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2. A política linguística e o político: pontos de intersecção no funcionamento

2.2. O lugar das línguas

Estudar o funcionamento de uma língua em um espaço determinado, tomando este funcionamento não como um fato a priori ou como uma consequência da vontade de seus falantes, mas como uma condição histórica na qual os sujeitos competem por modos e direitos ao dizer, e as línguas disputam entre si os lugares de dizer, leva-nos a considerar, inicialmente, dois aspectos: o primeiro, que as

57 Essa palavra aparece com muita frequência em textos institucionais de política para uma

determinada língua ou para várias línguas. O verbo “preservar” expressa a ilusão que se mantém em relação a continuação, a conservação de um bem que é imaterial e, portanto, não pode ser conservado.

línguas são tomadas de modos diferentes umas das outras, cumprindo, assim, papéis, funções díspares, o que lhes confere status diferenciados, valores incongruentes. É o político enquanto traço intrínseco à língua e enquanto determinante de seu funcionamento. O segundo, que a função outorgada à língua, o seu valor simbólico para a comunidade de falantes e o que ela representa – ou deva representar - para o estado ou para a nação formam um conjunto de questões pensadas, discutidas, planejadas, decididas e postas em prática por quem tem poder para isso. É a política linguística como planejamento de ações que incidem sobre a língua tanto no âmbito funcional (status), quanto no formal (corpus).

Levar em consideração esses dois aspectos é, certamente, uma maneira de traçar a historicidade de uma língua, pela confluência de fatos diacrônicos e sincrônicos, que permitem entender por quais circunstâncias esta língua ocupa tal ou qual lugar, por que e por quem (não) foi escolhida, como se relaciona com as demais línguas que dividem o mesmo espaço de funcionamento, com os sujeitos que a falam e com aqueles que não a falam.

Nosso foco de interesse materializa-se na contradição de se assumir discursivamente a função de “proteger, valorizar, resgatar” uma língua, ao mesmo tempo em que se nega lugar a ela, pois o que se ensina e se divulga é outra língua.

Delineando mais a questão: uma Associação italiana (Associação Italiana de

Santa Maria) é criada em uma região de imigração italiana – a Quarta Colônia de

Imigração Italiana58, na região central do Rio Grande do Sul – como sucessora de

uma Sociedade Italiana (Sociedade Dante Alighieri). Sobre as motivações de sua fundação (da AISM) que circulam na página web59 da entidade, em folhetos, artigos,

estatutos e em outros textos tem-se: a AISM “é uma entidade civil de cunho cultural, sem fins lucrativos, que visa a preservação da cultura trazida pela imigração italiana ao Brasil60, em especial, à Quarta Colônia de Imigração Italiana do RS, desde o séc.

XIX”61. Ainda, “atua no resgate, na manutenção e na difusão de valores da

58 A Quarta Colônia de Imigração Italiana foi fundada em 1878, sendo sua sede localizada no atual

município de Silveira Martins. As três colônias anteriores foram: Conde d’Eu, hoje correspondendo ao município de Garibaldi, Dona Isabel, atual Bento Gonçalves, e Caxias do Sul, atual cidade com o mesmo nome.

59 www.aism.com.br 60 Grifo nosso.

61 Citação recortada do texto Sobre a AISM, disponível na página web da Associação acima

italianidade, desenvolvendo atividades relacionadas com esses objetivos” (ibid.). É, em síntese, uma instituição que visa ao fomento, à divulgação e à recuperação de um conjunto de valores simbólicos, dentre os quais, a língua e a cultura, que constituem esse universo designado “italianidade”.

Ademais do planejamento e prática de atividades que visam à “preservação” da língua e da cultura italiana originárias da comunidade de imigrantes local - o que entendemos como políticas de valorização da língua italiana dos imigrantes - a instituição tem outros objetivos: acolher, para formar o corpo de sócios, “descendentes de italianos e pessoas que se identificam com a cultura italiana, ou mesmo pessoas interessadas em atividades na Itália, desde crianças a adultos da terceira idade”; ofertar cursos “de Língua e Cultura Italiana, reconhecidos pelo Consulado Geral da Itália” (ibid.).

O desenvolvimento de projetos, de ações, de atividades em parceria ou com o apoio do Consulado Italiano é, de um lado, uma maneira de a Associação ganhar maior visibilidade no plano regional, ampliando assim suas fontes de recursos financeiros com a adesão de novos sócios, e, de outro, um modo de a Itália, através de seu Consulado, expandir o ensino de sua língua oficial em países que receberam seus emigrados nos séculos XIX e XX.

A Associação Italiana de Santa Maria recebe incentivo financeiro do Consulado Italiano para a realização dos cursos de língua italiana e também para que seu corpo docente faça periodicamente cursos de atualização em língua e cultura italiana, na Itália.

Essa ‘língua italiana’ referida acima é a língua oficial da Itália (ou língua toscana) e não a língua dos imigrantes falada na região da Quarta Colônia e em outras regiões de imigração do estado e do sul do país ou mesmo o talian. Visualizamos, desse modo, a efetivação de uma (outra) política de promoção/divulgação/valorização da língua oficial atual da Itália.

