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INTRODUÇÃO

No documento José Manuel Cymbron (páginas 127-132)

Coimbra aparece nas seguintes obras torguianas:

- A Criação do Mundo (201 páginas, num total de 922 – 21,8%):

(Vila Nova de Miranda do Corvo, aldeia a cerca de 20 km de Coimbra, e onde Torga exerceu medicina entre 1934 e 1937, ocupa, no II volume de Criação do Mundo, 49 páginas. Importa referir isto no momento em que se vai falar de Coimbra, porque Vila Nova de Miranda do Corvo é frequentemente, para o poeta, uma extensão da cidade do Mondego; aqui chega a vir duas vezes por semana (veja-se Torga,1970: 159), e uma boa parte das 49 páginas – 132-139 e 141-183 - tem referências a Coimbra.)

Volume IV, 5º Dia: pp. 13-26; 67-72 (total – 18);

Volume V, 6º. Dia: pp. 41-70; 73-92; 96-109; 126-131; 137-142; 144-147; 150-165 ; 184-198 (total – 103);

- Diário – 2045 notas. (A totalidade do Diário tem 3816 notas);

- Rua –Todos os contos de Rua poderiam ter sido inspirados em Coimbra, contudo há fortes motivos para se considerar que «O Estrela e a Mulher» tem como inspiração e cenário a cidade de Leiria (ver «A Leiria de Miguel Torga», de Carlos Alberto Silva, p. 14);

- Portugal - capítulo «Coimbra»;

- Pedras Lavradas - Num total de vinte e dois contos, pensamos que oito encontram um enquadramento perfeito na «Agarez alfabeta». É o caso de «A consulta», «O juiz», «O cobarde», «O absoluto», «O milionário», «Outono»; «A herança» e «A identificação»; - Fogo Preso - «Eça de Queirós e Coimbra» e uma breve passagem de «Teixeira de Pascoaes», pp. 45-46).

Torga é o único grande escritor nacional que vive toda a vida de adulto em Coimbra. Esta é uma razão muito forte para que a sua obra seja considerada um dos principais patrimónios de Coimbra, principalmente se criarmos o eixo Coimbra-Vila Nova de Miranda do Corvo.

Foi, essencialmente, em Coimbra e em S. Martinho, que o escritor conseguiu «construir, transfigurar, resumir e arrancar o eterno do circunstancial» (Torga 1999: 335) e, em consequência disso, pôde dar muitas «respostas eternas às perguntas do mundo» e algumas às suas perguntas pessoais.

As seis obras torguianas onde surge Coimbra permitem-nos afirmar que para compreendermos a Coimbra de Torga, são fundamentais as seguintes palavras/temas: Universidade, Literatura, Medicina/Consultório, Juventude, População Anónima, Natureza, Casa/Lar, Auto-Retrato, Infância e Mundo.

E as cinco citações em epígrafe dão-nos um retrato das seis principais especificidades da Coimbra torguiana:

- «uma neutralidade vigilante» entre Lisboa e Porto e que por esse motivo faz «a osmose do espírito que parte com o corpo que fica.»;

- Situava-se «A meio caminho dum chão montanhês convulsionado e dum litoral batido por ondas impetuosas», isto é, situava-se entre a Montanha (S. Martinho) e o Atlântico, dois pólos fundamentais na vida e obra do autor;

- «A paisagem circundante» foi também fundamental para que Torga criasse raízes em Coimbra.

[Estas três primeiras especificidades permitem-nos afirmar que, tal como em S. Martinho, em Coimbra, o poeta sente-se numa região geográfica privilegiada – e conhecemos bem a importância que ele dava à «geografia psicológica» [ver nota do

Diário de 21-3-1943, ou rever o sub-capítulo desta tese «Natureza» do capítulo «S.

Martinho de Anta(s)];

- Coimbra era a sua «Agarez» (leia-se S. Martinho de Anta) «alfabeta»;

- Apesar de Torga se ter sentido «traído» (Torga, 1981: 60) no seu amor pela Universidade, Coimbra não deixava de ser para ele um espaço de enorme esperança, porque era «uma cidade de jovens.»;

- O Orfeu Rebelde não tinha esperança nos adultos da cidade universitária. Lentes, comerciantes e industriais não se actualizavam. Como dizia Régio, em Balada de Coimbra, «Os vivos é só dormir…».

Em S. Martinho de Anta, Torga adquiriu consciência individual [foi no monte S. Domingos que o jovem Adolfo Rocha sentiu pela primeira vez o seu «destino de artista» (Torga, 1999: 852-3) e de grupo (grupo restrito, local). Em Sagres, irá adquirir

plena consciência da comunidade nacional. Em Coimbra, nas viagens que faz ao estrangeiro e durante o período em que está preso em Lisboa, o autor do Diário terá adquirido consciência da totalidade da humanidade. Este processo, que se solidificou ao longo de muitos anos, teve, muito provavelmente, como clímax o admirável discurso que o escritor proferiu na Universidade de Coimbra em 12-9-1967, aquando das comemorações do 1º Centenário da abolição da pena de morte em Portugal. O discurso, publicado no Diário e feito com o melhor da energia, da sensibilidade e do saber do poeta e do médico, é um hino à Vida e à Humanidade.

