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JUVENTUDE

No documento José Manuel Cymbron (páginas 153-160)

Acredito na felicidade futura da humanidade

(Torga, 1999: 501)

Cada época tem a sua linguagem, e cada geração o seu dialecto. (Torga, 1999: 1111)

Antes de abordarmos directamente o tema Juventude, chamemos a atenção para a enorme importância que tinha para Torga o Futuro. Tenha-se particularmente em atenção não somente a primeira citação em epígrafe, mas ainda os poemas «Promissão» [«O futuro é o meu reino, e eu caminho!» (Torga, 1999: 320)]; «Cântico Fraterno» de

Nihil Sibi [«O passado é o passado – já morreu./ Grande é o futuro, por nascer.» (p.

63)]; «Hossana» de «Cântico do Homem» [«Junquem de flores o chão do velho mundo:/ Vem o futuro aí! (…) Ninguém o viu ainda, mas é belo./ É o futuro…» (82)] ; e a entrada do Diário de 25-12-1976:

A velha escola do senhor Botelho finalmente reconstruída e actualizada. (…) Mas faltavam no terreiro à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de outrora. Deixá- lo. O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o futuro. (p. 1328)]

Quase tão importante quanto a infância (que já analisámos, em parte, quando abordámos o Natal, no capítulo sobre S. Martinho de Anta, e à qual voltaremos quando falarmos da casa do escritor em Coimbra) é, para o autor de Cântico do Homem, a juventude: «bebo- lhes as palavras, espreito-lhes os gestos, acompanho-os em todas as suas aventuras, solidário com a verdade que não sabem cantar nem descrever mas que está espelhada na sua mocidade», escreve no Diário em 14-10-1945, tinha, então somente mais quinze ou dezasseis anos do que a nova geração (da qual faziam parte Eugénio de Andrade e

Eduardo Lourenço). Somos levados a perguntar se não terá sido o facto de Coimbra ser «uma cidade de jovens» uma das principais razões que levaram Torga a optar por viver na «Agarez alfabeta». A «verdade (…) que está espelhada na sua mocidade» era fundamental para Torga se manter sempre próximo da verdade que, nunca mudando de essência, está ininterruptamente em transformação, com uma linguagem nova para cada época e um dialecto novo para cada geração (ver segunda citação em epígrafe).

Dois anos antes o diarista, que contava apenas trinta e seis anos, deixa-nos uma extensa nota, de invulgar maturidade e lucidez, sobre o conflito de gerações (a que ele chamava «guerra de gerações»). Essa nota é motivada pela leitura de um texto de Gilberto Freire, que classifica a geração de escritores que lhe sucedem como «uma espécie de sexta coluna sinistra!» (Torga, 1999: 215)

Parece não ter remédio o complicado problema da guerra de gerações. (…). Embora a imagem seja um bocado crua, depois de uma meditação serena sobre certas injustiças, é- se levado a pensar que há na base dessa feroz hostilidade aos velhos qualquer coisa de semelhante ao que acontece com aqueles bichos que, apenas fecundados pelo companheiro, se apressam a matá-lo e a devorá-lo. É como se cada geração, mal acabasse de sorver da anterior todo o sumo vital, indignada por não encontrar lá mais com que nutrir a insaciedade, passasse a odiar o favo que chupou, onde agora somente vê cera morta.

Por outro lado, é um fenómeno quase miraculoso encontrar no passado duma literatura um autor idoso com autêntica compreensão pela seiva naturalmente um pouco irresponsável de qualquer principiante. (…)

Temos de considerar também os valores que cada época traz, e de que o artista é, por condição, porta-bandeira. (…) A ubiquidade, porém, pertence a Deus Nosso Senhor. É quase uma impossibilidade orgânica, quando se lutou trinta ou quarenta anos por uma verdade, aceitar de mão beijada que alguém venha dizer-nos que a verdade verdadeira é a novíssima, a que esse alguém traz no bolso. (…)

A sofreguidão é tanto da fisiologia senil, como da infantil… (Torga, 1999: 215-8).

Certamente por ter reflectido muito sobre este tema e porque acreditava «na felicidade futura da humanidade» escreveu em «Libertação» (livro de 1944, portanto muito próximo da data da nota do Diário que comentámos) um poema cuja citação na íntegra se justifica:

RENDIÇÃO

Render-me neste sonho de beleza! Vem olhar doutro modo a natureza E cantá-la também!

