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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA

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(1)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA

RANIS FONSECA DE OLIVEIRA

A COMUNICAÇÃO EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE SØREN AABYE

KIERKEGAARD

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

(2)

A COMUNICAÇÃO EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE SØREN AABYE

KIERKEGAARD

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob a orientação da Profª. Drª. Silvia Saviano Sampaio.

SÃO PAULO

(3)

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Profª. Drª. Sílvia Saviano Sampaio

______________________________________

Prof. Dr. Álvaro Luís Montenegro Valls

______________________________________

Prof. Dr. Márcio Gimenes de Paula

____________________________________

Profª. Drª. Sônia Campaner Miguel Ferrari

_____________________________________

(4)

RECONHECIMENTO

(5)

Dedico esta tese, com toda a minha gratidão, amor, carinho e respeito ao meu pai, Justino Chaves de Oliveira, homem simples e de coração acolhedor. À minha adorável mãe, Francisca (Rosinha), mulher meiga, dócil e, sobretudo, paciente, venero pela sabedoria, por ter sabido educar, mesmo em tempos difíceis, juntamente com meu pai, dez filhos que disputam a sua atenção como gesto de amor e gratidão. Ao meu filho, Arthur Augusto, de 04 anos de idade, um ser que me faz experimentar uma espécie de amor que somente aquele que é pai é capaz de descrevê-lo. Todas as noites, lembro-me do comentário e da pergunta que me fez durante uma oração:

“Papai, eu sei o que é pai e o que é filho, mas o que é

espírito?”. Expliquei, além de muitas coisas, que se trata de

(6)

AGRADECIMENTOS

Tenho a satisfação, ao concluir esta tese, lembrar de todas as pessoas que estiveram do meu lado, sempre me proporcionando alegrias e estímulos, sobretudo em momentos que me senti depressivo. Portanto, quero agradecê-las.

Em primeiro lugar, à minha orientadora, profª. Sílvia Saviano Sampaio, pela amizade e dedicação, pelas considerações rigorosas e inteligentes, pela oportunidade que tive. E também aos demais professores do Programa de Filosofia da PUC-S.P pela qualidade das aulas e pelos diálogos estabelecidos. E à CAPES por ter financiado a minha pesquisa. Sem a bolsa concedida teria sido impossível!

Agradeço aos meus pais e aos meus irmãos, pela afetividade, pelas orações, por me fazer sentir seguro diante da existência.

À minha esposa, meu amor, minha revisora de plantão, agradeço a dedicação e a paciência. Por isso, tenho a satisfação de dizer-lhe, através de Victor Hugo que: “A medida do amor é amar sem medida.”

(7)

me uma experiência singular durante a minha defesa de mestrado em 2009. Meus agradecimentos por aceitar fazer parte da banca examinadora desta tese.

Ao professor, Márcio Gimenes de Paula da Universidade de Brasília, a quem terei o prazer em conhecê-lo pessoalmente. Obrigado por aceitar o meu convite e da minha orientadora para compor a banca examinadora. Sua presença é indispensável!

(8)

A presente tese propõe-se a analisar, com esteio em pesquisa teórica e bibliográfica,

a comunicação existencial na filosofia de Søren Aabye Kierkegaard (1.813 – 1.855).

A comunicação existencial do autor é compreendida como comunicação de reflexão,

que se dirige ao Indivíduo e não à massa. Nesse sentido, tal comunicação é

realizada indiretamente e justifica-se na interpretação de que a existência é muito

contraditória para ser pensada e conceituada objetivamente. A comunicação

existencial é o recurso que o pensador dinamarquês desenvolveu para posicionar-se

diante da filosofia do Sistema, como também diante da cristandade, isto é, da

banalização do verdadeiro cristianismo. Para tanto, utilizou-se da ironia e da

pseudonímia.

(9)

This thesis proposes to examine as a mainstay in the theoretical literature and the

existential philosophy of communication Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855). The

author's existential communication is understood as communication of reflection,

which addresses the individual and not the mass. Accordingly, this communication is

done indirectly and justified in interpreting that existence is too contradictory to be

considered and appraised objectively. The existential communication is the feature

that the Danish thinker developed to position himself in front of Christendom, this is,

the trivialization of real Christianity. For this, we used irony and pseudonymity.

