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NATUREZA

No documento José Manuel Cymbron (páginas 80-87)

Açor, Serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 - (…) As dobras e as cores do chão onde

firmo os pés foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. (…)

Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.

(Torga, 1999: 184)

Toda a paisagem é, para Torga, um espaço sagrado, muito em especial a sua Montanha, com as suas fragas [que «parecem ter vontade» (Torga, 1999: 1198)] e enquadrada pelo Marão [«Sempre que venho por aí acima, começo a avistar o Marão e o Doiro, e me ponho a pensar na morte, o que mais me entristece é não poder deixar em testamento os olhos à filha.» (Torga, 1999: 1159)] e pelo Douro vinhateiro:

O Doiro sublimado. (…) Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. (…) Um poema geológico. A beleza absoluta. (Torga, 1999: 1332)

É por isto que a sua relação com a natureza é indissociável da sua relação com a religião, sendo essa relação uma das principais componentes da religiosidade torguiana. A fortíssima ligação de Torga com a natureza vem da infância, mas até aos anos sessenta há um crescendo, com avanços e recuos. A primeira citação em epígrafe é de 1942. Mas em 1954 o autor de Odes considera que ainda não podia comparar-se com Colette. No Gerês, no dia 11 de Setembro desse ano, escreveu:

«(…) não merecemos a graça de comungar à mesa onde Colette recebia o corpo eucarístico da natureza. Ela, sim, podia exprimir o cataclismo de cada fecundação e decompor o arco-íris de cada primavera. Através do sacramento do amor e da entrega, real e substancialmente, os seres e as coisas passavam a fazer parte da sua humanidade profunda e falavam depois pela sua boca.». (Torga, 1999: 772)

E em 26-12-1962, em S. Martinho, regista no seu Diário:

E sempre que, à custa de esforço e porfia, consigo, como há pouco na serra, unir, digamos, o meu corpo e o meu sangue ao corpo e ao sangue da natureza, a perfeita

comunhão que se realiza e a estranha metamorfose que daí resulta exigem o nome sagrado de transfiguração. (Torga, 1999: 1019)

Não avancemos sem recordar sucintamente o que no capítulo «Miguel Torga e o Turismo Cultural» dissemos sobre a teoria torguiana da «geografia psicológica»: «Se o meio penetra o homem, é depois o homem que o incarna, o polariza, e testemunha o espírito e a essência do que nele é fundamental e vivo» (Torga, 1999: 227). Sendo assim, o Orfeu Rebelde acreditava que incarnava, polarizava e testemunhava o «espírito e a essência» (Torga, 1999: 227) de uma região sagrada e de uma beleza ímpar, isto é, a

Montanha e o vale do Douro.

Para Torga, em S. Martinho, tudo, na natureza, «chama por nós» (1977a: 77), e conduz- nos a espaços, sensações, sentimentos e pensamentos sagrados. Vejamos, concretamente, quem chama e em que consiste esse chamamento:

- o ar («Ar livre, sem restrições!») (Torga, 1974b: 16)

- a luz («Estoirava, se impedisse por mais tempo a saída dum hino de saudação à luz que vinha rompendo!») [(Torga, 1995b: 69), conto «Tenório»]

- o sol («Sol do corpo e da alma,/ (…)/ Sol da perfeita calma,») (Torga, 1977a: 33); «Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz do triunfo.». [(Torga, 1995b: 87), conto «Cega-Rega»]

- a terra («minha aliada/Na criação!») (Torga, 1977a: 17); («o dom de fecundar e de parir») (Torga, 1995b: 66)

- a água(…) («… o ribeiro canta!/ Canta porque um alegre deus o acompanha!»)

(Torga, 1977a: 45)

- o fogo («Chama da inspiração, que me devoras,/ Alarga o teu abraço ao mundo

inteiro!») (Torga, 1977a: 73)

- a neve («Contemplado do alto da Mantelinha, o mundo parece tudo menos um vale de lágrimas. Em Janeiro, então, quem não é cego da alma e, de lá, vê tudo em redor coberto de neve pura (…) acaba por acreditar que a terra foi gerada só para ser possível uma brancura assim.») (Torga, 1987: 71)

- as vides («(…) na vindima/ De cada sonho/ Fica a cepa a sonhar outra aventura…») (Torga, 1974b: 81); («Meu Pai a erguer uma videira/ Como uma mãe que faz a trança à filha.») (Torga, 1999: 48)

- o pão e o vinho na religião católica («A imanência e a transcendência tão medularmente conjugadas, que a realidade tangível se paradigmatiza no prodigioso mistério da encarnação e no escândalo bárbaro e sublime de um Deus consubstanciado a quem antropofagicamente o devoto devora a carne e bebe o sangue.») (Torga, 1999: 1274)