Torga leu António Nobre ainda antes de ser estudante universitário. Foi no colégio do «Dr. Almeida» e da «D. Adélia.» (Torga, 1970: 39).

O seu sentimento telúrico e a sede de Justiça não foram certamente insensíveis aos versos de Nobre na «Carta a Manuel»:

(…)

Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra! (…)

E o rio? e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas? (…)

Por esses doces, religiosos arredores, (…)

Vê-se currais, eiras, crianças pequeninas, Bois a pastar ao longe, aves dizendo missa

À Natureza e o Sol a semear Justiça! (Nobre, 1974: 62, 64 e 66)

A visão de Régio sobre Coimbra certamente que também influenciou o autor d’A

Criação do Mundo.

O autor de Confissão dum Homem Religioso diz-nos, a propósito da opção entre Coimbra e Porto para realizar os seus estudos universitários: «Sonhava com a minha Coimbra de António Nobre, com a boémia de Coimbra, com a paisagem de Coimbra, com o romantismo e todos os mitos mais ou menos poéticos de Coimbra… (…) Até este nome cantava – ainda hoje canta – aos meus ouvidos.» (Régio, 2001: 79)

As expectativas de Régio não ficaram frustradas. Os lentes não o conquistaram, mas as expectativas também não eram altas. Os estímulos e as condições para aprofundar a sua já vastíssima cultura são-lhe dados pela diversidade de livros que encontra na Biblioteca, por colegas que vai conhecendo e pelo fascinante Ricardo Abrantes (leia-se – como nos informou Eugénio Lisboa - Afonso Duarte).

Com base nas palavras e nas ideias da «Balada de Coimbra», de José Régio, pensamos que podemos apresentar o sentimento dos jovens da geração da Presença (muito em particular o de Torga, devido à carga telúrica e à intensidade e conteúdo da mensagem final), em relação a Coimbra, nos seguintes termos:

A terra - em «longo colóquio mudo» e sonoro, com ela própria e com o céu, e através de troncos, frutos e folhas de tantas árvores, «sonhos dispersos/Que o vento leva na mão!», «pedras que têm seios», «ais dos sinos na bruma», e do «choro» da guitarra do Paredes e dos «Gritos de cristal e de oiro» do Bettencourt - impôs-lhes o sonho e a loucura de gritarem, contra a apatia dos vivos e em sintonia com a água da «Fonte do Largo da Sé»:

- Mortos do adro, de pé!, Que os vivos é só dormir…

O património construído e a história de Coimbra, que tanto entusiasmaram o adolescente Adolfo Rocha nos seus primeiros tempos de Coimbra10, aparecem muito pouco na obra torguiana. Pensamos que o autor do Diário interiorizou profunda e facilmente a importância do passado da cidade, o que lhe permitiu não ter que os referir com frequência; e, como poeta que era, tinha que estar essencialmente disponível para observar e registar o «seu tempo», e sobre ele reflectir [«como poderia o poeta não ser do seu tempo, se ele é sempre a mais alta consciência de um tempo?» (Torga, 1999: 623)]. Contudo, e parece-nos importante reforçar esta ideia, nos seus passeios pelo centro histórico de Coimbra (pensemos nos espaços envolventes das Igrejas de Santiago e de Santa Cruz, locais onde passava diariamente) é impossível que não se identificasse com esses espaços e não se sentisse com «oitocentos anos de idade» (Torga, 1999: 1631).

«Não calculas o respeito que senti por certos camaradas teus conterrâneos que olhavam a arquitectura de algumas fábricas de S. Paulo com o embevecimento com que eu contemplo a Sé Velha!» Esta passagem de uma carta de Torga ao seu amigo brasileiro Ribeiro Couto (Torga, 1969: 155) é bem esclarecedora da paixão do poeta pelas construções que o passado nos legou e do respeito pelas construções modernas.

10 «Cada recanto, além da poesia própria, tinha a história a redoirar-lhe os musgos. As algas da Fonte dos Amores pareciam realmente o sangue vertido de Inês de Castro; as águas estagnadas de Santa-Clara-a- Velha reflectiam a imagem maternal e torturada da esposa do Rei Trovador; no palácio de Sub-Ripas ouviam-se ainda os gritos da Maria Teles… A literatura e a lenda envolviam a natureza e os monumentos

No documento José Manuel Cymbron (páginas 127-132)