(10)

SUMÁRIO

À GUISA DE APRESENTAÇÂO 12

1 O PROBLEMA DA COMUNICAÇÃO 26

1.1 Dois Modos de Comunicação 35

2 A IRONIA 42

2.1 O Sócrates de Kierkegaard 46

2.2 Ironia e Subjetividade 55

3 COMUNICAÇÃO E PSEUDONÍMIA 60

3.1 A Comunicação por meio de Clímacus e Anti-Clímacus 64

3.2 Clímacus e as Migalhas Filosóficas 69

3.2.1 O Paradoxo das Migalhas: uma contestação à Intelectualidade 72

3.3 Anti-Clímacus e o Desespero 78

3.3.1 Desespero: o traço mais característico do ser humano 82

3.3.1.1 O Desespero é pecado 85

4 A EXISTÊNCIA E SUAS POSSIBILIDADES 88

4.1 O Estádio Estético 90

4.1.1 O Esteta Imediato 98

(11)

4.3 A Possibilidade Existencial Religiosa: O Conflito entre Fé e Razão 119

CONSIDERAÇÕES FINAIS 129

(12)

O que me falta é ter clareza comigo mesmo sobre o que devo fazer e não sobre o que devo conhecer, a não ser na medida em que ideias claras devem preceder toda a ação. Trata-se, para mim, de compreender qual é a minha vocação, ver o que a Providência quer propriamente que eu faça. Trata-se de encontrar uma verdade que Trata-seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu possa viver e morrer.

(13)

À GUISA DE APRESENTAÇÃO

Propor uma reflexão sobre a existência é, no mínimo, aceitar a coerência de

que seremos frequentemente questionados, interrogados por ela, pelo motivo de sua

multiplicidade e heterogeneidade dificultarem a compreensão das próprias

configurações existenciais. Pois não é possível expor um problema sem nele se

expor. Quanto a isso, o pensador dinamarquês, formado pela categoria da

possibilidade e pela categoria da angústia, que por meio da fé desvela as ilusões do

mundo finito, Kierkegaard (1813-1855), não pode hesitar, uma vez que seus escritos

têm a intenção de provocar no ser humano o desejo de emancipar-se enquanto

indivíduo, a ponto de intervir em si mesmo reflexivamente em uma busca de sentido

que possa valer existencialmente.

No entanto, há uma questão que se não nos agradar muito, pelo menos

servirá para nos intrigar cada vez mais: que existência é essa que Kierkegaard

refere-se que necessariamente deve vir-a-ser significativa, em uma época,

sobretudo a moderna, sem interioridade, sem paixão, preocupada em construir

sistemas filosóficos falha em atender tudo aquilo que individuam o ser humano como

os desejos, as paixões, as angústias, os desesperos, as responsabilidades, fé,

liberdade, subjetividade, entre outros.

(14)

fazer responsável por si mesmo. Trata-se aqui, no fim das contas, simplesmente da criação do homem, cuja dialética secreta Kierkegaard coloca em evidência (FARAGO, 2006, p. 85).

Grande parte do pensamento de Kierkegaard é uma crítica ao conceito de

existência desenvolvido abstratamente por meio de uma especulação, que tende a

fugir da vida, pelos grandes sistemas filosóficos, sobretudo pelo grande filósofo

alemão, Hegel, pertencentes à época moderna, a qual Álvaro Valls, em seu livro,

Kierkegaard, cá entre nós, cujo título, por si mesmo explicita, o seu cuidado e a sua proximidade com o pensamento do dinamarquês, nos dá uma caracterização muito

feliz:

É o tempo da reflexão, do excesso de raciocínios, do cálculo sem paixão. Inflama-se de um entusiasmo fútil e repousa sobre uma indolência esperta. Usa-se demais o cérebro, até mesmo o candidato ao suicídio pesa longamente vantagens e desvantagens, e se suicida por premeditação (VALLS, 2012, p. 68).

Em tal tempo de exageros, da pressa, de objetividade, a produção filosófica

de nosso autor nos pergunta: O que significa ser indivíduo e como tal viver

singularmente? Ou então: Como tornar-se cristão, em um contexto em que o

imoralismo burguês, acadêmico e teológico reduziu o cristianismo a uma simples

convenção social?

O conceito de indivíduo está relacionado a uma linguagem que, do seu ponto

de vista, não pode ser a linguagem objetiva ou científica. Isto é, o Indivíduo é uma

verdade existencial, que deve ser concebida em um contexto cristão, que para ele

foi substituído pela cristandade. A única comunicação que pode dar conta de tal

verdade ou de tal singularidade, em que ―todos são cristãos‖, é a comunicação

(15)

Kierkegaard executa um trabalho de arqueólogo ou de analista da linguagem... faz análise crítica de alguns conceitos. Nunca prega, pois para isso não tem e nunca quis ter autoridade; recusa-se a ensinar, recusa-se à comunicação magistral, não é pastor, nem professor, muito menos de teologia; trata só de exumar e polir os conceitos, pretende verificar se isto ou aquilo corresponde ao sentido original do Cristianismo, ou se quiçá se trata de uma corruptela, um desvio, um compromisso entre os pretensos cristãos e o mundo (VALLS, 2012, p. 128-129)

Diante disso, vale apresentar alguns dados biográficos a respeito do filósofo,

que nos ajudaram a compreender a complexidade de sua vida para, em seguida,

enfatizar o problema desta tese, pois a melhor maneira de compreender o teor

filosófico do pensamento do escritor dinamarquês é começar compreendendo a sua

vida autenticamente humana, pois fez do seu modo de existir um desafio de seu

próprio pensamento que se tornou em uma incessante busca existencial. Nesse

sentido, vida e obra são indissociáveis. A vida de Kierkegaard é passagem

obrigatória para o leitor compreender os grandes temas abordados em seu

pensamento, que tem como fonte de inspiração ele próprio.

