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TORGA E O PATRIMÓNIO CONSTRUÍDO

No documento José Manuel Cymbron (páginas 56-62)

O Património Construído empolgou Torga tanto quanto o Património Natural. A sua primeira reacção forte perante o Património Construído dá-se quando tinha dez anos e se pasmou com as «pedras lavradas» da Sé do Porto. (Torga, 1986a: 52). Temos, contudo, que esperar pelo início dos anos 40, para encontrarmos frequentes referências ao Património Construído. Mesmo a sua viagem pela Europa (Espanha, França, Itália, Suíça e Bélgica), em finais de 37 e princípios de 38, não motivou muitos registos quanto ao Património Construído. Podemos e devemos, abrir uma excepção para um dos mais representativos poemas de Torga, dedicado à estátua de Moisés por Miguel Ângelo (ver Torga, 1999: 61), e para uma pequena nota comparando o renascimento da Certosa de Pavia com o românico: «É uma obra maravilhosa, mas a pedir a Deus que ninguém lhe ponha ao pé, funda, íntima, hierática, uma linha românica.» (Torga, 1999: 59). A época em que Torga faz esta sua primeira viagem europeia talvez explique as suas poucas referências à arte. Estava-se em plena Guerra Civil de Espanha e Torga viveu visceralmente esse acontecimento. As muitas páginas do 4º. Dia d’ A Criação do

Mundo dedicadas a esta Guerra provam o que acabamos de afirmar.

Em inícios dos anos 40, quando o médico-escritor tinha consultório em Leiria, e quando António Ferro e o S.N.I. davam passos importantes para o desenvolvimento do turismo nacional, Miguel Torga começou a viajar sistematicamente pelo país e a preparar o livro que para ele viria a ser a sua obra preferida – Portugal. Em Portugal,

Diário e Criação do Mundo encontramos sobre o Património Construído reflexões e

descrições de enorme valor.

As aldeias e as cidades:

A ruralidade de Torga e o seu fácil relacionamento com o povo levavam-no a sentir-se particularmente bem nas aldeias. Algumas aldeias de Portugal eram, de facto, para o autor de Contos da Montanha, espaços de eleição, podemos mesmo afirmar – espaços sagrados. Todas elas se encontram no norte do país. S. Martinho de Anta(s) assume um

lugar privilegiado por ser a sua terra natal e a dos seus antepassados, mas no capítulo «Um Reino Maravilho» de Portugal, no texto da conferência «Trás-os-Montes no Brasil» (Traço de União) e em notas do Diário, apercebemo-nos da importância das aldeias para o conceito que Torga tinha da sua pátria e do rosto que pretendia que Portugal mantivesse.

As aldeias comunitárias Rio de Onor, Vilarinho da Furna e Castro Laboreiro (juntamente com S. Martinho) são, para o Orfeu Rebelde, os espaços sagrados que referíamos no parágrafo anterior.

Em Setembro de 1946, depois de ter percorrido, sobre um macho, durante sete horas, um caminho para chegar a Rio de Onor, disse-nos, no Diário:

A significação desta terra parece-me mais (…) para meditar do que do que para descrever. (…). Morar alguns dias dentro de uma aldeia que não intriga, que não rouba, que tem do vizinho um conceito fraterno, e que não se embebeda porque é sábado mas por uma razão sagrada de celebração equinocial, é ficar ligado a uma dívida que não se paga nos jornais mas sim na ara da consciência. (Torga, 1999: 366)

É aqui, em Rio de Onor, em 28-9-1946, que Torga tem um dos seus mais profundos encontros com a natureza. No poema «Regresso», que termina com um lamento por não se ter esquecido «De cantar esta emoção!» (Torga, 1999: 367), o autor de Odes explora, com alguns versos de rara intensidade, o valor poético dos cinco sentidos.

Em Vilarinho da Furna escreve, a 18 de Julho de 1976, o poema «Requiem». Esta aldeia, que uma barragem cobriu de um «silêncio represado», era um «mundo sagrado/ Onde a vida era um rito demorado/ E a morte um segundo nascimento.» (Torga, 1999: 1321)

Em Julho de 1976 escreveu em Castro Laboreiro: «Foi aqui, em Vilarinho da Furna e em Rio Onor que vi pela primeira vez ao natural criaturas de Deus na sua plenitude livre e solidária. (…). Tenho como verdade de fé que o homem há-de acabar por reagir contra a massificação planetária em que vai embarcado.» (Torga, 1999: 1320). E termina esta nota com a convicção de que «estes santuários serão redescobertos, reconstruídos e dignificados.»

As cidades podem revestir-se de enorme importância para Miguel Torga. Tudo depende da dimensão, da história e dos edifícios de cada cidade.

