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A Possibilidade Existencial Religiosa: O Conflito entre Fé e Razão

4 A EXISTÊNCIA E SUAS POSSIBILIDADES

4.3 A Possibilidade Existencial Religiosa: O Conflito entre Fé e Razão

―O homem pode chegar a ser um herói trágico pelas suas próprias forças, mas não um cavaleiro da fé.”

Johannes de Silentio

A epígrafe acima, não por acaso, nos fornece dois modelos de possibilidades existências. A ética, que já discutimos anteriormente, em que o indivíduo é capaz de renunciar a tudo pelas suas próprias forças, em nome do geral, assim como o herói trágico, grego, Agamemnon, renunciou um bem pessoal, sua filha Ifigênia (KIERKEGAARD, 1972b, p. 149), para agradar a deusa Artemisa e vencer a guerra contra os troianos. E a religiosa representada pelo cavaleiro da fé, Abraão, indivíduo que vive a dialética da fé em seu interior, com uma coragem puramente humana capaz de renunciar a temporalidade, o finito para ganhar a eternidade, algo que o herói trágico não é capaz por si mesmo.

A possibilidade existencial religiosa é aquela em que o sujeito não reivindica a individualidade frente ao geral como faz o sujeito ético. A existência religiosa é a da dificuldade da realização do movimento da fé, o que a torna a mais significativa, de acordo com as reflexões de Kierkegaard, pois, às vezes, as finalidades, isto é, o telos da ética precisam ser suspensas por conta da consciência que o ser adquire da eternidade. Entretanto, o que significa viver religiosamente? Este é um problema que permeia todo o pensamento filosófico do nosso autor. No entanto, discutiremos esta questão à luz do livro Temor e tremor (1843), considerando as reflexões de Johannes de Silentio sobre Abraão que constituem em uma comunicação religiosa ao considerá-lo o Indivíduo, por excelência, exemplo do estádio religioso.

Tal livro é escrito, como já dito, pelo pseudônimo Johannes de Silentio, indivíduo que, ao perceber-se iludido pelos sistemas filosóficos de sua época, propõe um novo desafio existencial: a partir das reflexões bíblicas sobre o sacrifício de Isaac, imolado por seu pai Abraão, compreender a profundidade da vida de fé. Isto é, o seu propósito é problematizar a história de Abraão e extrair dela a dialética que comporta o inaudito paradoxo da fé, capaz de fazer um crime em ato santo e agradável a Deus. Paradoxo que devolve Isaac ao seu pai Abraão. Tal paradoxo não se limita ao simples raciocínio, pois é próprio da fé iniciar-se ao findar da razão (KIERKEGAARD, 1972b).

Para tanto, ao escrever o livro Temor e tremor, Silentio esclarece, imerso em um contexto, que tem paixão de servir a ciência, que o seu escrito não se trata de um sistema, nem de promessas de sistemas - pois não deseja leitores compradores -, mas de uma experiência muito pessoal de quem entende que a fé não é algo medíocre e que não pode ser adquirida por ninguém através da filosofia, por isso afirma muito ironicamente que compreender Hegel é, por demais, difícil, mas que

bagatela compreender o herói da fé, Abraão (KIERKEGAARD, 1972b, p. 126) , aquele que se silencia e vive o conflito interior entre a fé e a razão.

Escreve Silentio:

O presente autor não é de modo algum um filósofo. Não compreendeu nenhum sistema da filosofia se é que algum existe ou esteja concluso. O seu débil cérebro assusta-se já bastante ao pensar na prodigiosa inteligência que é necessária a cada um, sobretudo hoje, quando toda a gente estadeia tão prodigiosos pensamentos! Embora se possa formular em conceito toda a substância da fé, não resulta daí que se alcance a fé, como se a penetrássemos ou ela se houvesse introduzido dentro de nós. O presente autor de nenhum modo é filósofo (KIERKEGAARD, 1972b, p. 101-102).

Temor e tremor tem como atmosfera a história do patriarca Abraão e o seu filho Issac. De um modo geral, o livro organiza-se a partir da seguinte estrutura, a qual não segue um roteiro de um manual filosófico, pois o método de Johannes de Silentio não é um método, como ele próprio afirma, é uma exposição poética, lírico dialética (Dialektisk Lyrik): o Prefácio em que o autor expõe o seu estilo de escrita o que nos conduz a uma interpretação de que seja uma crítica à comunicação direta, tal como explica Johannes Clímacus em Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, pois Silentio está mais para o trágico do que para o religioso, uma vez que se consegue descrever o movimento da fé de Abraão, mas não consegue experimentá-lo ou reproduzi-lo. Em seguida, a Atmosfera com quatro possibilidades de interpretação da história de Abraão. Logo depois, trata-se do Elogio de Abraão, enquanto o indivíduo eleito do Eterno. Mais adiante a Efusão Preliminar, seguida dos três grandes problemas centrais da obra os quais trataremos neste item.

