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1.5. Italianidade: sentidos possíveis

1.5.3. Italianidade e grupo étnico

34 Essa fala pertence ao conjunto de entrevistas realizadas com descendentes de imigrantes italianos

que vivem no município de Ivorá. Tais entrevistas constituíram o corpus de nossa dissertação de mestrado.

35 Esses verbos aparecem com frequência nos textos dos estatutos de sociedades e associações

Dado o caráter histórico da noção de italianidade, buscaremos trazer, nesse tópico, as contribuições da antropóloga Maria Catarina Zanini, cuja pesquisa de doutorado (finalizada em 2002) se centrou no estudo dos modos dos descendentes de italianos rememorarem suas origens e significarem sua italianidade, num movimento contínuo de negociação de bens simbólicos.

Ela observa, de modo geral, que não há, por parte desses descendentes, a compreensão (ou a reivindicação) de que, naquele momento, eles fazem parte (ou devam fazer parte) do mundo italiano tal como está, pois este ganhou uma configuração totalmente diferenciada daquela dos tempos da imigração. A Itália, a qual ainda se sentem ligados, é aquela das memórias dos antepassados, a Itália que durante décadas foi narrada, (re)criada e (re)significada pelos bisavôs, pelos avôs, pelos pais, enfim, pelos contadores e construtores da história dos imigrantes.

Por se sentirem ainda pertencentes ao mundo italiano de outrora, reconhecem sua identidade italiana pela origem e pelo conjunto de valores, crenças e tradições vinculados a esta origem. A italianidade, nesse caso, é representada também – mas não só - pela identidade étnica. Assumindo uma identidade étnica, os descendentes de imigrantes se autodeclaram integrantes de um grupo ético36

(BARTH, 2000). Nesta medida,

os indivíduos, reivindicando uma identidade étnica distinta, almejam conquistar espaços em terras brasileiras, no meio em que habitam. Não reivindicam, necessariamente, uma italianidade enquanto pertencimento nacional e jurídico, mas sim enquanto lugar de origem. A Itália é a terra dos antepassados ou das gerações sucessivas, caso queiram para lá se aventurar, mas não a sua (ZANINI, 2006, p. 249).

Sobre essa questão, ainda podemos acrescentar, na trilha de Zanini, que

o sentimento de apego nacional à Itália, quando inserido no contexto do Estado brasileiro, torna-se etnicidade, fronteira demarcadora da diferença por meio de uma invocação de origem. No contexto da sociedade brasileira, os descendentes de italianos, tornam-se, enquanto portadores e reivindicadores de uma origem diferenciada, grupos étnicos (2006, p. 29).

De igual modo – além de grupo étnico - podemos considerar a comunidade de imigrantes e descendentes como uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1993) ou como uma “comunidade cultural e de destino” (BAUER, 2000), porque há entre eles o imaginário de comunhão, de presença de um vínculo que os torna iguais em algum aspecto. Sentem-se ainda como frutos de um destino e de uma vivência compartilhados ao longo de décadas. Esse traço, elemento que os torna semelhantes é a origem, rememorada e ressignificada de geração a geração através da transmissão de um conjunto de valores, que fizeram parte desse mundo italiano inicial, e através do sangue, como muitos descendentes gostam de frisar.

Não se trata, porém, de uma noção de pertencimento ligada ao Estado jurídico italiano, àquele território, àquele povo, àquela cultura, àquela nação, mas um

pertencer a uma comunidade italiana edificada com e pela construção da história da

emigração para o Brasil. É de uma comunidade imaginada (e de destino) de italianos instalados neste país que eles creem ser parte, e é dessa história que eles se orgulham, é dessas memórias que eles alimentam o vínculo com o passado.

Para Catarina Zanini (2006), a viagem, “la partenza” da Itália para o Brasil significou para os imigrantes e, posteriormente, para os descendentes, um novo nascimento. Apesar da origem comum, “a travessia, em especial, tornava-se uma passagem mitológica na construção do grupo enquanto coletividade possuidora de uma história comum, partilhada” (2006, p.15). Passagem mitológica porque significa a sobrevivência, o renascimento em uma terra muito distante, na qual passaram a viver e a conviver com outros costumes, crenças, tradições, cultura. A origem comum os identifica e os torna semelhantes, mas, ao mesmo tempo entendem que estão em outra terra, em outro país e que, doravante, fazem parte dele.