Kierkegaard é natural da Dinamarca, nasceu na cidade de Copenhague. É de

fundamental importância que ele tenha sido dinamarquês, um país do norte europeu

às margens das grandes nações, cuja cultura foi ignorada, até mesmo na França.

Foi necessário que tenha sido luterano e também teólogo que se opõe a partir de

uma exegese esclarecedora, diante da mediocridade do cristianismo enquanto

instituição desvirtuada daquilo que ele entendia como essência do cristianismo ou

como o ―incondicional‖ (FARAGO, 2006, p. 12).

Kierkegaard viveu quase sempre em sua cidade natal, assim como o filósofo

(16)

pessoas. Filho de uma família numerosa, cujos pais já eram de idades avançadas.1

Seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard, era um luterano que teve uma infância

pobre, e teria blasfemado contra Deus, que, do seu ponto de vista, insensivelmente

permitia a sua pobreza, no entanto, depois de algum tempo, trabalhando no

comércio de tecidos da capital de sua cidade, consegue uma ascensão financeira

mais do que cômoda que lhe permitiu o privilégio de conviver com os grandes

personagens do reino como o bispo, os banqueiros e alguns governantes. Aos trinta

e oito anos casa-se, pela primeira vez, com a irmã de um de seus colegas, porém,

dois anos mais tarde fica viúvo, pois sua esposa morre com uma enfermidade

pulmonar. Somente em seu segundo matrimônio, em 1797, com Ane Sørensdatter,

doze anos mais nova do que ele, é que nasceram os sete filhos de Michael. Destes

sete, cinco faleceram, restando apenas o mais velho e o pequeno Søren Aabye

Kierkegaard(LARRAÑETA, 2002).

Michael Pedersen Kierkegaard, conservador ao extremo, deixou marcas

profundas na personalidade do jovem Kierkegaard2, educando-o de forma severa e

rigorosa em sua referência religiosa, em que o cristianismo transmitido não era feito

de esperança e confiança, mas de sofrimento e castigo, o que contribuiu para que

Kierkegaard tivesse uma vida deprimente, com sentimento de culpa, melancolia3 e

1 Quando Kierkegaard nasceu, seu pai tinha cinquenta e seis anos. E sua mãe, quarenta e quatro anos. Isso explica o motivo de Kierkegaard se auto-afirmar como ―o filho da velhice‖.

2 Jonas Roos, em sua tese de doutorado, cujo título é Tornar-se cristão: o paradoxo absoluto e a

(17)

repleta de angústia4. Angústia essa que não o imobilizou, mas que o impulsionou à

liberdade e ao desejo de ―ser si mesmo‖ com paciência, combatendo em sua

literatura com um estilo irônico, o cristianismo obcecado pelo pecado que não pode,

de modo algum, socorrer o Indivíduo. Ou seja, a influência do pai de Kierkegaard,

legando-lhe toda uma herança espiritual, foi essencial para a sua evolução enquanto

crítico do cristianismo de sua época e da existência.

Nas palavras de Valls, Kierkegaard:

Tornou-se um dos grandes escritores dinamarqueses e universais, com textos que reúnem elegância e riqueza, humor e críticas, sentimento religioso e linguagem popular, psicologia profunda, experimental, especulação filosófica e dogma teológico, poesia e musicalidade, tudo marcado por uma ironia que junta espiritualidade e espirituosidade (VALLS, 2009, p. 22).

Notoriamente, Kierkegaard é um autor em que toda a obra foi profundamente

marcada pelas experiências pessoais, como a convivência com o próprio pai, figura

presente em diversos escritos e o noivado com a jovem Regine Olsen5 e, em

seguida, o seu rompimento. Alguns até afirmam que toda a sua obra é desenvolvida

tendo como substrato o término do noivado, pois depois de algum tempo, quando

ele considera-se apto para ter Regine, é tarde demais, pois ela encontra-se nos

braços de Johan Frederick Schlegel, governador das Ilhas Virgens, nas Antilhas

dinamarquesas.

Conforme Valls,

Essencial na experiência de nosso pensador foi seu relacionamento com Regine Olsen. Quando ele tinha 27 anos, chegou a noivar com

4 De acordo com France Farago, a angústia é o lugar em que o si mesmo começa advir, experiência cuja totalidade afetiva é absolutamente única, dado que, diferentemente do receio ou do medo, a angústia não tem objeto, não é de forma alguma intencional, privada que é de toda referência. Ela é o pathos em cujo seio o indivíduo começa chegar à consciência de si mesmo.

