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A política e a polícia: dissenso e controle dos sentidos

2. A política linguística e o político: pontos de intersecção no funcionamento

2.3. A política e a polícia: dissenso e controle dos sentidos

O filósofo francês Jacques Rancière, conhecido por seus debates a respeito de democracia e política e de seus pontos tangenciais, insere-nos em uma arena de discussões sobre esse tema em dois livros publicados, um no início da década de 1990 e o outro em meados desta mesma década. Tais obras são: Aux bordes du

politique (1990) e La mésentente (1995).

O autor, no primeiro livro, En los bordes de lo político (2007), (re)visita o pensamento filosófico antigo sobre a noção de política para desconstruir esse conceito, isto é, libertá-lo das amarras da filosofia clássica e fazê-lo funcionar “em terra firme” ou em um universo social atual, desatrelando-o assim da ideia de governo, gerência, administração da máquina pública e, consequentemente, da sociedade, por aqueles em “condições” para assumir os cargos políticos e, logo, conduzir/controlar a grande massa.

O modelo filosófico de política predominante na atualidade ainda é aquele pensado por Platão e Aristóteles e que, para Rancière (2007), configura não a política (emancipadora), mas a “arte do político” ou a “arte política”: o Estado (e quem o representa) regula o social pela concessão vertical de benefícios, mantendo, dessa forma, a partilha do sensível.

Com as línguas temos um cenário análogo. O Estado, através de seus órgãos e de medidas tomadas por eles, trata de colocar cada língua em seu lugar, conforme lhe seja conveniente, aparentando, com isso, uma justa divisão, pela importância que é dada a cada uma delas.

A Associação Italiana de Santa Maria, como um espaço institucional regulado pelo Estado, concede um lugar aparentemente de destaque à língua dos imigrantes italianos, e ao mesmo tempo usa esse lugar privilegiado para promover a língua oficial da Itália. Não há, assim, um equilíbrio no modo de dispor as línguas e de propor ações para e com elas, pois a primeira, a língua minoritária – ou o dialeto, como é designada - continua ocupando um lugar minoritário, um lugar de memória (da imigração), enquanto que a segunda, a língua oficial do país Itália, segue ocupando o lugar do ensino, dos estudos, dos intercâmbios culturais. O discurso da

Associação, entretanto, produz um efeito (antipolítico) de igualdade na distribuição dos espaços. Mais que isso, produz um efeito de que os lugares dados às línguas são os únicos possíveis, por imposição de uma ordem natural ou contingente, apagando, assim, o dissenso e mantendo o consenso.

Rancière esclarece que o modo mais eficiente para anular a verdadeira política (o desentendimento) é tirar do povo o interesse pelo mundo político, é conceder a ele uma série de direitos e deveres que simulam o controle do poder, que o fazem acreditar que pode escolher e determinar o rumo da administração pública. O sistema democrático de governo é, desse modo, antipolítico, porque embaça a visão da sociedade, fazendo-a ver a realidade de forma distorcida.

A política não está dada a priori, de acordo com o pensador. Acontece, está aqui e ali, uma vez ou outra, quando um sujeito que ocupa determinada função e tem determinado papel social começa a questioná-lo e a refletir sobre o porquê de estar naquele lugar e não em outro. Isso é fazer política. E sua voz é polêmica, contraventora.

Para o autor, a política acontece não somente na comunidade democrática – que tem um caráter eventual – mas também sempre que o indivíduo63 se descobre

um ser social e histórico, passando assim a desentender aquilo que o sistema estabelece como óbvio, incontestável. Fazer política é sair da zona de conforto para entrar na zona de confronto, porque o desentendimento da ordem é o confronto com ela.

Por desentendimento entenderemos um tipo determinado de situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura (RANCIÈRE, 1996, p. 11).

O desentendimento é, antes de qualquer coisa, um conflito necessário e saudável à existência/permanência humana e à “comunidade de iguais”, porque

63 O Estado, com seus aparatos, individualiza o sujeito para imputar-lhe a culpa, para vigiá-lo e para

puni-lo. Sobre esse tema, ler a obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir (1987) e de Claudine Haroche, Fazer dizer, querer dizer (1992).

questiona a ordem das coisas e a lógica (determinada pelo poder) social; faz com que o sujeito “veja” os fatos diferentemente da grande massa e com isso rompa com a lógica instaurada. A “situação de palavra” é o instante do esclarecimento, momento em que a palavra que antes significava isso, e somente isso, passa a significa também aquilo e tudo mais. A leitura destoante do fato ou da palavra dita é o insight, o flash de lucidez; é, por isso, passageiro.

Por essa linha de pensamento, observamos que o sentido não pode ser totalmente controlado, apesar de haver, por parte do poder, uma efetiva regulação. A palavra está sujeita a várias leituras, mas o automatismo imposto pela lógica da dominação “literaliza” o sentido e o transforma em senso comum.

