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LITERATURA (e MÚSICA)

No documento José Manuel Cymbron (páginas 136-153)

Abóbada majestosa da cultura, céu onde todas as cores se juntam e purificam, só a poesia poderá unir e pacificar a humanidade de hoje, estrelando de luzes de esperança a pavorosa noite que nos atormenta.

(Torga, 1999: 579)

Nota Prévia: na abordagem deste tema faremos uma interrupção em 1953 por dois motivos:

1º. (e principal) – a partir de 1953 o Orfeu Rebelde passa a viver numa moradia própria. Aqui tem uma ampla e confortável sala-biblioteca (à qual não falta lareira). Nesta sala- biblioteca, Torga, com grande intensidade e paixão, lê, reflecte, ouve música, escreve novos textos e revê e refunde textos antigos. A casa é, desde 2007 (ano do centenário do nascimento do escritor), Casa-Museu. Acreditamos que, em termos de turismo cultural, tem muito mais impacto falar-se da postura dum escritor perante a literatura no espaço por ele eleito para a escrita e leitura do que num espaço algo abstracto. (Obviamente, não podemos esquecer que o consultório era também um espaço de eleição para o culto de Orfeu, mas esse… já não existe!).

2º. O período que medeia entre o seu regresso definitivo a Coimbra (1941) e 1953 é também preenchido por uma intensa actividade clínica, e contactos com jovens, com a população anónima e com a natureza. Parece-nos, por conseguinte, que faz sentido aproveitarmos esta ocasião para falarmos dos temas: Medicina/Consultório; Juventude; População Anónima e Natureza.

Para o homem que dizia «Não. Não tenho limites./ Quero de tudo/ Tudo.» (Torga, 1999: 1390), a vida é constituída por muitos momentos e actos sagrados: o sonho (e o sono), o exercício da medicina, o convívio, a intervenção política, a comunhão com a natureza, a contemplação da arte, a caça e … a escrita.

A «Agarez alfabeta» do homem da Montanha foi palco, durante quase setenta anos, da sua paixão pela literatura.

É um facto que já em S. Martinho (graças à escola do senhor Botelho e ao contacto com os sábios de «Agarez»); no Porto (onde leu os bons livros dos filhos dos patrões); em Lamego/seminário (onde teve disciplinas que considerou muito positivas); e no Brasil (onde também leu muito graças à frequência do «Ginásio de Ribeirão») se tinha manifestado o seu encanto pela literatura, mas foi a «anarquia poética e faminta» do colégio do «Dr. Almeida» que lhe proporcionou as condições para poder dar um considerável salto qualitativo. Aqui encontrou livros de: «Bernardim Ribeiro, António Nobre, Cesário, Eça, Antero, Fialho e outros» e … a amizade do «Dr. Almeida» que lhe diz:

«- Quando quiser, estão às ordens…

E eu fechava-me no quarto a devorar versos e a olhar a paisagem.» (Torga, 1970: 39)

Esta facilidade de acesso à boa literatura e o facto de viver com «companheiros mais novos» levaram-no à descoberta duma «riqueza inédita: a solidão rodeada de livros.» (Torga 1970:41)

« I don’t think much of a man that is not wiser today than yesterday… (…)». Esta e

outras frases de grandes figuras decorava-as Torga num «fervor de prosélito». A imersão na leitura de livros de grande qualidade era acompanhada por música de «Beethoven tardes inteiras», tocada pelo «Dr. Almeida» enquanto a «D. Adélia» (mulher do Dr. Almeida) declamava Corneille e Racine (ver Torga 1970: 53-4).

A bagagem cultural conquistada e, obviamente, a sua veia poética, permitiram-lhe chegar até Edmundo de Bettencourt (o Dr. Marinho d’A Criação do Mundo). É graças

ao poeta e cantor Edmundo de Bettencourt que Torga ingressa em 1929 na presença, onde viria a publicar seis poemas (veja-se Rocha, 2000: 46), dos quais se destaca «Balada da Morgue», que o marcará para toda a vida. (Este poema foi selecionado, pelo autor, em 1987, para o disco Oitenta Poemas.) Publicou, também, segundo a mesma fonte, o texto em prosa «O caminho do meio».