5

(18)

esta mocinha de 17, de família distinta, mas após um drama muito intenso e complexo forçou-a a romper o noivado, embora, ele, num sentido muito especial, se mantivesse fiel até o final da vida. Regina perpassa sua obra, diretamente, como grande interlocutora, ou ao menos ―a ouvinte‖ de seus discursos (mais de 80), que deveriam ser lidos em voz alta (VALLS, 2009, p. 24).

Desse modo, tanto o pai como a noiva são presenças marcantes em seu pensamento, entretanto, chama a atenção o fato de nosso autor não fazer nenhuma referência à própria mãe em seus escritos, apesar de amá-la e ser por ela muito amado também. Farago justifica, afirmando que existe uma razão para isso:

Essa ausência da mãe, que alguns acham estranha, se deve simplesmente ao fato de que o horizonte de Ana Kierkegaard estava limitado aos assuntos domésticos aos quais se entregava com amor, mas sem que isso significasse a menor atração para o jovem cujo despertar precoce o orientava para o seu pai, entusiasta de filosofia e teologia (FARAGO, 2006, p. 27).

Outro elemento da vida de nosso autor o qual é preciso considerar, além do

relacionamento com o pai e com a noiva, é sua relação com o seu amigo, Poul M.

Moller, um poeta dinamarquês que se deu o direito de não gostar do grande filósofo

alemão, Hegel, no sentido de não aprovar o que o filósofo escreveu em um Sistema

com pretensão de verdade universal e definitiva.

Moller nasceu na Jutlândia6 em 1794 e faleceu1838, foi docente na

Universidade de Copenhague, durante quase nove anos, nas disciplinas de Moral e

de Filosofia Antiga. Kierkegaard não era só amigo do poeta, era também seu

admirador, seu discípulo, com quem aprendeu a gostar dos gregos, como Homero,

Platão, Aristóteles e, sobretudo de Sócrates. Na obra, O conceito de angústia, através do Vigia de Copenhague, Vigilius Haufnienses, Kierkegaard demonstra a

sua gratidão ao amigo, fazendo a seguinte dedicatória:

(19)

Ao professor Paul Martin Moller: Amante feliz do helenismo, admirador de Homero, confidente de Sócrates, intérprete de Aristóteles delícia dos dinamarqueses nas suas delícias da Dinamarca e, não obstante embarcado para a longa viagem, sempre na lembrança do verão dinamarquês a este que admiro e choro, é dedicado esta obra (KIERKEGAARD, 1972, p. 9).

É a partir dele que o filósofo dinamarquês, nos anos de universidade, começa

a dar um norteamento para a própria vida, após discutirem seus planos acadêmicos

e seus projetos literários. Segundo Valls (2012, p. 41), era o leitor que lhe faltava, a

única pessoa totalmente capaz de ler inteligentemente o que o jovem Kierkegaard

escrevia, apesar de não ter sido o seu orientador7 na tese, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Aliás, um texto com um tema e uma linguagem profundamente filosófica, para a obtenção do título de mestre em teologia.

Kierkegaard também aprendeu com seu mestre Moller a ler o pensamento de

Hegel e a protestar contra ele. Entretanto, enquanto Moller permanecia no riso e nas

sátiras ao notar as possíveis falhas no pensamento do filósofo, Kierkegaard vai

muito mais além, pois se tornara um leitor atento, em meio à busca de sentido para

a existência, disposto a sair da zona de conforto, a qual seu mestre esteve e a

confrontar o pensamento do filósofo alemão tentando desconstruir a sua ideia de

sistema.

Para Valls,

Kierkegaard não parou onde parou o mestre, e sim, eis uma grande diferença, envolveu-se progressivamente com o pensamento hegeliano. Procurou localizar e corrigir os pontos fracos, tratou de aprender a ler Hegel, o melhor que conseguiu. Estudou-o muito, leu dele e sobre ele. Leu suas Lições, sua Lógica e sua Enciclopédia. Leu seus discípulos, da direita hegeliana, assim como leu L. Feuerbach e A. Trendelenburg. Entrou em discussão com seus

7 O orientador de Kierkegaard na Universidade de Copenhague, na tese, O conceito de ironia,

(20)

textos. Chegou a criar até uma variante da dialética, a dialética da existência (VALLS, 2012, p. 43-44).

Nesse sentido, há de se concordar com as palavras de Valls, que Kierkegaard

não teria desenvolvido o seu pensamento filosófico sem o conhecimento sobre o

sistema hegeliano, além do aprendizado com os antigos gregos, como Sócrates,

Platão e Aristóteles, e se não estivesse imerso em um cenário filosófico e teológico -

século XIX8 - resultado de muitas inquietações pertinentes desde a época da

antiguidade, passando pela modernidade, chegando até os nossos dias, entre elas,

fé, razão, conhecimento, verdade, existência.