A fortíssima componente telúrica da obra do escritor da Montanha ofusca, frequentemente, a sua paixão pelo património construído, mas ela existe e atravessa toda a sua obra, como provam muitas páginas dos livros Portugal, Criação do Mundo e

Diário. A leitura dessas páginas permite-nos afirmar que os Centros Históricos das

Cidades são, para o autor de Portugal, espaços poéticos onde o poeta se purifica, cria poesia e encontra fortíssimas raízes da identidade nacional e da sua própria identidade. Acontece, também, que o Torga urbano também é, diariamente, o Torga rural. Na sua casa de Coimbra, na rua Fernando Pessoa, tinha uma horta da qual se ocupava directamente; quando saía de casa para o consultório levava sempre consigo um ramo de açafrão para cheirar nos intervalos das consultas (Torga, 1999:1632); da janela do consultório observava frequentemente as águas «Serenas» do Mondego e «a verde perspectiva do horizonte rural, pasto bucólico da imaginação…» (Torga, 1981: 9); passeava diariamente depois do almoço, durante a semana, pelas margens do Mondego, no Parque Dr. Manuel Braga; e aos fins-de-semana, durante o período de caça, ia muitas vezes caçar, com o seu amigo e editor, padre Valentim, nos sapais do Mondego.

Quando em 1942 visitou o Algarve com o objectivo não só de o conhecer, mas também de escrever mais um capítulo do livro que sairia em 1950 (Portugal), regista no Diário:

Vila Real de Santo António, 15 de Fevereiro de 1942 – É impossível. Edificar uma cidade com carácter em cinco meses é o mesmo que fazer um ninho de andorinha num segundo. Para que uma terra tenha cunho e magia, unidade e variedade dentro do seu todo inteiro e marcado, é preciso que seja segregada pelos homens pedra a pedra, rua a rua, cornija a cornija, com a fé e a paciência com que se escreve um longo poema ou se constrói uma religião. (Torga, 1999: 157-8)

Para colocarmos nos Centros Históricos das Cidades Portuguesas o pensamento e as vivências torguianas temos que recorrer não só ao que Torga escreveu sobre eles, mas também a muitos outros textos do autor que indirectamente nos ajudam a realizar essa fascinante acção.

Miguel Torga tem um enorme fascínio pela Idade Média que construiu povoações repletas de «cunho e magia». Os castelos, as igrejas (principalmente as de estilo

românico), os pelourinhos, e os fóruns - símbolos de «vontade», «fé», «equidade» e de «concertação» - são, principalmente depois de 1974, sistematicamente inspeccionados por Torga, que encontrava nesses baluartes «linhas de resistência da nação» (Torga, 1999: 1567) ameaçada de morte por uma rápida e consciente perda da memória histórica.

Os Centros Históricos das Cidades Portuguesas possuem uma carga medieval muito forte. É, pois, Miguel Torga um guia privilegiado para nos ajudar a ver e a amar a «alma das coisas» que neles encontramos.

Importa apresentar aqui uma metodologia para uma explicação torguiana dos nossos Centros Históricos.

Impõe-se, em primeiro lugar, recordar que o neto de «almocreves e cavadores» sempre acreditou que a arte deve «ser o mais pura possível nos meios e o mais larga possível nos fins. Uma super-realidade da realidade, onde todos os homens se encontrem, quer sejam intelectuais quer não». (Torga, 1991: 13) Isto exige que uma explicação dos Centros Históricos, sem deixar de ser exigente quanto ao rigor, deve esforçar-se por ser simples e baseada na convicção de que eles (Centros Históricos) podem ser entendidos por um leque vastíssimo de pessoas, cultas e incultas.

Numa nota do Diário, comentando os painéis de Nuno Gonçalves, o escritor diz-nos que não só os «cultos» mas também os «incultos» ficam «fascinados diante» dos painéis.

Tendo em consideração que os portugueses do tempo de Nuno Gonçalves peregrinaram e, muitos, viveram em Centros Históricos das nossas cidades, propomos que se convide os visitantes dos referidos Centros a imaginarem os heróis torguianos que criaram a sociedade contemporânea de Nuno Gonçalves a trabalharem, purificarem-se, combaterem, discutirem, decidirem e sonharem nos castelos, igrejas, pelourinhos, fontanários e fóruns, espaços onde, segundo Torga, «o passado justifica o presente e incentiva o futuro.» (Torga, 1999: 1566). Os visitantes encontrar-se-iam aqui com o sonho, a coragem, o amor, a loucura, a liberdade e o espírito de descoberta que tão profundamente marcaram a vida de heróis identificados, como D. Dinis, Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Pedro, o Infante D. Henrique e Diogo Cão; e heróis anónimos (do «arado e do remo»), que Torga não hesitava em colocar ao nível dos heróis com nome

registado. O retrato duma boa parte destes heróis pode ser conhecido, duma forma empolgante, nas obras de Oliveira Martins (tão apreciado por Torga): Os Filhos de D.

João I, Nun’Álvares e História de Portugal.

Os Centros Históricos não se confinam à Idade Média, estão também a montante e a jusante dela. Torga sabia apreciar a História e a Arte de outras épocas. Em Évora inspira-se na arte romana para escrever um poema fortíssimo que nos leva às funduras da angústia e às planícies alentejanas semeadas de magníficos menires (ver Torga 1999: 1096).