Se consideramos que a política é contraventora, que desentende a ordem estabelecida, podemos considerar também que na relação estabelecida entre a língua dos imigrantes italianos e a língua oficial da Itália, no espaço da Associação

Italiana de Santa Maria, a voz da política ecoa, na medida em que a língua

minoritária, que desde a fundação da AISM tem seu lugar simbólico definido – o de significar a memória da imigração, (re)estabelecendo, pois, a ligação entre os emigrados/descendentes e sua pátria mãe – acaba por reivindicar, no próprio discurso da associação, um lugar de igualdade ao que é dado à língua italiana, da Itália.

A língua dos imigrantes desestrutura, perturba de certa maneira, a lógica discursiva da AISM, embora seja parte dessa lógica, quando, ao mesmo tempo em que serve ao propósito que lhe foi dado (instituir a ponte entre Brasil e Itália, mais precisamente, entre Santa Maria e Itália, por funcionar como memória), vai contra ele, reclamando, ainda que silenciosamente um lugar equivalente ao que é dado à língua italiana. A língua dos imigrantes é politicamente o questionamento da ordem, porque deslinda, revela a contradição de ela não estar no lugar que lhe é de direito.

No pensamento grego antigo os filósofos reconheciam que a política se representava na/pela luta entre ricos e pobres, na contramão dessa ideia, Rancière considera que uma comunidade política se faz pela desordem gerada quando a parte sem parcela reivindica seu lugar na comunidade. Assim, o autor descarta definitivamente o postulado aristotélico de que o fundamento da política se encontra

na oposição entre animal político, dotado de logos64 (palavra), e animal não político,

dotado apenas de voz e não de logos. Na ótica do pensador francês, o ser/animal político é aquele que, destinado a não ter parcela pela ordem da dominação - ou desprovido de “título para governar” - tome o direito de governar para si. Esse é o “paradoxo fundador da política: [...] as pessoas que não devam fazer política o façam” (1995, s/p).

Nesse sentido, mesmo que haja (como sempre houve) a hegemonia do consenso, a política acontece. Ela é algo que não se anuncia, mas “é sempre uma ruptura com a auto-regulação, com a dominação, o que defino como police...” (ibidem).

Da mesma forma em que os pares política/dissenso e polícia/consenso se realizam na esfera social, podemos considerar seu funcionamento outrossim no campo linguístico. Para nós, a língua italiana encarna o consenso, a ordem manifesta, que não deve ser contestada, alterada. A língua oficial da Itália deve ter prioridade no ensino e nos objetivos da AISM, justamente porque é língua oficial de um país, é uma língua com mais visibilidade, com maior prestígio, a língua de grandes poetas, escritores, artistas...ao passo que a língua dos imigrantes é somente a língua dos imigrantes, de um grupo restrito de falantes, uma língua de cultura, um patrimônio da imigração italiana, um dialeto.

Busca-se o controle dos sentidos, a manutenção da ordem (a polícia), mas a língua dos imigrantes desestabiliza esse ordenamento, já que requer uma parcela do real que não lhe cabe, ela reivindica para si o logos.

A police (polícia) é inimiga da política. Existe justamente para impedir que esta aconteça. A police tem a função de “vigiar e punir” os indivíduos que fogem à regra, que querem estar nos lugares onde não devem estar, que querem dizer aquilo que não têm direito de dizer, que querem governar, fazer política sem pertencer à classe dos que devem governar. A police guarda a ordem estabelecida pela divisão desigual das partes. A police é

64 Segundo Rancière (1996, p. 36, 37), além da voz, que é o simples ruído emitido para expressar

sensações, o homem tem o logos, a palavra que lhe permite posicionar-se, viver em sociedade, organizar seu entorno e fazer escolhas, ele é, portanto, um ser político.

assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o

ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu

trabalho. A polícia não é tanto uma "disciplinarização" dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas (1996, p. 42).

Ela não deve ser confundida com a figura controladora/repressora encarnada pelo agente que usa um fardamento típico e é identificado por todos, embora ele seja uma forma de manifestação da police. Esta é o próprio Estado ou as formas de regulação, criadas especificamente para serem a ordem, para garantirem a ordem e para impedirem que outra ordem se estabeleça, por meio de órgãos, instituições, tais como a polícia, a escola, os meios de comunicação, as leis, em geral.

Em síntese, a “logique policière” (lógica policial) é a lógica do consenso, enquanto que a política é desprovida de lógica enquanto método, regulação, porque desentende as regras. Ambas compõem as duas faces do que Rancière designa le

politique - o político. Logo, o político é o lugar de encontro entre a política e a polícia

(2007). É nesse sentido que tomamos o político na divisão das línguas. Ele encerra a contradição de afirmar a igualdade na distribuição dos lugares das línguas e, simultaneamente, garantir que essa distribuição seja desigual.