José Régio, com 26 anos e já poeta respeitado (o livro Poemas de Deus e do Diabo foi publicado em 1926), funda a presença em 1927 com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Torga, seis anos mais novo do que Régio, torna-se rapidamente um incondicional presencista.

Os números da revista saíam heróicos e escandalosos. Vivíamos em desafio constante, sem transigências, sem complacências, seguros da nossa missão renovadora. (…) desafiávamos Portugal inteiro, que continuava cego na sua rotina, no seu conformismo, na sua retórica. Todas as experiências gráficas e literárias se faziam, todas as tentativas se ousavam. (Torga, 1970: 83)

E, pouco à frente, referindo-se à «geração de oiro» (Brojo, s/data e s/página) do fado de Coimbra, Torga diz:

Até nas tabernas da boémia desfraldávamos o pendão da revolta, no esforço hercúleo de abalar as raízes da Coimbra petrificada na tradição. O dr. Marinho cantava. O Roseira, também poeta, tocava guitarra. Mas no próprio fado se procurava encontrar o lado solar, a pureza expressiva, num repúdio sadio de sentimentalidades chulas e langores turísticos. Queríamos ser a autenticidade dum Portugal local, que desejávamos tornar universal. (Torga, 1970: 83-4)

Segundo os autores de Tempo(s) de Coimbra – oito décadas no canto e na guitarra:

«Um lugar muito especial» deve ser guardado para Artur Paredes e Edmundo de Bettencourt: «os acordes vigorosos de Artur Paredes e a voz cristalina de Edmundo Bettencourt (…) permanecerão como valores imperecíveis da própria música popular portuguesa.» (Brojo, s/ data e s/página).

Era certamente esta, também, a opinião de Régio que em «Balada de Coimbra» nos diz: (…)

Ai choro com que o Paredes, Vibrando os dedos em garra, Despedaçava a guitarra, Punha os bordões a estalar, Gritos de cristal e de oiro Que o Bettencourt alto erguia, Que é da roda que algum dia

Vos sabia acompanhar…? (Régio 1984: 75)

Clara Rocha refere (ver Rocha, 2000: 50) que a presença contribuiu para que Torga ficasse marcado por escritores como Dostoievsky, Proust, Gide, Ibsen e cinco brasileiros: Jorge Amado, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Ribeiro Couto e Jorge Lima. Torga falará também da importância que teve para a sua formação um outro escritor enaltecido pelo grupo da presença – James Joyce (ver nota do Diário de 11 de Julho de 1944).

No Diário, há referências directas e muito impressivas a vários destes escritores. Dostoievsky - «Quanto mais sei deste génio russo, mais me sinto ligado e agradecido à bênção literária que me deu quando pela primeira vez o li.» (Torga, 1999: 126)

Proust - Depois de ter estado muitos anos sem ler Proust, Torga verificou «que guardava tão nitidamente na memória as subtis observações do grande escritor». Por isso, afirma: «Uma obra genial é assim. A gente muda de rumo, tenta negá-la. Mas ela continua viva dentro de nós.» (Torga, 1999: 532). E seis meses antes registou algo de preocupante, mas que revela, uma vez mais, a enorme admiração que tinha pelo autor de

À Procura do Tempo Perdido: «De Proust para cá, é sempre a perder o pé na terra.