Márcio Gimenes de Paula, em O indivíduo e a comunidade em Kierkegaard, afirma o seguinte:

As raízes do pensamento de Kierkegaard estão nitidamente plantadas na filosofia alemã do século XIX (e na filosofia grega). Como bem apontou Lowith9, a filosofia alemã desse período é

composta por um conjunto de pensadores que respondem, cada qual ao seu modo, aos desafios postos pela filosofia hegeliana. Kierkegaard partilha desse legado intelectual, a saber, dos ditos herdeiros de Hegel, juntamente com outros notórios pensadores. (PAULA, 2009a, p. 17).

De um modo geral, os herdeiros de Hegel, dentre eles Feuerbach10 (1804-

1872) e Marx11 (1818-1883), reagem à concepção do grande filósofo alemão de que

8 Sem dúvidas, de um modo geral, o momento histórico em que o filósofo de Copenhague viveu, o século XIX, é um dos momentos mais cruciais da História da Filosofia. Pois é neste período que surgiram ou despontaram inúmeros filósofos que discutiram questões, cada um ao seu modo, pertinentes para o pensamento ocidental. Citando apenas alguns dos mais representativos e proeminentes: Hegel (1770–1831), Schelling (1775–1854), Karl Marx (1818 –1883), Nietzsche (1844 – 1900), Arthur Schopenhauer (1.788 – 1. 860).

9 Lowith defende a ideia de que Kierkegaard, no contexto filosófico, não deve ser considerado como um autor de pensamento isolado, mas como um pensador de reação aos paradigmas, sobretudo, acadêmicos de sua época.

(21)

filosofia e religião é uma única coisa. Isto é, a tentativa de reconciliação entre

filosofia e cristianismo de Hegel é objeto de questionamento de tais pensadores,

sobretudo, de nosso autor. No entanto, suas reações são diferentes. No caso de

Feuerbach, em A Essência do cristianismo (1841), a filosofia de Hegel é uma filosofia vã, um ateísmo disfarçado, porque suprimiu Deus transcendente da

tradição, colocando em seu lugar a ideia de Espírito Absoluto. No caso de Karl Marx,

o pensamento abstrato de Hegel concebe o Estado como absoluto, como a base da

sociedade e, portanto, seria anterior ao ser humano, o que é inaceitável para Marx,

pois o Estado surge das relações de produção. Já Kierkegaard, ―critica o

cristianismo filosófico, tal como deseja Hegel, e vê nele, na Igreja, no Estado, na

Teologia e na especulação, sintomas da decadência do crístico‖ (PAULA, 2009, p.

27).

Silvia Saviano Sampaio escreve que:

De acordo com Kierkegaard, Hegel falsificou a relação entre a filosofia e a teologia apagando a diferença qualitativa (Kvalitativ Forskel) que separa estes dois domínios. A filosofia tem por domínio o mundo temporal e visível; a teologia se interessa pelo eterno que escapa ao domínio do pensamento. O eterno e o temporal encontram-se separados por uma diferença qualitativa absoluta e só podemos passar de um para o outro através de um salto (SAMPAIO, 2001, p. 87).

As considerações filosóficas ou de outra natureza, como a teológica, por

exemplo, e objeções radicais de Kierkegaard ao Sistema, ao idealismo absoluto e

seu caráter acadêmico, como também ao contexto social, político e cultural em que

a Dinamarca de seu tempo estava inserida, apontam a falência no processo de

constituição da subjetividade. Para tanto, ele parte do princípio de que a verdade, a

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existência não pode ser compreendida de modo objetivo, pois a objetividade não

pode ser considerada a ordem última das coisas. Para ele, a verdade é subjetiva e

diz respeito à dimensão da interioridade, devendo ser reapropriada, não pelo ser

ideal, mas pelo indivíduo existente preocupado com o ser e com a eternidade, com o

sentido e não com o discurso. Desse modo, uma questão crucial: Sendo a verdade

subjetiva, de que modo a sua comunicação deve ser realizada?

Nesse sentido, o objetivo desta tese é propor uma análise sobre a

comunicação na filosofia de Kierkegaard, mais especificamente a comunicação

existencial, enquanto comunicação de reflexão, que não se refere à transmissão de

conhecimentos ou verdades objetivas, tendo em vista que o pensador dinamarquês

não desenvolve o referido tema por acaso ou porque é um recurso criativo, mas por

necessidades essenciais, dentre elas, opor-se ao sistema especulativo na tentativa

de romper ―com os hábitos canonizados pela Universidade e pelas instâncias

culturais‖ (FARAGO, 2006, p. 57); e a cristandade com a finalidade de discutir a

seguinte questão: ―Como tornar-se cristão?‖ Ou ―Como tornar-se Individuo?‖

Kierkegaard, em O Instante (2012, p. 40), descreve que o que entendemos por ser cristão é uma prodigiosa ilusão, uma maquinaria de uma Igreja e estatal12, e

mil funcionários clericais/seculares, que não nos ajudará em nada na eternidade,

mas ao contrário, será usada contra nós para acusar-nos. Tal fantasia, o quanto

antes desaparecer, melhor, para o bem da nossa eternidade.