Silentio utiliza-se do episódio narrado pelo livro do Gênesis: ―E Deus pôs Abraão à prova e disse-lhe: toma o teu filho, o teu único filho, aquele que amas,

Isaac; vai com ele ao país de Morija e, ali, oferece-o em holocausto sobre uma das montanhas que te indicarei‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 114), para refletir sobre a profundidade da vida de fé. Nesse sentido, é necessário o questionamento: o que Abraão representa no interior de Temor e tremor?

Nota-se que a tarefa proposta a Abrão por Deus de sacrificar o próprio filho, isto é, o filho da promessa, não é uma tarefa fácil, pois não pode ser justificada nos limites da racionalidade, o que faz Silentio afirmar ―quando me proponho a refletir sobre Abraão me sinto naufragado‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 126). Abraão ao aceitar oferendar o filho, não deu explicação a ninguém, não disse uma só palavra à sua esposa Sara e nem à sua serva Eliezer. ―Abraão recusa essa mediação; em outros termos: não pode falar. Logo que falo, exprimo o geral, e se me calo, ninguém me pode compreender‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 245). Por isso é que ele dirige- se ao local designado em silêncio, já sabia que as pessoas não compreenderiam a sua atitude absurda, considerada do ponto de vista da razão e do contexto moral em que ele vive.

Aos olhos da sociedade, Abraão não seria visto como um homem de fé, que é o que torna para ele o sacrifício muito mais difícil do que o sacrifício realizado pelo herói trágico, Agamemnon. Quando a fé é suprimida só restaria o ato brutal, portanto Abraão seria diante dos preceitos do juízo da ética um louco, um assassino, uma vez que o dever do pai é amar o filho, o mais precioso bem, e não matá-lo. Abraão vive o dilema entre o compromisso com o Absoluto e o dever paternal para com Isaac, que o faz experimentar a angústia e o desespero, traduzidos em dor e sofrimento, porque está em questão a reapropriação da interioridade do indivíduo através da vivência da fé, a qual Silentio explica que ―não é uma impulsão de ordem estética, ela é de uma ordem muito mais elevada justamente porque ela pressupõe a

resignação; ela não é um instinto imediato do coração, mas o paradoxo da vida (KIERKEGAARD, 1972b, p. 139).

Para Silentio, Abraão representa o herói ou o cavaleiro da fé, da paixão que dá sentido à existência humana, aquele que é capaz de transformar um ato desumano, do ponto de vista do geral, em algo agradável a Deus. Ao aceitar o sacrifício do próprio filho, o cavaleiro da fé acredita no Absurdo sem jamais duvidar e, assim diferencia-se do herói trágico no sentido de que ele dá o salto em direção ao infinito, ao Absurdo, enquanto o trágico sempre atua conforme as normas universais da ética. Não que Abraão deixe de viver no geral, pois ele é um homem ordinário, não existe nada externamente que o mostre como diferente dos demais.

Entretanto, sua atitude comporta uma resignação que o torna extraordinário, diferente da resignação que há no estádio ético da existência, em que o indivíduo, por exemplo, no caso do matrimônio, em nome do dever, abre mão de algo em favor do outro. A resignação do cavaleiro da fé é aquela em que ele adquire consciência do próprio eu enquanto eternidade. Ele abandona a razão terrestre em nome da fé, abre mão do seu bem terrestre mais precioso, Isaac, em nome do Eterno. E nisto consiste o paradoxo, o absurdo, pois Abraão acredita que Deus exigindo o sacrifício, mesmo estando disposto a realizá-lo, no momento de imolá-lo, o próprio Deus revoga o exigido. Pela fé, Abraão renuncia o próprio filho, mas o obtém de volta pela segunda vez, porque se lança, pleno de confiança no absurdo. Mesmo em meio as aflições, continuou crendo, uma resignação que só se é capaz sozinho.