Podem eles falar em nome do telúrico e do humano. Deixá-lo! Podem escrever palavrões e descrever cenas sexuais com toda a pornografia. Deixá-lo! Os livros não têm força, nem verdade.» (Torga 1999: 507)

Sobre o escritor norueguês Ibsen, faz uma afirmação que revela implicitamente, mas com toda a clareza, o que pensava da causa da dificuldade em divulgar obras de escritores que escrevem em línguas dos países do gelo, ou de alguns países do sol (concretamente, Portugal): «Sabe-se do esforço que foi feito para fazer descer Ibsen dos seus gelos. Tudo vão. As plateias cá de baixo, pelos modos, assistiam impávidas ao esforço dos Pitoeff. Tanto, pelo menos, como génio, é preciso que a terra de onde ele brota o imponha ao consenso geral.» (Torga, 1999:139-40)

Gide - «Põe-se a gente a ler estes Gides, estes Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude.» (Torga, 1999: 38). Mas a opinião sobre Gide viria a mudar. Quando o autor de Alimentos Terrestres morreu, o autor do Diário escreveu: «as dores do mundo pouco ou nada lhe doíam. E mesmo quando protestava, a indignação não irrompia das veras da alma. Falso moedeiro da moral, não se encontra nos seus livros a autenticidade dum oiro de lei cunhado com o ferro em brasa do desespero lancinante.» (Torga 1999: 588)

Comentando a revista presença, Fernando Guimarães chama a atenção para «a diversidade de domínios culturais explorados, que iam desde a arte (…) à filosofia (…), desde o cinema (…) à música». (Pires, 1986: 245). Este facto é de particular importância para Torga, principalmente no que se refere ao cinema e à música.

No cinema, os seus deuses eram Buster Keaton e Charlot (veja-se Rocha, 2000: 50). E essa paixão ficou-lhe para toda a vida. Quando Charlie Chaplin morreu (Torga, 1999: 1354), o cinéfilo Torga escreve:

Um génio que o [«mundo»] habitava desapareceu para sempre. Só que esse génio de tal maneira se transmutou na sua criatura, que de há muito ela lhe ocupa o nicho no altar dos meus santos. (…)

O Zé-ninguém inocente e arteiro de A Quimera do Oiro, do Circo e dos Tempos Modernos (…) que não desiste mesmo quando parece abandonar a luta, que sabe encontrar sempre o largo caminho da liberdade em todos os becos sem saída, é que é meu semelhante, é que irradia calor humano, é que infunde coragem e dá esperança, é que me espevita a imaginação. E esse, (…) não morreu nem morrerá. (Torga, 1999:1354)

E num domingo de desânimo, escreve, depois de ter visto um filme de Buster Keaton: Aquela tenacidade incansável, aquela decisão de vencer todos os obstáculos sem cuidar das forças do corpo (…) deu-me ânimo para entrar pela noite dentro de caneta na mão, a provar a mim mesmo que não é a vida que em certos momentos não presta. Somos nós que não prestamos.» (Torga, 1999: 1608)

Quanto à música, veja-se o que nos diz sobre diversos compositores:

Torga visitou por duas vezes a Cartuxa de Valdemosa, em Maiorca. Aqui, na presença do piano de Chopin, lamentou que os visitantes e a «mão diligente do turismo» (Torga, 1999: 710) não estivessem à altura da «glória cada vez mais pura» do compositor. (Torga 1999: 539)

Quando morre o músico compositor espanhol Manuel de Falla (1946), o nosso poeta dedica-lhe um poema digno de integrar os Poemas Ibéricos (que não contemplam nenhum músico) e que tanto nos diz não só do músico, mas também do autor do poema:

A Manuel de Falla

Que Morreu Ontem

A vida é breve, Falla. Mas é breve

Para quem apodrece na mortalha. Não a tua!

No Concerto de Cravo Uma vida mais alta continua. Não, não há génio breve,

Como tu!

Dorme e descansa o corpo velho e gasto, Porque o teu nome é um astro

No céu da ibéria desolado e nu. (Torga, 1999: 370)

Beethoven: «Vai-se a um concerto. E muito embora a gente sinta, a ouvir os outros, que está num reino maravilhoso, permanece calmo. Mas chega a vez do grande surdo. O pianista dá a primeira martelada no teclado, e qualquer coisa de sobrenatural surge logo. (…) É uma beleza cósmica, de raios e de trovões, uma beleza dada por um Deus que viveu na terra por engano.» (Torga 1999: 101).