Como grupos étnicos esses imigrantes e descendentes não admitem, necessariamente, uma cultura comum, por isso é que Barth (2000, p.29) aponta que o “compartilhamento de uma mesma cultura assume importância central” somente para as teorias etnográficas ingênuas. Em seu ponto de vista, um grupo étnico pode se constituir tendo como base a diversidade cultural, porque a cultura não é o elemento central ou definidor do grupo, mas sim uma consequência dele. Pensando desse modo, quando um determinado grupo entende que entre seus membros há um eixo comum, sendo este a origem (ou o imaginário de origem), não importa o

fato de haver grandes diferenças culturais entre eles, haja vista o exemplo dos imigrantes italianos - fruilanos, vênetos, piemonteses, lombardos, trentinos, etc - que, desde os primórdios da imigração, sempre alimentaram as fronteiras culturais, pela afirmação das diferenças de hábito, de crença, de comportamento, de língua. Contudo, quando se trata da origem, todos eles se creem semelhantes.

O elemento cultura pode funcionar, em alguns casos, como traço comum, compartilhado por um determinado grupo étnico, passando até a ser um identificador deste, mas não o seu eixo central.

O que se costuma observar com frequência, é o uso de uma noção geral, alargada de cultura, que aparece, automaticamente, relacionada a um grupo étnico, sem que se leve em consideração a diversidade desse grupo. Bons exemplos dessa prática são os textos de apresentação das Associações e Sociedades italianas, disponíveis em suas páginas virtuais, os quais apresentam enunciados tais como: 1) “a ACIRS [...] tem como objetivo principal o de divulgar a língua e a cultura italianas, a fim de que os descendentes encontrem sua identidade histórica e social” (conforme o texto de apresentação37 da ACIRS - Associação Beneficente e de

Assistência Educacional do RS); 2) “a Associação Italiana Giuseppe Garibaldi foi fundada [...] com o objetivo de promover a interação entre as culturas italiana e a brasileira, mais especificamente a gaúcha, devido à situação geográfica da imigração” (conforme o texto de apresentação38 da Associação Italiana Giuseppe

Garibaldi, de Carazinho); 3) “a Associação Italiana de Santa Maria - AISM, é uma entidade civil de cunho cultural, sem fins lucrativos, que visa à preservação da cultura trazida pela imigração italiana ao Brasil, em especial, à Quarta Colônia de Imigração Italiana do RS, desde o séc. XIX” (conforme o texto Sobre a AISM39)

(destaques nossos).

A cultura, nesses enunciados, aparece como uma categoria unificada, homogênea e geral, a qual alcança e significa todos os membros de um grupo étnico. Para Barth, contudo, essa coletividade étnica é “uma forma de organização social” (2000, p.31), cuja característica principal é

37 Disponível em: http://www.acirs.org.br/empresa_aacirs.php

38 Disponível em: http://www.italianoscarazinho.com/?menu=quemsomos

a auto-atribuição e a atribuição por outros. A atribuição de uma categoria é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica, mais geral, determinada presumivelmente por sua origem e circunstância de conformação. Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos étnicos (ibidem, p. 32).

Dito isso, Barth acrescenta que a delimitação do grupo étnico se dá não pela cultura, mas pela fronteira étnica, vista por ele a partir de uma natureza dinâmica e não como propriedade estática. A fronteira se constrói pelo contato entre grupos étnicos distintos e se mantém por esse contato. O que a alimenta é o jogo de contrastes estabelecido na interação dos grupos (dois ou mais) e não na delimitação, na separação livre ou imposta que, às vezes, recai sobre os grupos. É, nesta medida, uma fronteira social – embora possa ter uma contraparte territorial, em alguns casos – porque “canaliza a vida social” (2000, p. 34), determinando formas de organização bastante complexas, bem como comportamentos e relações sociais complexos.

Partindo das considerações de Barth, compreendemos a italianidade, num contexto (brasileiro) mais atual, como elemento identificador de um grupo étnico, pois remete à origem comum dos membros desse grupo.

Pode ainda ser compreendida como um construto simbólico que tende a unificar características, hábitos, costumes, língua e cultura direcionando-os e atribuindo-os à comunidade ítalo-brasileira. Funciona como marca identitária do sujeito descendente de imigrantes italianos, assemelhando-os e aproximando-os pelos traços comuns dos quais partilham. No entanto, é importante destacar que, enquanto construção, está em constante movimento, por isso o que constitui a italianidade para os descendentes da Quarta Colônia pode não coincidir com o que a constitui para os descendentes da Serra Gaúcha ou para os da região Sudeste.

Finalmente, é um conjunto de imaginários que os descendentes de italianos têm tanto de si próprios, quanto dos demais descendentes, e que os brasileiros têm dos descendentes. Neste conjunto de imaginários está a língua, falada ou simplesmente percebida/significada pelos descendentes.

As sociedades e associações italianas desempenham, atualmente, a função de exaltar, celebrar e divulgar esse universo simbólico que representa – ou quer representar - a comunidade de descendentes italianos, a fim de afirmar, recuperar ou (re)construir sua identidade italiana baseada na origem étnica.

2. A POLÍTICA LINGUÍSTICA E O POLÍTICO: PONTOS DE