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A POPULAÇÃO ANÓNIMA RUA

No documento José Manuel Cymbron (páginas 165-173)

Os contos que compõem o livro Rua têm como cenário a cidade de Coimbra. Contam- nos histórias aparentemente simples de pessoas também aparentemente simples. É importante chamar a atenção para o facto de que são contemporâneos de Bichos, Contos

da Montanha e Novos Contos da Montanha. A primeira metade da década de quarenta é

o lustro áureo do Torga contista.

Tal como Novos Contos da Montanha, Rua começa com uma história de morte violenta e termina com uma de nascimento (que tudo promete).

A 4ª. Edição (1967) é refundida e aumentada. Isto parece-nos muito importante, pois revela que Rua cobre um período de cerca de 25 anos.

Através destes contos, que nos levam ao mundo das camadas sociais mais desfavorecidas e da pequena e média burguesia, Torga coloca-nos, essencialmente, perante «A Dor humana» (Verde, 1964: 111), com contos onde os temas centrais são: o suicídio, («Não Venha Mais», «Música» e «O Senhor Cosme»), a prepotência («O Senhor Cosme»), a hipocrisia e traição («O Teixeirinha»), a humilhação («Não Venha Mais»), a emigração («Uma Dor»), a prostituição («A Leonor Viajada»), a reforma («A Reforma») e a doença («O Teixeirinha» e «Um Dia Triste»). Contudo, a esperança também está presente neste livro, aparecendo com os seguintes temas: amor («Não Venha Mais», «O Estrela e a Mulher» e «Uma Dor»), humor (essencialmente em «O Estrela e a Mulher», mas também, numa curta passagem, na página 9, em «Não Venha Mais»), música «Música», nascimento («Pensão Central»), convívio com vizinhos e com o mundo («O Estrela e a Mulher») e gosto pela vida e pelo trabalho («O Mundo»). Com a 4ª edição de Rua, surge o conto «A Carta» e são retirados «Um Destino» e «O Mundo».

Poder-se-á compreender a rejeição que Torga faz de «Um Destino»; consideramos, contudo, que «O Mundo» deveria permanecer, pois com a sua leitura, conseguimos ouvir a voz, «límpida» e «Infantil», dum ardina (Jacinto) que, «mesmo a anunciar a

morte», «anunciava a vida.» O registo da voz do jovem Jacinto é, também, uma homenagem a todos os ardinas que nas ruas das grandes cidades, durante décadas, lembravam, diariamente, que o mundo era vasto e diversificado. Vejamos duas passagens deste conto:

- Mundo!

E a sua voz, límpida, infantil, parecia um clarim na alvorada. - Olha O Mundo!

Depois de receber o jornal na estação, tinha de atravessar toda a Baixa para chegar ao centro da cidade. E desde a rua das Rãs, onde vivia, até ao Beco do Fanado, o seu grito entrava por aqueles pardieiros dentro, subia, subia, varava os telhados, e libertava-se de tanta podridão e de tanta miséria no azul amplo e saudável do céu.

- Cá está O Mundo! (p. 191) (…)

E mesmo a anunciar a morte, a palavra do garoto anunciava a vida. - Mundo! (p. 193)

Passamos a analisar o que nos parece importante, no contexto desta tese, no livro Rua:

«Não Venha Mais…»

«Não Venha Mais» começa por ser uma história de amor, a que não falta também um toque de humor:

E depois do jantar da boda (…) apenas o último convidado se retirou e entraram no quarto, foi ela que deu expressão ao sentimento de ambos:

- Sinto-me tão feliz, que só me apetece chorar…

Ele porém reagiu, beijou-a, e no dia seguinte, ao partir para o emprego, deixou-a na cozinha, feliz realmente, mas a cantar. (p. 9).

Mas este conto é, essencialmente, uma história de «abismos de humilhação.» (p. 15) em que caíam muitos trabalhadores quando convidavam os patrões para padrinhos dos seus filhos.