Ergue o teu coração como ninguém; Fala doutro luar, doutra pureza; Tens outra humanidade, outra certeza: Leva a chama da vida mais além! Até onde podia, caminhei. Vi a lama da terra que pisei, E cobri-a de versos e de espanto. Mas, se o facho é maior na tua mão, Vem camarada irmão,

Erguer sobre os meus versos o teu canto. (Torga, 1978: 74)

E no mesmo livro (Libertação) o poema «Provérbio» reforça e completa «Rendição»: O que vier com alma nova, fique.

Deite a raiz,

Cresça, floresça, frutifique,

E morra se outra seiva o contradiz. (Torga, 1978: 82)

O poeta, que quase não dormia, dedicava à juventude uma boa parte do seu tempo. Era uma dedicação quase diária: «Os governantes, os professores e os pais da pobre mocidade portuguesa actual deviam ouvir, escondidos atrás da porta, pelo menos uma destas lamentações que são nos meus ouvidos o pão de cada dia. (…)» (Torga, 1999: 881). A política e a educação do Estado-Novo levam a que Portugal tenha «uma juventude que só da sujeição, da lisonja e da conivência pode esperar liberdade, estímulo e carinho.» (Torga, 1999: 881)

Podemos, pois, afirmar que o Orfeu Rebelde está sempre com a juventude contra o poder detido irracionalmente por governantes, professores e pais.

Mas vejamos outros exemplos de notas do Diário que não nos deixam quaisquer dúvidas quanto aos frequentes e empenhados contactos com os jovens:

- «Até altas horas a dialogar com jovens dum grupo experimental de teatro.» (Torga, 1999: 968)

- «Mais algumas horas a atender a juventude, em cujas mãos vou depondo dia-a-dia e de boa-fé a imagem do que serei no futuro.» (Torga, 1999: 1017)

- «Mais um jovem. Entrou a tremer, recitou alguns poemas a gaguejar, e acabou por sair calmo, senhor de si, com a bola do mundo na mão.» (Torga, 1999: 1021)

Em 1960 houve em Portugal uma acesa polémica em torno da possibilidade da atribuição do Nobel da literarura a um português. Surgiram três nomes muito fortes: Aquilino Ribeiro, Régio e Torga, tendo Torga sido vítima de críticas muito duras (particularmente as de Montezuma de Carvalho). Mas o autor de Bichos pôde contar com o apoio dos estudantes da Universidade de Coimbra. É sobre esse evento que o autor do Diário escreve:

Já em Março de 1960, quando um grande e lamentável alarido literário, de que fui vítima, se levantou no país, me confortou um testemunho igual de calorosa simpatia dos estudantes de então, arquivado num suplemento festivo da Via Latina, que passei a reler com mais orgulho do que o árido latim oficial da carta de formatura.» (Torga, 1999: 1697).

Entre estes estudantes estava o seu vizinho da rua Fernando Pessoa, Leandro de Morais Sarmento (irmão da revisora dos textos de Torga – Maria da Conceição), que Torga descreve nos seguintes termos em A Criação do Mundo:

o Ivo, que publicara em tempos um panfleto a defender-me dum ataque soez e de quem acabei por me tornar íntimo (…). Inteligente, culto e sensível, vivia de noite, refugiado num sótão forrado de livros e povoado de rituais, aonde o ia procurar nas horas de maior aflição, confiado na exigência dum critério que nunca cedia às seduções da banalidade.» (Torga, 1981: 193-4).

A diferença de idades entre Torga e «Ivo» era superior a trinta anos! Parece-nos que isto diz muito sobre as capacidades de ambos… Segundo informação que nos foi dada por Maria da Conceição Morais Sarmento, foi o seu irmão que levou Torga a interessar-se pela música e poesia de Jacques Brell e pela banda desenhada, em particular a de Hergé.

