concretização de direitos da maior quantidade de pessoas possível, como no caso em que o Juiz analisa a não oferta ou oferta irregular dos serviços públicos garantidores dos direitos das crianças e adolescentes e determina a materialização de tais direitos ao proferir decisão em ação civil pública, por exemplo.

As Políticas de Assistência Social, executadas em caráter supletivo, visam resgatar os direitos dos que se encontram em estado de necessidade temporária ou permanente, ressaltando que constitucionalmente a assistência social é prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social (art. 203), com o escopo de proteger, dentre outros, a família, a maternidade, a infância e adolescencia, ou seja, de acordo com as lições de Edson Sêda (apud CURY) “os mecanismos a serem criados no Município para a assistência social devem ser acionados sempre e quando as demais políticas públicas forem insuficientes para garantir o atendimento dos direitos da criança e do adolescente”139.

Quanto às Políticas de Proteção Especial, importa considerar que são voltadas para os que se encontram com direitos violados ou ameaçados de violação em sua integridade física,

138 Ibidem, p. 359.

psicológica e moral, e as Políticas de Garantia de Direitos atuam nas situações nas quais as crianças e adolescentes se encontram envolvidos em um conflito de natureza jurídica, como nos casos de envolvimento com a prática de atos infracionais, isso em relação aos adolescentes.

Para uma compreensão prática pode ser exemplificado o caso de um adolescente envolvido com a prática do ato infracional equiparado ao crime de tráfico de drogas, onde se percebe que o mesmo não teve acesso às Políticas Sociais Básicas, de Assistência Social e de Proteção Especial, sendo necessária, portanto, a atuação das Políticas de Garantia de Direitos, que buscará de alguma forma reparar as omissões dos atores do Sistema de Garantia de Direitos em relação ao não oferecimento das políticas públicas básicas e de assistência social.

Portanto, o Judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar, Polícia Civil, Município e a Defensoria Pública, por exemplo, buscarão, juntos, materializar o estabelecido no art. 227, da CF, no acompanhamento da execução de eventual medida socioeducativa aplicada, como forma de possibilitar ao adolescente envolvido na prática de ato infracional o acesso aos referidos direitos. Teoricamente, a atuação, no exemplo referido, poderia ocorrer da seguinte forma: em um primeiro momento o Conselho Tutelar leva a notícia à Delegacia de Polícia, que após lavrar um Boletim Circunstanciado de Ocorrência (BCO) e proceder com a investigação, remete todos os documentos ao Ministério Público. Este, como titular da ação infracional, após ouvir o adolescente, oferece representação perante o Judiciário, que aplica a medida socioeducativa pertinente ao caso, após o devido processo legal, inclusive com a garantia de defesa, efetivada através da atuação da Defensoria Pública ou de advogado constituído. Ao final, em programa coordenado pelo Município e fiscalizado pelo Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Conselho Tutelar, o adolescente cumpre a medida socioeducativa, de modo a garantir a efetivação dos seus direitos, ressaltando que em paralelo ao cumprimento de medida socioeducativa podem ser aplicadas medidas de proteção.

Assim, como forma de tentar realizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, constituir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 4°, incisos I, II, III e IV, CF), especificamente em relação ao público infanto-juvenil, urge que sejam efetivadas as linhas de ação da política de atentimento, de acordo com o art. 87, ECA, devendo, para tanto, a obediência ao art. 88 no que se refere às diretrizes da política de atendimento.

Importa considerar, ainda, que nos termos do art. 88 do ECA, a política de atendimento deve observar a municipalização do atendimento; criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais; criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa; bem como a manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente.

Nesse mesmo caminho, também nos termos do art. 88 do ECA, é necessária a integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional, sendo de fundamental importância a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade na definição e execução das políticas públicas garantidoras dos direitos das crianças e adolescentes.

Por fim, analisadas as funções das políticas públicas, especialmente as garantidoras dos direitos das crianças e adolescentes, bem como as linhas de ação relativas às políticas protetoras dos referidos direitos, impõe-se analisar o processo de discussão, deliberação e escolha das políticas públicas, pois somente com o conhecimento acerca do mesmo será possível pensar em concretização dos direitos infato-juvenis com a prioridade garantida constitucionalmente.