«O Estrela e a Mulher»

Pela vida e alegria que Torga põe em cada momento do conto, parece-nos ser o mais conseguido conto de Rua. Um barbeiro, a sua mulher (D. Aninhas), a sua barbearia, o

seu vizinho latoeiro e muita imaginação tornam um humilde espaço num mundo de histórias, luzes, sabores, tranquilidade e afecto, que visitaríamos apaixonadamente. Vejamos duas passagens:

1ª.

O Estrela, esse, vestia a bata e chegava-se à porta. - Então Deus nos dê muito bons dias!

Cumprimentava ao mesmo tempo o mundo e o seu grande amigalhaço, o Gil, latoeiro e vizinho.

- Vamos a ele, ou quê? - Tem de ser…

Era o mata-bicho sacramental. Bastava-lhes dobrar a esquina. O Moreira parece que mandava fabricar aquela aguardente no céu. Um sinal, apenas, e os cálices apareciam cheios e perfumados sobre o balcão.

- À nossa! - Cá vai…

Pagavam, saíam, e o taberneiro, com açúcar na urina, arrasado de bronquite, e guardado como um carneiro pela mulher, desabafava sozinho:

- Que estômagos! Que saúde! Que naturezas! Porcaria de mundo! (pp. 35-6)

2ª.

Quê?! O senhor Estrela conhecia o Terreiro do Paço?! A sério?! O Lucas, que nunca saíra da terra, parecia que estava diante dum milagre.

(…)

Mas a quê? A que tinham ido os dois a Lisboa?

Olharam-se ternamente, numa maliciosa cumplicidade. - Hom’essa!

Bem, ele perguntava, apenas… - A nada!

(…) - A nada?! - Pois!

Avivou-se ainda mais no rosto do Estrela e da companheira o clarão de há pouco. Sorriam como se tivessem roubado à vida uma areia sagrada, um minuto doirado. - Passear ?!!!

(…)

Passear!... – murmurou o Lucas, a remoer um pensamento fundo, de oficial de diligências. (pp.40-42)

«Uma Dor»

É uma história de profunda solidão, provocada pelo medo de ser frontal, pela incompreensão, pela maldade e pelo absurdo, que muitas vezes é a vida.

O Rolim, muitos anos emigrante nos Estados Unidos, regressa a Portugal depois de ter praticado graves crimes e de ter tido uma filha. A mulher e os companheiros da «Praça velha», conheciam as histórias dos crimes, mas o Rolim nunca teve coragem de lhes revelar que tinha uma filha:

O próprio retrato da pequenita, o único testemunho físico que lhe restava, foi preciso rasgá-lo um dia. (…) Era um domingo à tardinha. Saíra a passeio pela estrada do rio, e caminhava a esmo pelos campos fora. Uma leira de cevada a despontar, verde e viva, enchia o mundo de esperança. Mas nem este incitamento da natureza o impediu. Incapaz de lutar com a mulher – ele que lutara com tanta gente! -, desfez a relíquia em mil bocadinhos e deitou-a a um poço. (pp. 53-54)

«O Teixeirinha»

Quando, na vida, qualquer «senhor Teixeira» é «Teixeirinha» dificilmente (diríamos, mesmo, só por milagre) consegue escapar à humilhação e à traição.

«Um Dia Triste»

Trabalho dum médico indo a casas tristes de doentes. «A Reforma»

O drama da reforma, porque é quase certa a perda de status: «E naquele silêncio sentiam os três que se esvaía o resto da importância do 110.» (p.105)

«A Leonor Viajada»

Os caminhos da miséria que levam à prostituição e a decepção com os artistas [(«Artista… Ora isto de artistas, fora lá das cousas do ofício, é uma gente que tanto se lhe dá como se lhe deu.» (p. 117)]

«O Senhor Cosme»

A prepotência e a crueldade dos preconceitos.