Em Maio de 68, Torga, que contava então sessenta anos, estava em plena sintonia com os jovens rebeldes de Paris (e não só):

Continua a agitação estudantil por toda a parte. O cataclismo, agora, é sísmico. O que dantes acontecia em superfície, processa-se no presente em profundidade. A juventude não pretende melhorar, acrescentar ou superar o que está; quer destruí-lo, simplesmente, e começar de novo. (Torga, 1999: 1132)

Parece-nos que o envolvimento é de tal forma intenso que o Orfeu Rebelde chega a tornar-se algo ingénua. Veja-se a continuação da nota que estamos citando:

Uma sociedade que comete, ajuda ou permite monstruosidades como as do Vietnam, que burocratizou todos os sentimentos, que, como nenhuma da história, oprime tão universal e sistematicamente o espírito, não merece prosseguir, nem sequer deixar rasto. Por isso, outra ordem, outra economia, outra cultura, outro ensino, outra moral. E outro rosto humano. (Torga, 1999: 1132)

Mas para esta plena sintonia, Torga não quer «proclamar demagogicamente» (Torga, 1999: 1131) que está com a juventude. Quer, sim: «Estar com ela agora e sempre, na sua encarnação presente e futura, tão discretamente que nunca sinta ao lado nem uma presunção protectora, nem ambição mentora.» (Torga, 1999: 1131)

E, ainda na linha dos seus dois textos de Maio de 68 que citámos, o anarquista Torga escreve, três anos depois, sobre os novos conceitos de vida da juventude: «Já se tentou ser feliz de tantas maneiras sem resultado, que só devemos aplaudir mais um ensaio, mesmo que todos os nossos valores, e nós com eles, deixem de ter sentido.» (Torga, 1999: 1207)

Durante cerca de dez anos (de meados de setenta, ou mais precisamente depois da revolução de Abril de setenta e quatro, até meados de oitenta), o autor d’ A Criação do

Mundo, vai ter uma zanga profundíssima com a juventude pseudo-revolucionária. Em

23-7-1974 comenta:

Como estes jovens estão longe do passado! O que não seria mau se estivessem perto do futuro. Mas infelizmente, estão só no espaço que passa – que nem o presente é – cada qual sem poder ser nada fora do bando, num ardor revolucionário que não é uma exigência da alma, um imperativo do ser, mas uma lição colada com cuspo, decorada em pequenas brochuras ratadas às obras volumosas dos doutrinários, e repetida incessantemente como uma litania. (…) Quem se desvia do rigor sumário da cartilha fica logo excomungado. (Torga, 1999: 1280).

«Que horizontes humanos terão estes jovens de hoje? Dantes, era-se revolucionário por um esforço romântico de inteligência; agora é-se revolucionário por um esforço cerebral de violência.» Torga faz este comentário depois de registar: «Numa assembleia de estudantes, um deles acaba de propor um voto de solidariedade com um grupo subversivo que ontem assassinou a frio um conhecido político italiano.» (Torga, 1999:

1362). O político em causa era Aldo Moro, assassinado pelas Brigadas Vermelhas em 9 de Maio de 1978.

O Orfeu e psicanalista Torga considera que a juventude do período que estamos abordando (meados de 70 a meados de 80) tem «dores» diferentes e «mais fundas e lancinantes» do que tinham os jovens da sua geração. Essas dores «são frutos amargos dum tempo absurdo, sem esperança, que tira à vida toda a razão de ser vivida.» É por estes motivos que eles recorrem ao «aturdimento da droga ou das músicas frenéticas». (Torga, 1999: 1455)

A Queima das Fitas, que tanto entusiasmava Torga durante o Estado Novo transformou- se, para o escritor, num «cortejo triste de uma geração sem história». (Torga, 1999: 1510).

Mas a zanga de 1974 não é somente com os jovens dessa década. É com os que eram jovens nos anos 40 e 50, a quem ele dedicou tantas horas, certamente na convicção de que vinte/trinta anos mais tarde poderiam desempenhar uma acção cívica e política de grande significado, principalmente se a situação política lhes permitisse, e, como sabemos, o autor de Diário e d’A Criação do Mundo ficou rápida e profundamente desiludido com uma grande parte dessas gerações.

Pensamos que este pessimismo é fruto, para além de uma crise existencial, de profundas transformações na sociedade. O abandono da ruralidade, o desenvolvimento cego do consumismo, a desilusão com o país pós 25 de Abril e a desilusão com a Europa.