Em Portalegre são épocas posteriores à Idade Média que o marcam, é a «ostentação» a «grandiloquência» e a «retórica» do «mausoléu monumental» de D. Jorge de Melo, a «toada barroca» de José Régio, os «palácios majestosos», os «brasões flamejantes», os «mármores coloridos» e os «ferros forjados». (ver Torga, 1999: 1324-5)

Os Centros Históricos, estando frequentemente situados em pontos elevados, proporcionam magníficas vistas panorâmicas e o contacto com uma luz que cativava profundamente o poeta epicurista. Numa visita a Bragança, o escritor privilegiou «a luz de palha madura em terra vermelha, com um céu muito alto e vazio» da cidade, em detrimento do domus municipalis, do castelo e do museu Abade de Baçal. (ver Torga, 1999: 394)

Uma outra forma de se utilizar Torga nos Centros Históricos consiste em, perante estátuas, dar-lhes vida, como o escritor sugere:

Mas que trágico destino ficar numa praça a apanhar vento e chuva até à consumação dos séculos! Era bom estar ali, era. Havia de ser, porém, acompanhado duma saudade verdadeira. Duma lembrança quente, perene, constante, que fosse como uma seiva a correr entre a vida e a morte. Mas qual o quê! Entre nós, uma estátua significa apenas o chumbo que se pôs no esquife. (Torga, 1999: 195)

E muitas das estátuas das nossas cidades representam personalidades sobre as quais Torga escreveu.

A toponímia das cidades europeias, que levou George Steiner a dizer que no continente europeu as cidades são «verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais, artísticos e científicos.» (Steiner, 2006: 32-33), é, também, excelente, para servir de base para a elaboração de Itinerários Torguianos.

O Orfeu Rebelde também se avalia como poeta nas cidades: numa das suas mais belas páginas sobre património urbano e literário, escrita em Elvas, pergunta: «As pessoas, os monumentos e o ar que se respira cabem em qualquer das páginas que escrevi?» (Torga, 1999: 1325)

E, em 1948, não escondia que não podia viver fora das cidades, porque fora delas «não há papel, nem tinta, nem cinema, nem livrarias, nem cafés» (Torga, 1999: 422).

Pensamos ser correcto afirmar que as cidades que mais marcaram o escritor foram Coimbra, Évora, Elvas e Sevilha. Nenhuma delas é capital e nenhuma delas é uma grande cidade. Torga diria que em cidades como estas a criatura não domina o seu criador. (Ver Torga, 1999: 63).

A dimensão das três cidades portuguesas permitia a Torga deslocar-se, com enorme facilidade, a pé. Em Coimbra era muito frequente o escritor-médico deslocar-se de casa para o consultório a pé (demoraria cerca de 30/35 minutos). Estas caminhadas solitárias permitiam-lhe, certamente, uma respiração higiénica e voluptuosa e o encontro de poemas ou de palavras que se escondiam quando estava a concluir os seus textos.

Vejamos, por agora, o que nos diz sobre Évora, sobre Sevilha e sobre uma grande metrópole, Paris:

Évora: «nenhuma cidade nossa, salvo Évora, foi capaz de me dizer com pureza e beleza que eu sou latino, que eu sou árabe, que eu sou cristão, que eu sou peninsular, que eu sou português (…).» (Torga, 1999: 157). E noutra nota do Diário, o escritor expressa da seguinte forma a sua paixão por Évora:

Enquanto os companheiros ouviam missa, purifiquei-me eu a deambular mais uma vez pelas calçadas desta cidade bem amada. Respiro sempre nelas, consolado, o ar higiénico de uma autenticidade que nunca teve pejo de enfrentar o futuro alicerçada na tradição. (…). O beco acanhado e a rua ampla, a coluna coríntia e o capitel romântico, o portal gótico e o arco mourisco, a janela manuelina e a frontaria barroca vivem na melhor harmonia. O fantasma do passado é hoje em dia o grande pesadelo português. (Torga, 1999: 1288-9).

Tenha-se em consideração o tempo histórico em que esta nota foi escrita – Novembro de 1974; e sentimos a tentação de repetir o último período: «O fantasma do passado é hoje em dia o grande pesadelo português.»

Sevilha - «Aqui, Deus passeia pelas ruas, a volúpia vem do próprio ar que se respira, a beleza tropeça connosco a cada esquina. (…) Se houve um encontro feliz de raças e de civilizações foi na Andaluzia. (…). Gente que baila, que canta e que ama com a conivência do céu. Uma espécie de vida eterna em rodagem, num paraíso experimental.» (Torga, 1999: 595).

Não é só no campo que a respiração pode ser higiénica e voluptuosa. As cidades podem, também, contribuir para a purificação de quem nelas se encontra e para elas sabe olhar. Paris - «Ponho-me a pensar nos cinco milhões de homens que formigam nestas ruas. A pensar que, embora todas estas avenidas, estas praças, estes monumentos sejam criações suas, o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o seu criador.» (Torga, 1999: 63).

No documento José Manuel Cymbron (páginas 56-62)