- O(s) melro(s) («A força virgem daquele riso chamou a vida à consciência dos seus direitos»). (Torga, 1995b: 106)

- os montes [«Foi ali [monte de S. Domingos] que num remoto dia de mocidade me senti consciente do meu destino de artista, bafejado por não sei que estimulante vento do espírito. Ali ia retemperar a lira quando a sentia bamba.» (Torga, 1999: 852)]; «Trazemos a alma cheia de monte!», disse Torga, no fim de uma caçada com o padre Avelino. (Monteiro, 2003: 109)

- as flores («E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. (…) O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o futuro.») (Torga, 1999: 1328)

as fragas («Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva.») (Torga, 1999: 1145)

- as árvores («(…) carvalhos, e velhos castanheiros,/ A cuja sombra um dormitar celeste/ Pode tornar os sonhos verdadeiros»), (Torga, 1978: 87); («Na terra onde nasci há um só poeta./ Os meus versos são folhas dos seus ramos. […]/ Esse poeta és tu, mestre da inquietação/ Serena!») (Torga, 1999: 743, «A um negrilho»)

- o olfacto («Vem ao nariz o cheiro dos valeiros;» (Torga, 1977a: 76) «De repente, um cheiro forte, penetrante e doce, inundou-lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira grande hora da sua vida… Depois disso é que os montes começaram a dizer- lhe coisas que até ali nem de longe poderia suspeitar.» (Torga, 1995b: 18); «O cheiro forte do mosto que fervia na adega, adocicado, entrava pelo corpo dentro e punha-o a sonhar volúpias.» (Torga, 1995b: 71)

- o paladar («e um palio de fumeiro cobre a lareira») (Torga, 1986a: 33-4).

- o tacto – ver citação em fragas e a que agora se cita, do conto « O Caçador»: «Entre o sangue da perdiz morta – que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele – e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele.» (Torga, 1991a: 58)

Tudo isto nos chama, de facto, para espaços, sentimentos e pensamentos (também maravilhosos e sagrados), relacionados com o mais profundo da seiva torguiana e cria, no escritor (e em nós), uma inquebrantável vontade de «dar um abraço ao mundo inteiro» (Torga, 1977a: 73) e de «florir o futuro.» (Torga, 1999: 1328).

Referir-nos-emos mais vezes, ao longo deste trabalho, à seiva torguiana que acabámos de citar. Consideramos que ela é um dos principais tesouros que o autor de Odes nos legou, mas que nós, cada vez mais urbanos, vamos, inconscientemente, negligenciando.

Caça

Não consegui ainda explicar a causa deste sentimento de segurança que se apodera de mim quando me embrenho pelas serras à caça. É uma paz de preservação, de anonimato, de intangibilidade. (Torga, 1999: 498)

Depois da escrita e da medicina, a caça era a actividade que mais prendia Miguel Torga. O Diário regista muitos momentos cinegéticos, com particular destaque em S. Martinho, vale do Mondego (entre Coimbra e Montemor-o-Novo) e no Alentejo (essencialmente no Torrão – concelho de Alcácer do Sal – e em Monforte do Alentejo). Parece-nos que a caça era para o escritor a forma mais completa de se encontrar com a sua total identidade. Em 1990 escreve no Diário: «Pertenci sempre aos três reinos da natureza. Metade animal, e vegetal e mineral em partes iguais no resto. (Torga, 1999:1680).

Importa, no início da abordagem do tema Caça, chamar a atenção para o facto de que o poeta-caçador rejeitava as batidas: «A minha primeira batida. Um tipo de caçada onde a

solidão desaparece, o instinto é importuno, os tiros a estralejar perdem a insólita violência de murros no silêncio, e as perdizes vêm ao encontro da arma como trazidas em braços para um sacrifício.» (Torga, 1999: 654).

A descrição que Torga faz do caçador (Tafona) do conto «O Caçador» ajuda-nos a compreender a postura do poeta perante a caça e, em grande parte, perante a vida. O caçador-poeta prime o gatilho «Mais amorosamente do que mortalmente», pois sentia que «A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele»: «Entre o sangue da perdiz morta – que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele – e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia.» (citações de Torga, 1991a: 58).

O caçador tinha uma «diluição contínua (…) Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o panasco de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto.» (Torga, 1991a: 55). Já Torga dizia ser capaz de identificar pelo tacto o solo de qualquer parte do território português (ver nota do Diário de 25-10-1958).

«E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e alegria, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que não conseguia ver.» (Torga, 1991a:56). Mas Torga conseguia, e esta é uma importantíssima diferença entre o «Tafona», sábio da cultura popular, e Torga, sábio da cultura erudita (mas também da cultura popular) e que sabia que tinha como missão ajudar a transformar o mundo. Na página seguinte do conto que temos vindo a citar, surge um novo retrato de Tafona:

Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes. A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. (Torga, 1991a: 57).