Haydn: «A Criação do Mundo, de Haydn. De vez em quando, Deus encontra homens à sua medida.» (Torga, 1999: 828).

Bach: Num apontamento para uma auto-biografia, Torga escreve: «Gosta de música, particularmente de Bach.» (Rocha, 2000: 99)

Canto Gregoriano: «Quase que podia jurar que os monges que ouvia, e atingiam no canto não sei que sublimidade, estavam longe de ser criaturas exemplares. Mas conseguiam arrancar de si inflexões de tal maneira lancinantes e pacificadoras, que era como se em cada modulação transformassem as trevas terrenas na claridade celeste.» (Torga, 1999: 1439-40)

Porque razão terá Torga abandonado a presença? A razão por ele apontada não nos convence totalmente.

O Orfeu Rebelde afirmava ter «uma real incapacidade de adesão a igrejas de qualquer natureza. Saí da religiosa em que fui criado e da literária em que entrei um dia, por motivos idênticos: faltava-me o ar naqueles fechados ambientes de ortodoxia.» (Torga 1999: 1047)

Torga, Branquinho da Fonseca e Edmundo de Bettencourt, em 1930 «acusam a

Presença, e em particular os seus directores, de resvalarem para um paternalismo e um

academismo em tudo contrários ao propósito inicial da revista.» (Rocha, 2000: 50). E Torga, em A Criação do Mundo - II retrata os colegas da revista com quem se incompatibilizou nos seguintes termos:

Intelectualizados da cabeça aos pés, mal tocavam a realidade. Eram platónicos no amor, teóricos no desporto, metafísicos no convívio. A convicção de serem únicos distanciava-os do vulgo, tornando-os incapazes dum contacto permanente com as forças rasteiras da natureza. (Torga, 1970: 84)

Ora, mesmo que não houvesse muito exagero nesta descrição (que se aproxima duma caricatura), tudo isto explicaria sensibilidades e conceitos diferentes, mas, parece-nos, não suficientemente fortes para justificarem uma ruptura.

Régio, no manifesto «Literatura livresca e literatura viva» (nº 9 da revista presença), pergunta: «as preocupações de ordem política, religiosa, patriótica, social, ética, - hão- de, forçosamente, ser banidas da Obra de Arte?» e responde de imediato: «De modo nenhum.». E Eugénio Lisboa, fazendo uma análise global desta questão, não duvida de que: «a presença esteve muito longe de ser a academia rigidamente monolítica que dela quiseram fazer alguns detractores primários. As ideias circulavam livremente e livremente se opunham, - até entre os seus dois principais directores…» (Lisboa, 1984: 35)

Perguntamos se a razão desta ruptura não estará essencialmente relacionada com o ascendente de Régio no grupo, e que Torga não aceitava.

Nas obras dos dois escritores, é na de Régio que encontramos mais elementos para compreendermos a relação entre os dois.

São muitos os quadros que Régio nos dá da sua relação com Torga no Jogo da Cabra

Cega (onde o jovem de «Agarez» tem o nome de Luís Afonso), e têm todos traços e

cores muito fortes e diversos. Podem, contudo, resumir-se a três ideias-chave:

1ª. Ambos se consideram (e são considerados) os grandes personagens do «Grupo». - «Evidentemente, a preponderância cabia a Luís Afonso.» (Régio, 2006: 36)

- «a necessidade de aprovação (sobretudo minha) que lhe adivinhávamos.» (Régio, 2006: 36)

- «Preferindo, embora, a sua conversa à de qualquer outro, eu receava os tête-à-tête com Luís Afonso; e quase só na presença dum terceiro (…) dialogava facilmente com ele.» (Régio, 2006: 47)

2ª. Há um braço de ferro feroz entre ambos. Eis paradigmáticos trechos:

- Luís Afonso: «Mas a megalomania cega-te, meu caro; e nem dás pelas tuas contradições! Tens uma invencível necessidade de a teus olhos te engrandeceres…» (Régio, 2006: 215)

- Régio: «Queres saber o que me não perdoas?... É a minha superioridade!» (Régio, 2006: 220)

- Luís Afonso: «Tu…, queres saber o que tu me não perdoas? É eu não reconhecer completamente essa tua superioridade!» (Régio 2006: 221).

