• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE

No documento José Manuel Cymbron (páginas 132-136)

maravilhosa promessa

(Torga, 1989: 43)

amor traído

(Torga, 1981: 60)

É este homem, que quer a plenitude, que se depara com uma cidade universitária, que embora lhe possa dar bastante, fica muito aquém das suas expectativas.

A leitura da obra de António Nobre dá-lhe a primeira imagem negativa da Universidade. Em «Carta a Manuel» o autor de Só pinta com cores funestas a cidade dos lentes:

(…)

Hoje, mais nada tenho que esta Vida claustral, bacharelática, funesta,

Numa cidade assim, cheirando essa indecente, Por toda a parte, desde a Alta à Baixa, a lente!

(…)

Ah quanto fora bem melhor a formatura, Na Escola Livre da Natureza, Mãe pura! (…) (Nobre, 1974: 60)

Em A Porta de Minerva, Branquinho da Fonseca (um ano mais velho do que Torga) dá de Coimbra, com enorme ironia, uma visão com muitas afinidades com a que Torga viria a ter.

Segundo Branquinho da Fonseca (um dos três dirigentes da presença quando esta «Folha de arte e crítica» foi fundada em 1927), entrar num curso universitário, pela Porta Férrea, e principalmente sair, depois da licenciatura concluída, era o sonho do país inteiro, pois tinha-se passado «a porta estreita dos Evangelhos». (Fonseca, 2000: 204), «símbolo: da dureza da luta que a vida exige, da humilhação, do triunfo, da necessidade de hierarquia, da coragem» (Fonseca, 2000: 204). A partir desse momento e graças à «Bíblia da Humanidade» («a sebenta», que repetia «de uns anos para os outros» os mesmos textos) é-se doutor e está-se convencido «de que isso é alguma coisa…». (Fonseca, 2000 :445). «Lá na terra, tocam-lhes à chegada e a Pátria tem mais um grande homem!...» (Fonseca, 2000: 445).

E Branquinho da Fonseca recorre a um dos maiores mestres da literatura universal – Tolstoi - para anatematizar as Universidades:

(…) Lá dizia o grande Tolstoi que as Universidades não davam os homens de que a humanidade precisava, mas os homens de que necessita a sociedade pervertida: funcionários, professores funcionários, literatos funcionários, ou homens arrancados ao seu meio, sem finalidade nenhuma, com a mocidade estragada e que não encontram o lugar na vida… (Fonseca, 2000: 445)

Branquinho da Fonseca dá-nos ainda, em poucas linhas, uma imagem muito viva das transformações operadas na cidade de Coimbra no período entre a geração do seu pai e a dele. No relato de uma conversa com o pai, este diz-lhe: «O meio era melhor, puramente académico, sem chaminés de fábricas…» (Fonseca, 2000: 234); e referindo- se a uma conversa, dele e de colegas, com o governador civil de Coimbra, regista as seguintes palavras ácidas do político:

Os senhores julgam que Coimbra lhes pertence com direito de vida e de morte. E enganam-se! Julgam que mandam, e não mandam! Julgam que fazem cá falta, e não fazem! Foi tempo! Coimbra já não é a cidade dos estudantes; é um centro comercial e industrial. Os senhores são um pormenor. (Fonseca, 2000: 272)

Torga, que viveu muitíssimo mais tempo do que Branquinho da Fonseca em Coimbra, tem mais oportunidades para analisar a universidade que durante séculos teve o monopólio do ensino superior em Portugal. A análise, infelizmente, não poderia ser mais negra. E o primeiro motivo por que fazemos esta afirmação é porque as críticas que são apresentadas em relação aos anos vinte e trinta se repetem na década de oitenta: «Horas mortais na Sala dos Capelos, (…) a sentir ao vivo a tristeza que é a gente confirmar na velhice os desiludidos juízos que fez na mocidade. Tantos anos de inquietação e de esperança volvidos, e nada mudou» (Torga, 1999: 1543).

Mas o que, na perspectiva torguiana, deve ser uma Universidade?

O jovem e o sénior Torga consideravam que uma Universidade deveria ser uma instituição de ensino capaz de dar aos estudantes «um projecto válido de vida futura». (Torga 1989: 32). E este projecto passa, essencialmente, por:

- dar: «tratados» em vez de «sebentas»; «lições» em vez de «orações solenes»; «humanidade» em vez de « mundanidade» (Torga, 1989: 35-36);

- ensinar «a mocidade a lavar-se do surro das berças e a tornar-se, orgulhosamente nacional, cidadã do mundo». (Torga, 1989: 32).