A «menina Luísa» (que se suicida) e o «Senhor Cosme» (que se deixa morrer) são vítimas da «mesqinhez do meio (…) tão tirânica como a prepotência do poder.» (Torga, 1999: 1265).

Pensamos que o mesmo poderia ser dito em relação ao conto «A Carta».

«Música»

A falta de coragem, que pode, como foi no caso do «senhor Lopes», levar ao suicídio.

«Pensão Central»

Já vimos, quando abordámos a formação universitária de Torga e o exercício de medicina, a importância, para o escritor, do nascimento de uma criança, sublimemente descrito em A Criação do Mundo. Mas o fascínio que Torga sentia com o nascimento de uma criança é também admiravelmente descrito em «Pensão Central»:

É a Maternidade. Encoste-se às grades dum jardinzito que fica em frente, e deixe-se estar meia hora à espera. É maravilhoso! A princípio é um silêncio completo que se ouve, e que prepara o espírito. Depois, há uns gritos desesperados e secos que parecem furar o céu. Não faça caso. Por fim aparece ele. É um vagido fresco, cristalino, que entra no coração da gente como uma carícia. Não calcula a frescura que irradia o primeiro choro duma criança, a orvalhar a solidão da noite! (pp. 180-1)

Este conto, o último e o mais longo de Rua, alerta-nos também para o mistério, encanto e carícia que é um passeio, de madrugada, por jardins e ruas desertas. Olhemos para dois exemplos:

1º. A senhora já viu uma fonte, a desoras? Experimente. Não é nada, mas nada!, daquilo que se vê de dia. Muda tudo. O som da água a cair, a cor, o volume… E um parque? De dia, um parque é uma mata vulgar. Árvores, árvores, árvores… Mas de noite a coisa fia doutra maneira! A realidade parece transfigurar-se. Os troncos agigantam-se, os ramos espiritualizam-se, as folhas palpitam… (Torga, 1985: 181)

2º. Uma rua deserta! (…) De dia as casas que a marginam apagam-se, emudecem, parecem soldados na formatura, em sentido, todas iguais e anónimas. (…) Mas vá vê-las de noite… Não há uma que não tenha as suas coisas a dizer, a sua história a contar…

Até os bancos! Até esses gordos casarões de dinheiro! E as igrejas? Se a senhora D. Teresa acredita em Deus e quer conhecer verdadeiramente o lugar onde ele mora, vá olhar uma igreja de madrugada. (Torga, 1985: 181-2)

4.7. NATUREZA

Pensamos que a primeira preocupação a ter no início deste sub-capítulo, consiste em recordar e reforçar o que foi dito na terceira página do presente capítulo («Coimbra»). Torga situava Coimbra num enquadramento geográfico muito mais vasto do que o da cidade e seus arredores. Em Coimbra, o autor de Portugal sentia-se, de facto, «A meio caminho dum chão montanhês convulsionado e dum litoral batido por ondas impetuosas». O «chão montanhês» e o «litoral batido por ondas impetuosas», são, desde a infância do escritor, as suas grandes referências geográficas, mas Torga não dispensava também «um equilíbrio urbano sintonizado com o remanso da paisagem circundante, ambos propícios às libertinagens românticas do sonho e aos abandonos macerados da criação.» (Torga, 1981: 40-41). O «chão montanhês» visita-o Torga cerca de três vezes por ano, como vimos quando falámos de S. Martinho de Anta. O litoral, certamente por ser muito mais próximo, visita-o com mais frequência, embora, muito provavelmente, nem sempre deixando registo dessas visitas. Numa curta nota escrita na Figueira da Foz em 22-2-1987, o autor de Mar deixa-nos bem claro o quão importante era para a sua «angústia» o mar onde desaguava o Mondego: «De vez em quando, a propósito e a despropósito, venho desaguar a angústia neste mar desassossegado. Tenho a sensação de a deixar embalada no único regaço que a merece.» (Torga, 1999: 1572). O «remanso da paisagem circundante», feito de «um manto de luz sedativa» e de uma «irrealidade poética» criada por esse «manto de luz» e pelo alvoroço das sementeiras e da melancolia das desfolhadas» propiciava um «Cenário para um perpétuo renascimento do espírito que (…) poderia ter a Grécia e a Itália reunidas na mesma colina debruada de choupos e de oliveiras.». (Torga 1986: 90).

