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O documento como discurso político e os lugares das línguas

3. Arquivo e memória: as formas de reescrever uma língua

3.2. O documento como discurso político e os lugares das línguas

Olhar o documento não como o discurso da verdade e da transparência, embora se crie essa ilusão, leva-nos, a compreendê-lo como discurso político sobre a língua dos imigrantes italianos e a língua italiana da Itália, uma vez que se identifica um conflito manifesto na/pela divisão (desigual) do direito ao dizer e aos modos de dizer (GUIMARÃES, 2002). Esse conflito se estabelece pois o espaço de enunciação do estatuto é regulado por uma normatividade que reparte o real de modo diferenciado. Afirma-se, no discurso estatutário/documental a importância de se “preservar”, de se manter, de se valorizar e de se divulgar a língua dos imigrantes, mas a ela se atribui o estatuto de dialeto em oposição ao estatuto de língua que somente tem aquela que refere língua oficial da Itália.

Além dessa relação conflitiva que o espaço de enunciação estatutário estabelece entre as duas diferentes línguas italianas, a regulação dos lugares de dizer também se dá pelo embate entre essas línguas com o português, língua nacional e oficial do Brasil e com o inglês76, língua que também é ofertada aos

sócios como opção de aprendizagem e figura como uma língua estrangeira. Porém, no espaço de enunciação do estatuto essa língua não entra em disputa com o italiano da Itália ou com o talian ou com o português. Ela se quer é mencionada no texto dos estatutos da AISM. Isso para não expor, para não documentar mais um conflito estabelecido pelo fato de uma associação italiana, cujo propósito é criar um espaço de comemoração, valorização e divulgação da cultura e da língua dos imigrantes italianos da região, disponibilizar o ensino do inglês ao corpo de sócios.

Quando consideramos o espaço de enunciação da AISM (e não o dos estatutos), observamos que o italiano oficial da Itália e o inglês são as línguas que a instituição comercializa. A oferta de ensino delas tem um custo, o qual é pago pelos alunos que querem aprendê-las. Eis aí mais uma contradição/conflito: uma associação que se diz, em documento, “sem fins lucrativos” além de vender os cursos de língua italiana, vende também curso de inglês, uma das línguas de maior poder de troca da atualidade.

76 Consultar o endereço eletrônico http://www.aism.com.br/siteitem/areadinamica/5/18/10/curso-de-

O português, por sua vez, não concorre, neste espaço, a um lugar de língua comercial, pois não é objeto de ensino e não gera troca de bens ou serviços. É, no entanto, a língua predominante da comunicação interna da entidade, a língua das conversas, diálogos, negociações entre os sócios, alunos, público externo e a administração/diretoria. É, inclusive, a língua dos estatutos da AISM, também de sua inscrição jurídica no quadro das associações culturais vinculadas e pertencentes ao Estado brasileiro.

O português disputa esse espaço de língua das relações comerciais e burocráticas com a língua oficial da Itália, que além de ser objeto de ensino, é ainda a língua de contato entre o Brasil e a Itália, entre a Associação e os órgãos italianos aos quais ela está vinculada e mantém acordos e parcerias. É por esta e com esta língua que se faz a pesquisa e os trâmites legais para o acesso a cidadania italiana de brasileiros descendentes de imigrantes com a colaboração e o apoio de órgãos como Consulados, Ministérios, Secretarias sediados na Itália; é, em vista disso, uma língua diplomática.

Além disso, é com esta língua que se firmam convênios com universidades e institutos italianos para a realização de cursos e intercâmbios dirigidos a professores, alunos e sócios da AISM, que se consegue ajuda financeira e apoio institucional do governo italiano para a realização de atividades, eventos, cursos que visam à divulgação e à valorização da língua e da cultura da Itália. Logo, opera como língua acadêmica.