- produzir «um invento, uma ideia, uma teoria (…).» E, logo a seguir a esta afirmação, Torga acrescenta que os intelectuais que passaram pela Universidade e que produziram obras inovadoras, fizeram-nas porque «Não tendo capacidade formativa, a Universidade desperta, por isso mesmo, uma permanente necessidade de reacção.» (Torga, 1986a: 88-89)

- ter um corpo docente que não habite «Um claustro fechado de ungidos, inacessíveis como uma casta sagrada dentro de uma religião.» (Torga, 1989: 32)

Depois de reflectir sobre as razões do fracasso da Universidade portuguesa, Torga aponta duas causas:

- «Conservadora e reaccionária, nenhuma reforma a reformava. Mantinha-se de pé à custa do próprio imobilismo.» (Torga, 1981: 60). «A brevidade com que cada geração a frequentava iludia a realidade», isto é, o «imobilismo». «À constante rendição discente não correspondia qualquer renovo nas ideias e nos métodos docentes.» (Torga 1981: 60) - Não dialogava, porque foi durante séculos a única Universidade do país: «Esta Universidade única desgraçou-nos. Se fosse obrigada a dialogar, a argumentar, a defender-se, teria de ser subtil, ágil e audaz.» (Torga, 1999: 699-700). A «acrópole que (…) coroava» (Torga 1981: 61) a cidade de Coimbra, dominava não só a cidade toda, mas também «o país rasteiro». (Torga, 1999: 700). «(…) o país, rasteiro, em baixo, foi repetindo o cantochão. E de tal modo se acostumou à sebenta, à mnemónica, ao ritmo do chouto coimbrão, que, apesar dos esforços de Lisboa e do Porto, o humanismo português continua a ter uma andadura de cortejo doutoral, oco, barroco e charameleiro. (Torga, 1999: 700)

É nesta universidade que Adolfo Rocha se matricula em 1928, contava vinte e um anos, em Medicina.

Sem qualidades pedagógicas, canhestro em línguas, inimigo de códigos e sentenças, e, sobretudo, cioso de liberdade, só na arte de Hipócrates poderia encontrar ao mesmo tempo uma profissão e um caminho humano paralelo ao que, sem diplomas de nenhuma espécie, tencionava seguir. Serviria dois amos, dando a ambos o mesmo devotamento e a mesma fidelidade. Dos honrados serviços prestados a um, tiraria o pão da boca; do inquebrantável esforço dado ao outro, nada receberia. Era uma pura imolação. (Torga, 1970: 71-72)

E, logo durante o curso, a «arte de Hipócrates» vai ter um papel da maior importância na arte do jovem Orfeu. Há dois momentos particularmente marcantes e com características diametralmente opostas: a dissecação de um cadáver e a assistência de um parto – as duas fronteiras que balizam «as dimensões da profissão que ia abraçar.» (Torga, 1970: 93-4).

A dissecação do cadáver levou-o a escrever «Balada da Morgue» (in Rampa), poema sobre o qual viria a dizer que foi a assinatura do seu «pacto com Orfeu». E Torga explica-nos logo a seguir a esta afirmação porque considera este poema um pacto com Orfeu: ele (o poema) é o «paroxismo dum grito» que contém «Toda a miséria humana e toda a angústia da vida.» (Torga, 1970: 73); e como no «alto céu (…) mora/ Um Deus que na mesma hora/ Nos criou e nos perdeu.» é preciso procurar apoio no deus Orfeu. Segundo a cronologia d’A Criação do Mundo foi posteriormente à experiência da

dissecação de um cadáver que Adolfo Rocha assistiu «assombrado (…) a um parto» (Torga, 1970: 93). Esta vivência, tão profunda, leva o poeta a escrever: «a visão do curso mudara dentro de mim. À fria mesa da morgue, opunha-se o quente berço da maternidade. Agora sim, encontrara a segunda fronteira que balizava as dimensões da profissão que ia abraçar.» (Torga 1970: 94).

E em 8 de Dezembro de 1933 o estudante de Medicina termina o curso e sente-se «varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai.» (Torga 1999: 33)

No sub-capítulo sobre Medicina, tentaremos descobrir «donde vem» e «para onde vai» esse «terror fundo» (que o poema «Balada da Morgue» explica em grande parte).

No documento José Manuel Cymbron (páginas 132-136)