―O que é o pensamento de Kierkegaard se não uma patética desconstrução

da dogmática cristã que, longe de desacreditar, paradoxalmente a corrobora e a

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legitima, esclarecendo e resgatando o seu sentido eminentemente existencial?

(FARAGO, 2006, p. 10).

Em sua busca do que envolve tornar-se cristão, questão central de toda a

obra de Kierkegaard, o pensador dinamarquês desenvolve sua comunicação

existencial, propondo que a informação objetiva do cristianismo especulativo possa

dar lugar à reflexão, em seu sentido mais profundo, isto é, edificante. ―Kierkegaard

pressentiu o perigo de esperar das ciências as respostas às questões da existência.

As ciências são apenas uma redução do real ao racional‖ (FARAGO, 2006, p. 165).

Neste sentido, a comunicação da verdade tornou-se abstrata e estranha ao

indivíduo, que Kierkegaard refere-se da seguinte maneira: ―para mim, como

pensador e não pessoalmente, a questão do Indivíduo é decisiva entre todas

(KIERKEGAARD, 2002, p. 120).

Como é notório, o Indivíduo é a categoria por excelência para o filósofo

dinamarquês, que o tem em sua comunicação como alvo primordial. Portanto, vale

ressaltar, quea presente tese tem como base teórica o pensamento de Kierkegaard

e, como problema, como já dissemos, um dos eixos da proposta filosófica do autor

que é a questão da comunicação existencial. Busca-se descrevê-la e apresentá-la

como algo essencial, que permeia os escritos do autor que a utiliza dirigindo-se ao

Indivíduo e não a massa. Pois, segundo ele, uma comunicação existencial da

verdade tem a seriedade de ter o cuidado com a realidade, respeitando a condição

do Indivíduo, não compreendido no sentido da distinção de algum talento especial,

mas no sentido em que todo homem, sem exceção, pode e deve vir a ser

(KIERKEGAARD, 2002, p. 124).

Os textos de Kierkegaard, de maior destaque, estudados e utilizados na

(24)

(1855), A Doença para a morte (1849), O Conceito de angústia (1844), Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas (1846), Temor e tremor (1843), O Diário do Sedutor (1843), entre outros. E, na tradução brasileira, realizada por Álvaro Montenegro Valls, O Conceito de ironia constantemente referido a Sócrates (1841), As Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia (1844). Contamos também com alguns dos principais estudos críticos articulados por

comentadores brasileiros como o próprio Álvaro Montenegro Valls, Kierkegaard, cá entre nós (2012); Sílvia Saviano Sampaio, A subjetividade existencial em Kierkegaard (2001); Márcio Gimenes de Paula, O indivíduo e a comunidade em Kierkegaard (2009a), Subjetividade e Objetividade em Kierkegaard (2009b), entre outros. Além de comentadores franceses como André Clair, Farago, Vergote, Politis,

entre outros. Portanto, no que se refere à metodologia utilizada, seguimos as

normas da pesquisa bibliográfica, fundamentando nossas posições sobre o objeto

proposto nas obras do autor e em obras sobre o autor.

Quanto à estrutura, este trabalho desenvolve-se em quatro capítulos, os quais

se encontram correlacionados, a fim de que se tenha uma compreensão sobre os

conceitos kierkegaardianos imersos no problema, a comunicação existencial.

O primeiro capítulo versará, de um modo geral, sobre ―O problema da

comunicação‖, apresentando alguns textos em que a temática aparece, sobretudo, o

texto de mais frequência, A Dialética da comunicação, em que o autor discute o tema. A questão que norteia o desenvolvimento do capítulo é a seguinte: Como não

se interrogar sobre as razões filosóficas sobre o questionamento kierkegaardiano, o

que é comunicar? O autor analisa dois modos de comunicação: a direta e a indireta.

No entanto, privilegia a comunicação indireta como via mais adequada para

(25)

que nos permitirá notar que, para o pensador dinamarquês, a comunicação

existencial é a comunicação indireta. Tal comunicação desdobra-se em duas

categorias necessárias: a ironia e pseudonímia.

O segundo capítulo propõe-se a elaborar uma análise sobre ―A ironia de

Kierkegaard, não só enquanto figura de linguagem, mas como uma das suas

atitudes mais políticas e mais filosóficas que contrapõe o interior ao exterior, a partir

do ponto de vista de Sócrates concebido como ironia. Para tanto, questionamos o

seguinte: Em que sentido é necessário compreender a utilização estratégica da

ironia no interior do pensamento de Kierkegaard? Além disso, busca-se apresentar a

tentativa de Kierkegaard em descrever uma concepção confiável e autêntica sobre a

existência do filósofo Sócrates. Para esta tarefa, ele analisa diferentes concepções

de pensadores que foram contemporâneos do pensador de Atenas, entre eles,

Platão, Xenofonte e Aristófanes.

