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Uma “nova” Sociedade italiana, um “novo” objetivo

O período que vai da década de 1940 até a década de 1980 foi bastante doloroso e traumático para os italianos das colônias brasileiras. Isso porque durante

19 Segundo o que consta no site http://www.aism.com.br/site/areadinamica/26/10/a-historia-.html,

os dois mandatos de Getúlio Vargas – o último encerrado em 1954 – não foram poupados esforços, por parte do governo, para vigiar e controlar a vida dos imigrantes e para impedir qualquer tipo de manifestação, celebração, festividade ou culto de cunho nacionalista, que não fizesse referência à nação brasileira. Foi nessa época que, por meio de decretos-leis, o governo proibiu a prática da língua italiana em locais públicos, em escolas, nas missas comunitárias e instituiu o ensino obrigatório de português em todas as escolas, inclusive naquelas criadas pelos próprios imigrantes para a alfabetização na língua falada na colônia. Também privou os italianos e seus descendentes de desempenhar uma série de funções, tais como ocupar cargos públicos, trabalhar como professores, executar cargos de chefia em órgãos estatais, etc. Tudo isso como medida para “nacionalizar” os estrangeiros.

E de certo modo foi o que aconteceu. Em muitas comunidades e famílias, os italianos, diante da vigilância constante e das ameaças empreendidas pelos cumpridores da lei, trataram de aprender e de ensinar aos seus sucessores a língua da nação (brasileira), para que não sofressem perseguição nem assédio moral.

O trauma, a vergonha e o medo permaneceram mesmo após a morte de Vargas e o fim de seu governo. A escola, como aparelho do Estado (ALTHUSSER, 1980), continuou funcionando como espaço de repressão e controle das línguas de imigração, ainda que por métodos mais velados, como o da violência simbólica. Os filhos de imigrantes seguiram sofrendo humilhações, seguiram sendo corrigidos e ridicularizados nas salas de aula. Essa prática coercitiva e corretiva permaneceu20 -

e ainda permanece, com menor intensidade e com menor abrangência – por longos anos.

No começo dos anos 80, do século XX, devido aos movimentos, manifestações e protestos contra a falta de liberdade de expressão e contra a intolerância racial, religiosa, étnica e cultural, dentre outros motivos – momento de reivindicação pela abertura política e pelo retorno da democracia – também começam a surgir novos modos de olhar a diversidade linguística e cultural do

20 Durante o período da Ditadura Militar no Brasil, o controle sobre as línguas de imigração diminuiu

consideravelmente, porém, a escola continuou funcionando como aparelho repressor, usando de violência simbólica para desvalorizar e coibir o uso dessas línguas em sala de aula.

país21. Os debates em torno da “preservação” e da valorização do patrimônio cultural

e linguístico dos imigrantes aumentam e ganham relevância principalmente nos meios acadêmico e científico. Ante tal cenário, as sociedades italianas voltam a funcionar, porém, com objetivos bastante diferenciados daqueles das antigas instituições mutualistas. O foco de interesse, nessa ocasião, passa a ser a “proteção”, a valorização das línguas e da cultura dos imigrantes italianos e descendentes, já que foram, por praticamente 40 anos, alvo de controle e combate.

Em 1985, devido às circunstâncias expostas acima e às comemorações pela passagem do centenário da Imigração Italiana, no estado, um grupo de descendentes decidiu (re)criar uma “instituição que congregasse os descendentes de italianos residentes em Santa Maria” (cf. o texto A História da AISM22). Instituiu-

se, assim, a Sociedade de Cultura Ítalo-Brasileira Dante Alighieri.

Com tal designação, outra sociedade italiana - não mais de mútuo socorro e recreativa – ganha existência, pois concordamos com Guimarães (2003, p. 54) para quem “dar nome a algo [...] é dar-lhe existência histórica”. Mas, é justamente pelo fato de a designação Sociedade de cultura ítalo-brasileira Dante Alighieri não representar apenas um nome diferente de outros e sim um nome que está em relação com outros e que produz sentido por esta relação, é que não podemos considerar a escolha desse novo nome, apenas, como uma ação fortuita ou como um acordo entre os interessados na escolha.

A designação Sociedade de Cultura ítalo-brasileira Dante Alighieri rememora a Sociedade Italiana di Mutuo Soccorso e Ricreativa de décadas passadas, (re)colocando em funcionamento os sentidos da palavra Sociedade: um agrupamento de pessoas que se reúnem para trabalhar e prestar auxílio de natureza diversa aos sócios (e também não sócios?), um espaço de confraternização, de recreação, de celebração, de aprendizagem, de rememoração das origens. Contudo, o que determina Sociedade, na nova designação, é a expressão “de Cultura ítalo-

brasileira Dante Alighieri”; esse determinante produz sentidos outros para a palavra

Sociedade.

21 Não que não existissem opiniões e práticas favoráveis à diversidade cultural e linguística antes

desse período. Elas existiam sim, no entanto, não tinham a força necessária para influenciar a opinião pública e os órgãos estatais.

A reunião das pessoas, sócios e talvez não-sócios será, assim, para discutir, para estudar, para conhecer uma cultura que é ítalo-brasileira. Observemos que esse determinante não se refere à Sociedade, mas à cultura, o que impossibilita pensar que a instituição é somente de cultura italiana. O enfoque é, assim, numa cultura constituída no Brasil a partir de uma raiz italiana.