- Régio: «Sim, - eu conhecia (ou suspeitava) o poder de infiltração e persistência com que, sem acusar directamente, Luís Afonso preparava entre os amigos terreno favorável a acusações directas. As acusações directas vinham depois.» (Régio, 2006: 288)

- Régio: «Sempre pensei que… apesar dos teus esforços…, te faltava o dom de amar!» (Régio, 2006: 306)

- Régio: «Tu!... – gritei com todo o meu desespero na voz – Tu é que os envenenaste! O teu maldito espírito de desconfiança cega-os. Tu é que os endureceste contra mim! A ti…, não te posso perdoar.» (Régio, 2006: 306)

3ª. O convívio humano reveste-se duma «dilacerante dificuldade» (Eugénio Lisboa,

in prefácio a «Jogo da Cabra Cega», p. 12)

- Régio (a vários companheiros): «Vocês não me compreendem… nem eu a Vocês… E tudo o que nós sabemos uns dos outros… dos defeitos e virtudes uns dos outros… pouco vale…» (Régio, 2006: 301).

Se saltarmos para as décadas de cinquenta e sessenta encontraremos novamente, por parte de Régio, referências bem concretas a Torga. Elas surgem em Páginas do Diário

do Diário Íntimo, não diminuiu (terá mesmo aumentado) a admiração que Régio tinha

pelas capacidades literárias do seu colega e mitigou drasticamente as avassaladoras críticas.

Nas sete entradas em que fala de Torga há apenas uma crítica. Trata-se da entrada de 18-11-1958 que nos diz: «Foram gravados três discos (os primeiros que em Portugal se fazem de dicção de poemas pelos próprios autores): um do Torga, um do Serpa, um meu. O Torga exigiu que o seu nome fosse o primeiro a vir anunciado. Sempre o mesmo!» (Régio, 2000: 333)

Nesta mesma década, há mais três referências importantes a Torga, que revelam que o autor de A Salvação do Mundo, apesar de se considerar o principal continuador de Gil Vicente e de Garrett, admira o autor de Terra Firme.

Mas a maior prova de apreço de Régio pelo autor de A Criação do Mundo surge em inícios da década de sessenta, quando se discutiu a possibilidade do Prémio Nobel da literatura ser atribuído a um português. Embora Régio se considerasse mais merecedor do tão ambicionado galardão, não deixava de considerar que Torga também podia ser um digno candidato. (Vejam-se as entradas de Páginas do Diário Íntimo, pp. 344, 345 e 346).

«Mal abandonara a Vanguarda, leia-se Presença, fundara uma revista independente,

Facho, leia-se Sinal, que morreu ao nascer (só saiu um número e somente com artigos

dele e de Branquinho da Fonseca). «As boas intenções de fazer dela um farol de nova luz, não bastaram. Sobrestimara as próprias forças. (…) Com o tempo, porém, fui aprendendo (…)» (Torga, 1970: 159-60)

Em 1936 funda «a revista Manifesto, com Albano Nogueira. Contando com a colaboração de António Madeira [Branquinho da Fonseca], Vitorino Nemésio, Álvaro Salema, Carlos Sinde (nome literário de Martins Carvalho), Afonso Duarte, Paulo Quintela, Sílvio Lima, Bento de Jesus Caraça, Joaquim Namorado e Fernando Lopes Graça (…)» (Rocha, 2000: 61).