Disserta-se, no terceiro capítulo, sobre Comunicação e Pseudonímia

enquanto uma possibilidade dialética de comunicação existencial, que tem como

objetivo construir o indivíduo interiormente. Para tanto, colocamos alguns

questionamentos: ―Qual o sentido da produção pseudônima no interior do

pensamento do autor?‖ ―O que justifica o uso da pseudonímia apresentada como um

recurso literário pelo filósofo de Copenhague? Além disso, propõe-se a descrever a

comunicação por meio de dois pseudônimos autores: Johannes Clímacus e

Johannes Anti-Clímacus, personagens que surgem em épocas diferentes no

pensamento de Kierkegaard, como também discutir algumas questões abordadas

(26)

No quarto capítulo, trataremos das ―Possibilidades existenciais, a estética, a

ética e a religiosa, discutindo e caracterizando cada um desses modos existenciais a

partir de obras específicas. Por exemplo, para o estádio estético que representa a

vida imediata utilizaremos O Diário do Sedutor, do pseudônimo ―A‖, com a finalidade de apresentar o esteta reflexivo, a partir do Sedutor, Johannes; e para apresentar o

esteta imediato valeremo-nos do livro do pseudônimo "B", Os Estádios eróticos imediatos, a partir de Don Giovanni (Don Juan). Com relação à possibilidade existencial ética, utilizaremos as reflexões do pseudônimo, o Juiz Wilhelm, sobre o

matrimônio, aconselhando o pseudônimo ―A‖ sobre a falta de interioridade da vida

estética. No que diz respeito ao religioso, as reflexões do pseudônimo Johannes de

Silentio, que constituem uma comunicação existencial religiosa, sobre o sacrifício de

Abraão, em Temor e tremor, nos servirão para compreender o conflito entre a razão e a fé. Desse modo, ao analisarmos tais obras, em cada uma das possibilidades

existenciais, pretendemos responder à seguinte pergunta: o que significa viver do

(27)

1 O PROBLEMA DA COMUNICAÇÃO

Em Kierkegaard, o problema da comunicação aparece constantemente em

diversos escritos, às vezes com mais frequência em alguns, como é o caso do Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, texto em que se discute o problema de como se tornar cristão, considerado o ponto crítico de toda a obra

kierkegaardiana pelo motivo de não ser um escrito estético e nem religioso13,

característica que o torna muito importante na conjuntura do pensamento do filósofo

de Copenhague. No entender de Jean Brun, na apresentação do Pos-Scriptum, tal obra faz-se importante para o pensamento do autor por dois motivos principais.

Primeiro, pelo fato dela constituir-se num escrito especulativo mais explícito.

Segundo, porque no encerramento da obra, Kierkegaard se declara como autor de

obras publicadas anteriormente nas quais utilizou diversos pseudônimos. Tal

declaração foi evitada por Kierkegaard durante muito tempo. Há de se acrescentar a

esta lista um terceiro motivo, o qual Jean Brun reconhece, mas não o cita nesta

ordem de importância: a crítica ao fundamento filosófico hegeliano.

Às vezes, o problema aparece com menos frequência como é o caso do livro

Ponto de vista Explicativo da Minha Obra de Escritor, texto que mantém uma relação muito estreita com o anterior pelo fato de também tratar do problema de como

tornar-se cristão, isto é, da relação entre indivíduo e cristianismo, e ao mesmo tempo

da unidade ou do conjunto de toda a produção realizada por Kierkegaard, em que o

leitor é posto frente a frente com suas intenções de autor, ou seja, dando indícios de

como interpretá-lo, no que diz respeito ao duplo caráter de seus escritos: o estético e

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o religioso. ―Se o leitor não prestou suficiente atenção a este duplo caráter, o papel

do autor é demonstrar-lhe a sua realidade com toda a evidência possível‖

(KIERKEGAARD, 1986, p. 29). É como se o filósofo dinamarquês estivesse

profundamente consciente das dificuldades que o leitor encontraria ao entrar em

contato com suas ideias, a ponto de escrever um texto autoexplicativo.

Na minha obra, cheguei a um ponto onde é possível, onde experimento a necessidade e, por conseguinte, considero agora meu dever declarar de uma vez por todas tão francamente, tão abertamente, tão categoricamente quanto possível, em que consiste a produção, o que pretendo ser como autor (KIERKEGAARD, 1986, p. 23).