O Mondego com as suas margens e campos proporcionaram-lhe magníficos passeios diários e frequentes caçadas às perdizes, às narcejas e … às palavras. Veja-se, na íntegra, o poema «Largo da Portagem», de Vasco Pereira da Costa:

Desperta o rio

ao lado da cidade quieta Esvai-se a noite em amor

em quimera e desafio numa balada do Zeca

Uma vela de sol moço acorda

e repõe o alvoroço na barca da rebeldia Trás da janela do Torga

Portugal parte à poesia. (in Arnaut, 1996: 132)

A velocidade das transformações operadas na arte, na ciência e na técnica, se frequentemente enchiam de esperança o médico e o escritor, não raras vezes deixavam- no angustiado: «Contra o aceleramento da história, um passeio no campo. Não conheço outro antídoto.» E, na mesma nota, reforça a ideia do valor dos passeios no campo dizendo que «só há o recurso das hortas» como antídoto «Contra o aceleramento da história.» (Torga, 1999: 626)

Parece-nos muito significativo o facto de Torga ter na sua casa da rua Fernando Pessoa um jardim e uma horta de que se ocupava regular e, como em tudo em que se envolvia, intensamente. Andrée, sua mulher, partilhava desta paixão. Sabemos que ela o acompanhava nos trabalhos de jardinagem e nos passeios «pelos campos fora». Leia-se a repousante nota de cinco de Junho de 1950, bem esclarecedora do gosto de ambos pelos passeios na natureza:

Nestes dias de primavera, quando à tardinha, depois de arrumada a charrua, vou com a mulher pelos campos fora, é tal a beleza e a calma dos choupos, das oliveiras, do rio e da cidade vista de longe, que nenhuma outra nesga do mundo me poderia dar uma noção mais perfeita de harmonia e uma sensação tão completa de paz. (Torga, 1999: 523)

Torga diz-nos também que quando morava na estrada da Beira (de inícios dos anos quarenta até 1953) atravessava quatro vezes por dia o jardim (ver Torga, 1981: 44), nas deslocações entre a casa e o consultório.

E terminemos este sub-capítulo (Natureza) com uma referência aos espaços clássicos da paisagem da cidade e outra à importância para o escritor da paisagem que observava da janela do consultório:

- «Olha poetas! Isso é uma chusma deles. É que por toda a parte há sítios de inspiração… A Lapa dos Esteios, o Penedo da Saudade, o da Meditação, o Choupal… » (Torga, 1970: 36).

Torga, os seus colegas e as primeiras gerações dos seus discípulos viram repetidamente todos estes lugares inspiradores. Nós também podemos vê-los, embora no Penedo da Saudade já não possamos ter os êxtases que muitas gerações tiveram, pois uma enorme área de espaços verdes que se avistavam do Penedo foi substituída por prédios e do Penedo da Meditação avistamos extensas áreas ocupadas por vias rápidas (mal inevitável) e (mal facilmente evitável) o espaço do Penedo está escandalosamente degradado.

- A paisagem que o escritor observava das janelas do seu consultório [rio e campos verdes - «pasto bucólico da imaginação» (Torga, 1981: 9)], ajudou-o, durante «meio século», a perspectivar «o mundo inteiro», o qual Miguel Torga, aos oitenta e dois anos, define como um mundo «Misterioso e apaixonante.» (Torga, 1999: 1683)

No documento José Manuel Cymbron (páginas 165-173)