Saíram cinco números, entre Janeiro de 1936 e Julho de 1938. É este um dos períodos mais intensos da vida de Torga: entre Vila Nova de Miranda do Corvo e Coimbra, exerce medicina; especializa-se em otorrinolaringologia; começa a escrever Alguns

poemas Ibéricos; publica A Criação do Mundo – Os Dois Primeiros Dias e A Criação

do Mundo – O Terceiro Dia; colabora na Revista Portugal, fundada em 1937 e dirigida

por Vitorino Nemésio onde publica, em sete dos dez números, poemas, contos e páginas

d’A Criação do Mundo e do Diário (Pires, 1986: 263) e, entre Dezembro de 37 e

Janeiro de 38 faz uma grande viagem por Espanha, França, Itália, Suíça e Bélgica. De entre muitos ilustres colaboradores da revista Manifesto interessa, numa perspectiva de Turismo cultural, realçar o nome de Lopes Graça. Ele viria, em 1942-43, a musicar os poemas que compõem a «História Trágico-Marítima» de Alguns Poemas Ibéricos, trabalho revisto em 1960. Esta composição está disponível para ser utilizada em animação cultural ou como complemento da utilização dos poemas durante visitas a patrimónios relacionados com a época dos Descobrimentos.

Pensamos ser importante analisarmos aqui o artigo de Lopes Graça («A Música e o Homem», do 1º número de Manifesto - Janeiro de 1936), pois revela profundas afinidades entre o musicólogo e o Orfeu Rebelde no que respeita às sensibilidades artística e social.

Para o autor do artigo «A Música e o Homem», a «verdadeira Arte é uma pregação; o verdadeiro artista, um pregador. Há os que pregam apenas a Beleza. Mas há os que pregam a Beleza e mais alguma coisa (…); e não são os menores.» O «mais alguma coisa» é, para o musicólogo (e músico), a capacidade de cada artista de pregar aos homens da sua geração o que é necessário pregar para que ele se salve. E dá dois exemplos tão gratos a Torga: Bach com a «Paixão segundo S. Mateus» («o monumento incomparável do lirismo pietista» e Beethoven com a «9ª Sinfonia» («o hino sublime da Liberdade e da Fraternidade humanas»).

Lopes Graça considerava que a salvação da humanidade é muito mais «divina» se corresponder à «realização na terra do Reino dos Céus» do que a «uma plenitude celestial com todas as características terrenas». Torga, ao longo de toda a sua obra, subscreve, repetidas vezes, esta ideia.

Em 11 de Julho de 1944, Torga escreve no Diário uma nota fundamental para compreendermos as suas opções literárias. Embora sem negar a genialidade dos «Prousts», dos «Joyces» e dos «Gides», renega grande parte das mensagens que recebeu desses mestres dos jovens presencistas. O autor de Libertação vê nos «Prousts» e nos «Joyces» a definição de arte como sendo «um descampado lúdico e pessoal de quermesse» e uma «visão (…) privativa da beleza». Quanto aos «Gides», estes tinham- lhe ensinado «que os homens se dividiam em artistas e não artistas, e que os dois grupos não se podiam encontrar na vida. Nem o facto de eu ter certas ideias políticas me valeu. A lição era peremptória: tanto quanto possível, o homem e o artista deviam viver dentro de mim em compartimentos estanques.».

Torga considera que por ter recebido essas lições «Ia cantando as minhas dores e as minhas alegrias, sobretudo as primeiras, às vezes a pensar nas dos outros, mas sem fazer finca pé nessa solidariedade.» E aponta como exemplos dessa face da sua obra Rampa e

O Outro Livro de Job. «Espontaneamente, todo eu fui chamado para o campo da

comunhão humana, para o terreno chão onde se encontram todos os que sabem que viver é sobretudo amar e ser amado. Mas o cântico de fraternidade cobriu-se de lágrimas e manchou-se de nódoas de sarcasmo. Escrevi uma Lamentação, quando eu queria escrever uma libertação.» Mas o poeta que tinha «uma sede contínua de amor universal» recomeça o seu trabalho de Sísifo e afirma: «Basta de agonias e de masturbações! O mundo luta pela sua redenção, que está perto. Cantem os poetas esta nova manhã!» (Torga, 1999: 294-5).

Pensamos poder afirmar que Torga considerava que os imediatos contributos que deu para «esta nova manhã» foram:

No documento José Manuel Cymbron (páginas 136-153)