Silentio ao problematizar a história de Abraão, discute três problemas relacionados ao sacrifício de Isaac. O primeiro deles: ―Existe uma suspensão teleológica da ética?‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 146). Diante deste problema, o autor tem a intenção de buscar alguma expressão superior capaz de justificar do

ponto de vista ético a conduta de Abraão e que o autorize a suspender o dever ético de pai com relação ao filho que é o de amá-lo como se ama a si próprio. (KIERKEGAARD, 1972b, p.149).

Para Silentio, a História de Abraão comporta a suspensão teleológica da ética pelo fato de Abraão saber o que sua fé representa, pois é em nome dela, do Absurdo que ele obtém Isaac novamente. A fé é o paradoxo que torna Abraão um Indivíduo acima do geral, é ela quem o conserva na esfera superior, pois o heroi não abre mão da subjetividade em nome do geral, pelo contrário ele a reivindica provando o seu amor ao Eterno, o seu verdadeiro telos. Esta é uma característica que define e diferencia o heroi da fé do heroi trágico do ponto de vista de Silentio. O trágico encontra-se na ética, Agamemnon é grande por sua virtude ética, ele não a suspende ao sacrificar Ifigênia, pois renuncia ao certo pelo mais certo ainda, enquanto Abraão é grande por sua virtude pessoal capaz de não permitir que o dever ético o impeça de realizar a vontade de Deus, e, assim ele ultrapassa a ética. Ele renuncia ao certo pelo incerto, e esta conduta não é ―para salvar um povo, nem para defender a ideia do Estado, muito menos para apaziguar os deuses irritados‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 151), pelo contrário, é por amor a Deus e também como prova da sua fé. Portanto, o sacrifício da fé, como é o caso de Abraão, estabelece uma relação privada com o Absoluto que, de modo algum pode ocorrer no âmbito do domínio ético que pauta as relações humanas. Nesse sentido, Silentio escreve sobre o cavaleiro da fé: ―É por isso que Abraão me apavora ao mesmo tempo em que suscita a minha admiração. Aquele que renega a si próprio e se sacrifica ao dever, renuncia ao finito para alcançar o infinito; e não lhe falta segurança‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 152). A referida segurança de Abraão é que o torna um tipo raro para Silentio que admite nunca ter encontrado um autêntico cavaleiro da fé

a exemplo de Abraão que, diferente do heroi trágico que está legitimado pelo geral, renuncia, suspende a ética para tornar-se indivíduo e para isso precisa de uma provação da qual ninguém possa testemunhar e compreender porque escapa ao domínio da razão por conta de tratar-se da existência do paradoxo da fé. Portanto: ―Ou o Indivíduo se transforma em cavaleiro da fé, carregando ele mesmo o paradoxo, ou nunca chega realmente a sê-lo. Nessas regiões, não se pode pensar em ir acompanhado‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 162). Nesse sentido o herói da fé está só em todos os momentos. ―Não pode pedir a ninguém que o ilumine, porque então colocar-se-ia fora do paradoxo‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 168).

O segundo problema proposto por Silentio é se no caso de Abraão ―existe um dever absoluto para com Deus‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 159). Este problema trata-se de mais um dos paradoxos presentes em Temor e tremor, pois ao assumir o dever de sacrificar o filho da promessa diante de Deus, Abraão assume o dever de amá-lo muito mais ainda. Explica Silentio: ―porque este amor que dedica a Isaac é o que, pela sua posição paradoxal ao amor que tem por Deus, faz do seu ato um sacrifício‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 164). Abraão enquanto Indivíduo, que encontra apoio somente em si próprio, determina a sua relação com Deus através do dever absoluto e a sua fé não lhe permite que tal dever seja expresso no geral, isto é, que seja mediado pela instância geral, pois se assim fosse não faria sentido e Abraão não seria o cavaleiro que realiza o movimento da fé, que a experimenta enquanto paradoxo que ―consiste em que há uma interioridade incomensurável em relação à exterioridade, e esta interioridade, importa notá-la, não é idêntica à precedente, mas uma nova interioridade‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 160)

Entretanto, não se segue daí que a ética deva ser abolida, mas recebe uma expressão muito diferente, a do paradoxo, de forma que, por exemplo, o amor para com Deus pode levar o cavaleiro da fé a dar ao seu amor para com o próximo a expressão contrária do que, do ponto de vista ético, é o dever (KIERKEGAARD, 1972, p. 161). Nesse sentido, podemos afirmar, de um modo geral, sobre o segundo problema tradado por Silentio: primeiramente que o dever absoluto pode levar a realização daquilo que a ética proibiria, no entanto, de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. Este é o exemplo que Abraão nos dá. No momento em que aceita sacrificar Isaac, a ética diz que ele o odeia, entretanto, se é verdade o que a ética diz Deus não lhe pediria que sacrificasse o filho da promessa, pois não serviria como prova da sua fé e do seu amor (KIERKEGAARD, 1972b, p. 164). Segundo, o dever absoluto para com Deus define o cavaleiro da fé como aquele que possui a paixão necessária para concentrar toda a ética com que ele rompe em um único ponto com a finalidade de poder dar a certeza de que ama realmente Isaac com toda a sua alma (KIERKEGAARD, 1972b, p. 168).