O determinante Dante Alighieri, por sua vez, que é um nome, mas funciona também como determinante de Sociedade – Sociedade Dante Alighieri – remete ao cânone literário italiano, à língua culta, falada por grandes escritores e grandes poetas, como Dante Alighieri. Nesta medida, a referida Sociedade pode ser entendida como um lugar de celebração, de estudo da cultura ítalo-brasileira, mas também da cultura italiana representada pelos escritores, poetas e artistas canônicos. Logo, funciona também como um espaço para a divulgação da língua oficial da Itália, que é aquela normatizada, tomada como padrão e praticada por um seleto grupo de letrados, escritores reconhecidos e por homens da ciência. Por ser compreendida como um corpo homogêneo, sem fissuras e contradições, é a língua aprisionada pela norma, “língua imaginária” (ORLANDI, 2009).

Relativamente aos objetivos da Sociedade Dante Alighieri, no seu estatuto social, aprovado no dia 04 de agosto de 1985 pelo corpo de sócios e pelo presidente escolhido em votação, a saber César Augusto Barichello, figuram os seguintes:

Art. 3o – São finalidades da Sociedade:

a) – Promover a difusão da cultura e língua italiana no Brasil;

b) – Promover e desenvolver o intercâmbio literário e científico entre o Brasil e a Itália e o convívio entre brasileiros e italianos;

c) - Propiciar visitas de personalidades italianas e celebrar datas cívicas; d) – Realizar cursos e conferências;

e) – Manter bibliotecas, coral e banda típica;

f) – Preservar o patrimônio cultural dos imigrantes, tais como: arquitetura, música, hábitos e costumes (1985, p. 1) (destaques nossos).

O escopo da entidade ganha uma modulação mais diplomática e até mais comercial, voltado às atividades de intercâmbio tanto cultural como científico entre Brasil e Itália. Se antes a relação entre esses dois países se amparava unicamente

no e pelo acordo de fluxo migratório, neste momento, a relação entre ambos se

acadêmica – a realização de cursos e conferências, a visita de personalidades italianas, a realização de intercâmbios.

A Sociedade funciona agora como um lugar de (re)encontro, como uma ponte que leva seus sócios a terem contato com a Itália do presente e não mais do passado. A Itália do passado, da época da imigração tem seu lugar de representação na arquitetura, na música, nos hábitos, nos costumes, nas danças, nas festividades, nas línguas dos imigrantes e descentes, elementos esses que a Sociedade ajuda a “preservar”, porque constituem o patrimônio cultural da imigração. Não se especifica, porém, quais são os meios utilizados para realizar essa “preservação”.

Logicamente não há como fazê-lo, salvo em relação ao patrimônio arquitetônico, mas o papel social e político da entidade é esse, embora na prática não haja meios possíveis para tal, porque os outros elementos que constituem o patrimônio cultural, tais como a língua, os hábitos, os costumes, têm caráter imaterial (CERVO, 2012).

A sociedade de outrora qualificada como mutualista e recreativa dá lugar, mais de quatro décadas após, a uma sociedade de cultura ítalo-brasileira porque as circunstâncias históricas são outras, a condição de vida dos imigrantes e descendentes também, favorecendo o surgimento de outras demandas, de outras necessidades.

Com relação ao objetivo primeiro da sociedade, “promover a difusão da cultura e língua italiana no Brasil”, não está explicitado no texto a qual cultura e a qual língua italiana se está fazendo referência, se à cultura construída e nutrida nas colônias e regiões de imigração – que não é uma cultura una, homogênea - ao longo de mais de um século, ou se à(s) cultura(s) da Itália daquela época. O mesmo acontece com a difusão da língua italiana, cuja referência não está clara, no texto, se é a(s) língua(s) trazida(s) pelos imigrantes ou se a língua oficial da Itália.

Essas ambiguidades no texto do estatuto são a expressão do político, isso porque seu funcionamento não se pauta em linhas definidas, justamente para produzir um efeito de igualdade na partilha dos direitos. O enunciado “cultura e língua italiana” não define, não determina o referente, se a cultura e a língua dos imigrantes, ou se a cultura e a língua da Itália, por isso dissolve o conflito causado

pela distribuição desigual dos lugares dessas línguas. Nesse sentido, “cultura e língua italiana” são o consenso, já que diluem, ofuscam, apagam o (des)entendimento do que seja tal língua italiana. No enunciado, língua italiana é língua italiana, seja esta do lugar que for. O mesmo vale para a cultura italiana.

Em linhas gerais, podemos considerar que o escopo da Sociedade de Cultura

Ítalo-Brasileira “Dante Alighieri” é estabelecer um elo entre uma região, no caso a

região de Santa Maria, de colonização italiana, e o país de onde vieram os imigrantes colonizadores, já que as demais ações visadas acabam sendo relegadas a um segundo plano, dada a dificuldade ou a impossibilidade de colocá-las em prática.

No entanto, é fundamental, politicamente, para a Sociedade que ela se reconheça e seja reconhecida como um órgão que valoriza e divulga a cultura e a(s) língua(s) italiana(s) da região, pois é para isso que foi criada.