As designações dadas acima à língua italiana, que significam seus modos de funcionar, são divisões que o espaço de enunciação da AISM configura. Essa regulação é, do mesmo modo, política, posto que permite a mesma língua assumir papéis diferenciados, fazendo parecer que todos eles são de igual importância e que podem ser tomados como unidade – ou como efeito de unidade.

Já a língua dos imigrantes italianos (talian), tem papel definido: representar uma etnia, suas origens, sua cultura e sua história, tornando-os elementos de celebração/comemoração77. A língua dos imigrantes é também objeto de

77 Ler sobre esse tema a tese de Maria Cleci Venturini, Rememoração/comemoração: prática discursiva de constituição de um imaginário urbano (2008), na qual a autora trabalha os

conceitos de rememoração e comemoração por um viés discursivo fazendo-os funcionar na análise de textualidades sobre a vida e a obra do escritor gaúcho Érico Veríssimo. A comemoração é

comemoração porque funciona como lugar de memória da imigração. Esse é seu papel e seu lugar. No espaço regulado ao qual ela se insere não ocupa o lugar de língua comercial, de ensino, de comunicação, de língua oficial, diplomática ou acadêmica, mas de língua símbolo, de língua comemoração, de língua que inscreve na história da AISM a história do imigrante italiano da Quarta Colônia, (re)criando-o e representando-o. É ainda uma língua sem estatuto de língua, por isso é designada

dialeto no discurso estatutário. Isso posto, faz aparecer novamente o conflito que se

estabelece pela regulação do espaço de enunciação da AISM que mantém cada língua em seu lugar (diferenciado); mas porque este espaço é político e põe as línguas em relação, faz parecer que elas estão em nível de igualdade, quando não o estão.

Nesse discurso, por outro lado, uma memória de sentidos sobre a imigração italiana, sobre o imigrante, sobre sua cultura e sua língua e sobre a italianidade ecoa e se põe em relação com o presente da enunciação. Isso produz a desestabilização dos sentidos, permitindo a cada nova análise, novas interpretações.

Entendemos por memória discursiva, com base em Orlandi, o interdiscurso ou o saber discursivo “que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra” (2005, p. 31). Desse modo, o que se diz no estatuto da Associação Italiana

de Santa Maria, de 2005, é, de certo modo, o que já foi dito no estatuto de 1992, e

também aquilo que consta no estatuto da Sociedade de Cultura Ítalo-Brasileira

Dante Alighieri, de 1985, e no estatuto de outras associações e sociedades, porém

com as atualizações que a temporalidade de cada dizer estabelece. Os sentidos vão sendo outros a cada nova leitura do mesmo enunciado pela mobilização da memória discursiva que é ressignificada pelo presente do dizer. Dessarte, a memória discursiva se coloca, em nosso ponto de vista, como uma maneira de reescrever (constantemente) o dizer por estar sempre condicionada às circunstâncias histórico- temporais de funcionamento.

Eduardo Guimarães vai buscar na AD de vertente francesa a noção de interdiscurso e concorda com ela quando afirma que o “passado é, no considerada por Venturini como um lugar de memória onde ocorre o embate entre a memória

discursiva ou interdiscurso e a atualização dessa memória pelo presente do dizer. É portanto um conceito histórico.

acontecimento, rememoração de enunciações” (2002, p. 12) e logo em seguida propõe que o “sujeito que enuncia é sujeito porque fala de uma região do interdiscurso, entendendo este como uma memória de sentidos” (p.14). Assim, o sujeito que enuncia no texto dos estatutos, o qual designamos enunciador político por falar em nome de uma instituição, é movido por uma memória de sentidos sobre a imigração italiana, sobre os modos de funcionar de uma sociedade/associação e sobre os modos de tomar a língua italiana e a língua dos imigrantes. Essa memória de sentidos, no discurso documental em questão, faz com que a divisão desigual dos lugares das línguas (oficial da Itália, dos imigrantes italianos, do português e do inglês) se mantenha tal qual a normatividade do espaço de enunciação institui. A memória das enunciações reafirma o político na divisão das línguas.