Já o terceiro problema discutido por Silentio é: ―Pode-se do ponto de vista ético, justificar o silêncio de Abraão diante de Sara, Eliezer e Isaac?‖ Nesta questão, de um modo geral, nosso autor compara o silêncio do heroi trágico, Agamemnon, ao sacrificar Ifigênia, com o silêncio de Abraão em relação ao sacrifício de Isaac. No caso do primeiro: ―A estética exige que ele se cale, porque seria indigno de um heroi procurar a consolação junto de outras pessoas‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 175), na tentativa de aliviar o seu sofrimento e o sofrimento dos demais. Já no caso de Abraão que não se encontra no estádio estético, o silêncio não é pelo fato de que não possa buscar conforto nas pessoas e minimizar o sofrimento. Ele se cala porque ninguém, nem mesmo seus familiares, o compreenderiam, pois Abraão é o próprio paradoxo, é o Indivíduo de fé o qual não pode fazer-se compreender. O que ele

representa não permite mediação, por isso segue até Morija, para realizar o sacrifício na companhia do silêncio injustificável não só diante de Sara, Eliezer e Isaac, mas também diante do Estado, isto é da ética. Diferente do heroi trágico, Abraão faz do silêncio uma experiência do sagrado, momento em que se torna Indivíduo consciente da sua relação com Deus, uma relação que não se pode ser mediada pela razão, mas somente pela escolha subjetiva da fé.

A ética ordenaria Abraão que falasse, mas a sua linguagem mantém a comunicação apenas com o Absoluto, o que o torna o Indivíduo acima do geral que assume a responsabilidade do silêncio não por orgulho e nem, muito menos, para salvar Isaac.

Explica Silentio:

Abraão cala-se... porque não pode falar; nesta impossibilidade residem a aflição e a angústia. Porque, se não me posso fazer compreender, não falo, mesmo se discurso noite e dia sem interrupção. Tal é o caso de Abraão; ele pode tudo dizer, exceto uma coisa, e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala. A palavra, que permite traduzir-me no geral, é um apaziguamento para mim. Abraão pode bem dizer as mais belas coisas a respeito de Isaac de que uma língua é capaz sobre o seu amor. Mas no seu coração guarda uma coisa muito diferente; esse algo mais profundo, que é a vontade de sacrificar o filho porque é uma prova (KIERKEGAARD, 1972b, p. 199).

Desse modo, fica claro que o silêncio de Abraão não pode ser justificado diante de Sara, Eliezer e Isaac, pois todos eles ficariam escandalizados com a conduta do cavaleiro da fé. Portanto: ―Ele não pode falar. Ele não fala nenhuma linguagem humana. Mesmo se soubesse todas as línguas que existem na terra, mesmo se os seres queridos o compreendessem, não poderia falar. Ele fala uma linguagem divina‖ (KIERKEGAARD, 1972b, p. 200), da qual as palavras não são suficientes para traduzi-la. Se isto ocorresse não trataríamos aqui de Abraão.

Desse modo, Temor e tremor tem um papel singular no interior do pensamento do filósofo de Copenhague. Primeiramente porque a partir da história de Abraão, nos dá um exemplo prático do que significa viver religiosamente, isto é, no estádio religioso, o estádio que comporta a fé. Segundo, porque a referida obra assinala o conflito, a contradição entre a razão e a fé. Johannes de Silentio faz questão de deixar claro que toda tentativa de integrar a fé a um Sistema Filosófico, referindo-se a Hegel, é claro, é uma tentativa de falseá-la, pois não se pode explicar a fé sem saber o que ela representa. Ela é o paradoxo que propõe a relação do Indivíduo com o Absoluto sem a mediação da razão. Aliás, Temor e tremor, ao discutir sobre o sacrifício do herói da fé, torna-se o livro dos paradoxos, o qual expressa a comunicação existencial religiosa com a finalidade de apresentar a paixão da fé de Abraão como o inaudito paradoxo, o qual constitui o legítimo sentido da sua existência.