São duas políticas linguísticas, pensadas e planejadas não apenas pela

Associação Italiana de Santa Maria - já que uma delas tem a interferência direta do

Estado Italiano, representado pelo Consulado - porém executadas, ao fim e ao cabo, por ela. Se a AISM pratica uma política de valorização e “preservação” da língua dos imigrantes (ou língua de imigração), pratica também uma política de

incremento/promoção, divulgação da língua italiana da Itália em parceria com o Consulado. São, portanto, duas políticas distintas: uma contempla a realização de eventos, festividades, comemorações, jantares, a criação de grupos de dança, canto e teatro a fim de preservar e valorizar a língua e a cultura dos imigrantes; a outra compreende atividades, projetos, práticas de estudo e ensino da língua e da cultura italiana da Itália. Vemos, assim, uma divisão, uma partilha desigual dos espaços de funcionamento das duas línguas, embora o discurso que legitima e justifica a existência da AISM crie um efeito de igualdade de direitos para ambas ou até de superioridade de direitos da língua dos imigrantes – que é a língua de menor prestígio62 ou língua minoritária, por isso, designada dialeto, no discurso da

associação - fato este que não se comprova na dinâmica das ações da Associação. Esse efeito de paridade na disposição das línguas manifesto no discurso da AISM faz ressoar o consenso (controle dos sentidos), que Rancière (1996) caracteriza como a manutenção de uma ordem estabelecida em que a desigualdade na partição do real deve parecer igualitária e a única possível.

Por outro lado, e como continuação dessa ideia, a contradição que se instala por não haver igualdade na distribuição dos espaços de funcionamento das línguas, sendo esta igualdade afirmada, faz ressoar o político.

O político não deve ser entendido, da forma que o tomamos acima, no seu sentido empírico ou do senso comum que é aquele relacionado a atos políticos partidários ou a própria política, enquanto governo, administração dos “interesses” do povo. O político, tal qual o concebemos, é um termo/conceito cunhado pelo filósofo francês Jaques Rancière (1996, 2007) e posteriormente ressignificado pelo semanticista Eduardo Guimarães (2002). É, nessa ótica, a partilha do real e, portanto, a partilha dos sentidos, de modo que os desprovidos de direito acreditem que este lhe é assegurado.

Do mesmo modo ocorre a divisão das línguas pelo espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002), que é predominantemente político e, portanto, atribui às

62 Sobre a questão do prestígio, James Milroy (2011) o considera um atributo conferido pelo corpo

social à uma variedade linguística, que corresponde, geralmente, mas não necessariamente, à variedade padrão. O prestígio, segundo ele, é uma “categoria socialmente avaliativa” (p. 53) que, em relação às línguas ou às variedades linguísticas, estabelece aquela que tem mais valor. Sobre essa questão ler: MILROY, James. Ideologias linguísticas e as consequências da padronização. In:

línguas lugares diferenciados de significação, determinando, com isso, quem tem direito à palavra segundo os espaços regulados para o dizer.

O político, compreendido na sua relação com a política linguística não se confunde, em nossa leitura, com o seu funcionamento no campo da política de línguas, cujas origens remontam à Análise de discurso de viés pecheutiano, no qual se trabalham/investigam/analisam os modos como as línguas são divididas espacialmente e para seus falantes e, ainda, como e quando estes podem/devem tomar a palavra.

Trabalhar a política de línguas é, para nós, um exercício inevitável, porque é nela e por ela que o político se materializa, ganha corpo, existência, na forma de contradição, ou seja, de não satisfação do direito a (vida, liberdade, língua...) assegurado pelo discurso jurídico. Mas, além disso, interessa-nos sobremaneira o estudo do político funcionando a partir de (e em virtude de) políticas para a língua dos imigrantes italianos e para a língua italiana da Itália, provenientes da Associação

Italiana de santa Maria. Tais políticas, consideramo-las não apenas nas suas

dimensões ideológica e social, como resultantes das relações de poder as quais regulam o funcionamento das línguas, mas também como planejamento ou planificação linguística, que implica escolhas, tomadas de decisões e práticas relativamente à(s) língua(s), o que afeta, como consequência a relação das línguas com os seus falantes. Trata-se da política linguística entendida na base do planejamento linguístico.

As diferentes formas de designar uma língua – por exemplo, língua dos imigrantes, língua italiana, talian – e a distinção estabelecida entre as designações

língua e dialeto são tratadas por nós como questões de política linguística, as quais

englobam discussões, acordos, desacordos tanto no âmbito acadêmico (entre linguistas, gramáticos, dialetólogos, etc.) quanto no âmbito político-governamental, por quem debate, elabora, sanciona leis respeitante às línguas. São nesses meios que se mantém ou se modifica o status quo de uma língua, levando-se em consideração, para isso, fatores de ordem política, cultural, linguística, antropológica, social, histórica. Determina-se, assim, se uma língua segue sendo língua, se passa a ser dialeto, ou, se um dialeto segue sendo dialeto ou se passa a ser língua.