Contudo o poeta que escreveu «o futuro é o meu reino» (Torga, 1999: 320) e que queria ser «um sinaleiro da esperança» (Torga, 1999: 1662) reforçou as suas asas e voltou a pairar calmamente sobre o abismo que separa as gerações, contribuindo desse modo para a construção de sólidas pontes. Talvez seja nesta área que Torga dá uma das suas mais valiosas respostas às perguntas do mundo, isto é, o autor de Cântico do Homem diz-nos que é sempre possível um diálogo intergeracional.

Em 2-11-1987 («dia dos mortos») estava Torga «a dormitar sobre um livro qualquer» quando ouviu «um rumor desusado na rua.» Era uma «multidão de estudantes» que lhe dedicava uma serenata:

Irradiava vida (…) E Deus sabe como veio a propósito! A mocidade, quando quer, sabe consolar a velhice. A velhice é que nem sempre sabe aceitar os mimos.

Impossibilita-os até muitas vezes de antemão, fechada num egoísmo céptico. Na sua negrura, não pode compreender a claridade. Porque já não tem a generosidade de dar, perdeu a graça de receber. (Torga, 1999: 1605).

E em 14-12-1990 espanta-nos novamente com esta declaração:

É que ser novo não é só ter vinte anos no corpo. É tê-los, também, intemporalmente na alma, em cada instante rendida ao milagre permanente da vida, e pronta a coadjuvá-lo e enriquecê-lo. (…) Que somos nela uma singularidade radical, até quando o não parecemos, e que latejam dentro de nós, incorruptíveis, as forças necessárias para o afirmar em todas as idades. (Torga, 1999: 1697)

Pensemos no relacionamento de alguns jovens intelectuais, de gerações diferentes, com Miguel Torga.

Ruben A. (nascido em 1920) dizia: «Torga é para mim o maior homem que (…) vive em Portugal.» (in Rocha, 2000: 114).

Eduardo Lourenço (nascido em 1923): Maria Manuel Baptista, profunda conhecedora da vida e obra de Eduardo Lourenço (a sua tese de doutoramento é sobre o autor de O

desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações) disse-nos que no

período em que Lourenço foi estudante em Coimbra tinha uma relação quase filial com Torga.

Eugénio de Andrade (também nascido em 1923), quando Torga morre, dedica-lhe um poema («Não Sei») onde se sente (e ele próprio di-lo) que «É muito tarde para as lentas/ narrativas do coração», e termina o poema com versos implacáveis, mas que têm tudo a ver com grandes obsessões torguianas:

Eu sei: tu querias durar.

Pelo menos durar tanto como o tronco De oliveira que teu avô

Tinha no quintal. Paciência, Querido, também Mozart morreu.

Só a morte é imortal. (in Arnaut, 1996: 59)

Almeida Santos (nascido em 1926), no seu depoimento sobre Torga para a Fotobiografia organizada por Clara Rocha, revela uma incomensurável admiração pela prosa e poesia de Miguel Torga e diz-nos que privou com ele durante «quase meio século.». (Rocha 2000: 191). E considera o livro Portugal «o mais belo mosaico da

paisagem física e humana portuguesa e a mais profunda análise da nossa identidade enquanto Povo.» (Rocha, 2000: 194).

António Arnaut (nascido em 1936), em «Último Poema», diz que «Se Deus existe» chamou Torga porque «precisei de ti para semeares de poesia/ o mar infinito da eternidade.» (Arnaut, 1996: 27)

- Manuel Alegre (também nascido em 1936), diz sobre o seu mestre: «Ninguém foi tão visceralmente e ao mesmo tempo tão lucidamente português.» (Rocha, 2000: 17) - Vasco Pereira da Costa (nascido em 1948) diz que Torga é o poeta com quem «Portugal parte à poesia.» (in Arnaut, 1996: 132)

- Para Carlos Carranca (nascido em 1957), Miguel Torga, tal como Unamuno, era um mensageiro universal da paz:

Como o outro da Ibéria

também tu fazes pombas de papel, livres vão

de Coimbra ao fim do mundo. (in Arnaut, 1996: 42)

Na Casa-Museu Miguel de Unamuno, em Salamanca, encontram-se exemplares das pombas brancas que o escritor fazia, em papel, e que Miguel Torga refere no poema «Unamuno» de Poemas Ibéricos:

(…)

Fazia pombas brancas de papel

Que voavam da Ibéria ao fim do mundo… (…)

Fazia pombas brancas de papel, E guardava a mais pura na lapela.

No documento José Manuel Cymbron (páginas 153-160)