Torga, pela razão que já apontámos, não era contra vontade, embora fosse com muita dor, que olhava «o mundo triste dos outros».

A Ode «A Diana» (Torga, 1977a: 75-8) também fornece elementos fundamentais para continuarmos a traçar o quadro do namorado da deusa, a qual lhe surge «de seio ao vento» e o convida «ao movimento» e a responder aos chamamentos do «ar», da «luz»,

das «fontes», dos «penedos», dos «matizes do outono», do «cheiro dos valeiros», das «Ribas e abismos que nunca tiveram/ O desenho tirânico de um pé». Tudo isto promete «segredos/ E sensações…» e propicia sentimentos de esquecimento, de libertação dos instintos, de comunhão com outras pessoas, assim como a esperança de «encontrar quando nada se procura.» (Torga, 1999: 1729).

Com frequência, Torga, cansado do mundo da cultura, sentia «uma necessidade inadiável de esquecer, um desejo íntimo e urgente de viver umas horas entregue à inconsciência dos instintos.» (Torga, 1999: 564) E então, diria mais tarde: «Em vez de puxar à caneta, puxo ao gatilho. O instinto está farto de versos.» (Torga, 1999: 1050)8 Quando Torga afirma «O instinto está farto de versos», não está a falar totalmente verdade. De facto, quando o poeta-caçador puxa ao gatilho também procura caçar - para além de lebres, perdizes, galinholas e narcejas - versos. Tenha-se em consideração o que se passou com a criação do poema «S. Leonardo de Galafura», que passamos a descrever: um dos locais que o poeta mais venerava no vale do rio Douro era S. Leonardo de Galafura. Durante 30 anos tentou fazer um poema dedicado a este local, mas nada lhe saía. Um dia, encontrando-se à caça, com o padre Avelino, em Ordonho (local com uma espantosa vista sobre S. Leonardo de Galafura), falhou um tiro a uma perdiz que passava muito perto. O companheiro de caça perguntou-lhe com ar algo provocatório: «Então?» Torga respondeu-lhe: «Estava-se-me a desenrolar um poema.» O diálogo que acabamos de citar foi-nos narrado pelo companheiro de caça de Torga, o Padre Avelino.

Também não está a ser totalmente sincero quando em «Vindima» (p. 78) diz: «Relacionar factos e ter ideias em tal momento seria trair os sentidos.», pois, para ele, viver «É encontrar quando nada se procura.» (Torga, 1999: 1729)

Mas, para Torga, caçar, quando estava acompanhado por um amigo, era também um momento de profunda comunhão humana: «a caça aproxima as almas», (Monteiro, 2003: 101) disse Torga ao seu companheiro de caça (padre Avelino) .

E esta aproximação podia chegar ao ponto de destruir ódios:

8 Eugénio Lisboa acertou na muche quando escreveu: «A entrega ao jogo, a Eros, ao instinto são, em

O conto «A Caçada» (de Novos Contos da Montanha) é um paradigmático exemplo do que acabamos de afirmar: «na feira da Vila», o Felismino fez frente ao Marta, e este, sedento de vingança, convidou, algum tempo depois, o Felismino para uma caçada, certamente na esperança de encontrar uma oportunidade para alvejá-lo com um tiro mortal e sem testemunhas. Mas depois de muitas horas em contacto com «O ar, a luz, as fontes e os penedos…» (Torga, 1977a: 77) e na companhia da deusa Diana, o Marta bateu nas costas do seu companheiro e com uma voz «quente como uma baforada de vento suão» disse: «- E ouça: o que lá vai, lá vai…» (Torga, 1991a: 223)

E quando caçava sabia que podia partilhar o fruto da sua caça com outros poetas: (…)

E sempre em sua casa me regalou com seu Porto e seu tinto Barca Velha às vezes galinholas e narcejas.

“Fui caçá-las para ti” - dizia. (Manuel Alegre, in Arnaut, 1996: 101)

Há, em Torga, uma enorme capacidade de encontrar frequentemente segredos, que podem, num contexto cinegético, ir de uma plenitude dos sentidos a descobertas arqueológicas (ver Torga, 1999: 1226) ou a novos poemas: «Mas caça para além das lebres e das perdizes. Montes e montes devorados a passos largos e sôfregos. Um suicídio ao contrário: em vida. A empurrar-me, esta dor nos olhos e esta dor no mundo.» (Torga, 1999: 121)

Enfim, acreditamos ser correcto afirmar que os seus versos estão plenos de instinto, e os seus instintos plenos de poesia.

No documento José Manuel Cymbron (páginas 80-87)