Entretanto, a comunicação enquanto problema é discutida filosoficamente por

ele mais especificamente na obra “A Dialética da comunicação‖14, cujo título original

é Den ethiske og den ethiske-religieuse Meddelelses Dialethik. Um texto, ou melhor, um manuscrito inacabado encontrado após 11 de novembro de 1855, que fazia parte

de um projeto de curso, composto por doze lições, desenvolvido pelo autor15 sobre o

tema em questão, cuja tese central é: ―Saber que para reconhecer a verdade,

sobretudo, a ética e ética-religiosa é preciso uma situação, assim como também é

preciso uma situação para comunicá-las(KIERKEGAARD, 2004, p. 51). Tanto a

verdade ética como também a ética–religiosa são irredutíveis à ciência, no sentido

de que a seriedade que as permeia é inteiramente outra, pelo motivo delas

relacionarem-se com a personalidade, tornando-se um conteúdo, o qual não pode e

nem deve ser ensinado diretamente já que o indivíduo é entendido por ele, não

como algo dado, acabado em si mesmo, mas como um ser relativo que vem a ser.

14 A primeira tradução de A Dialética da comunicação ética et ética-religiosa foi realizada em italiano

por Cornélio Fabro em 1957. Em francês, por Vergot em 1991. A tradução d‘Else-Marie

Jacquet-Tisseuau só apareceu em 1980.

(29)

Será que podemos encontrar aqui mais um dos traços da ironia kierkegaardiana, em

face do saber acadêmico em que a humanidade tem pautado a sua excelência?

Como não se interrogar sobre as razões filosóficas sobre o questionamento

kierkegaardiano: ―O que é comunicar?‖ ou ―O que significa dizer? Como dizer?‖.

Estas perguntas, diria Kierkegaard, jamais poderiam ser respondidas abstratamente, pois a existência é o lugar no qual qualquer questão deve ser formulada. O exercício correto do pensamento depende da articulação de dois elementos: a retidão de conceito (princípio de inteligibilidade) e a retidão de atmosfera (princípio de existência) (SAMPAIO, 2001, p. 34).

Em seu engajamento filosófico16, que pode não ser um engajamento

político17 à maneira de Maquiavel ou Rousseau e, até mesmo, Marx, - pois o

testemunho da Verdade para ele deve ser alheio à política, mas sempre realizado no

temor de Deus, comprometendo-se com todos, mas sempre individualmente para

que este ou aquele possa distanciar-se da massa, a fim de tornar-se o Indivíduo

(KIERKEGAARD, 2002, p. 114), o filósofo de Copenhague posiciona-se em direta

oposição a cultura de seu tempo, à moda romântica e aos impactos da última

filosofia alemã, ou seja, a época moderna, provocando-a ao afirmar que ela, de

forma desrazoável, não se questionou sobre o problema, ―o que é comunicar?‖ Uma

vez que, considerava sempre e unicamente o que se entende comunicar

diretamente sobre tal objeto. Para tanto, este problema é refletido por Kierkegaard,

16 De acordo com Hèlené Potilis, em seu texto, Kierkegaard (2002b), o autor dinamarquês é um filósofo engajado, entretanto, não à maneira de um docente. Um filósofo engajado é antes de tudo um filósofo. Parece redundante, mas refere-se ao indivíduo que tem escolhido primeiramente pensar e a compreender-se naquilo que se pensa.

17 O engajamento filosófico de Kierkegaard movimenta-se da esfera política para a esfera religiosa.

―Se Kierkegaard algum dia sonhou com a política, levando a sério a preocupação pelo mundo, seu

(30)

que compreende que o processo de comunicação é um dos fenômenos mais

fundamentais da espécie humana, no sentido de que a edificação do sujeito

enquanto Indivíduo está relacionado com a maneira pela qual a comunicação é

utilizada, pois quem comunica dá existência para aquilo que é comunicado e a si

mesmo enquanto existente, caso compreenda a diferença entre o dizer e o ―como

dizer‖.

É a partir de quatro aspectos que a questão é levada adiante: o ―objeto‖, o

―emissor‖, o ―receptor‖ e a ―comunicação‖, elementos essenciais para todo o projeto

das lições, que, de um modo geral, poderíamos denominar aqui de teoria da

comunicação de Kierkegaard ou de filosofia da linguagem, que busca interrogar-se

sobre as condições do discurso, sobretudo, do discurso existencial. Afirma Politis:

―Na definição da dialética encontra-se especialmente colocado em causa o estatuto

do sujeito pensante, vivente de uma parte e sua relação com a objetividade de outra

parte‖ (POLITIS, 2002a, p.17).

Sua análise é desenvolvida em torno daquilo que ele denomina ―confusão da

época moderna‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 35-56), um contexto de escândalos,

hipocrisias, vaidades e ausência de interioridade em que não há a ousadia de

enfrentar o eu verdadeiro. Um dos melhores modos de definir esta época, segundo

Kierkegaard, é afirmar que ela carece de probidade, confiança e de seriedade.

Em O conceito de angústia, o pensador dinamarquês afirma:

(31)

que tão facilmente o alteram e tornam estranho (KIERKEGAARD, 1972a, p. 200).

Kierkegaard, repleto de ironia, não pretende dar um conceito sobre o que

vem a ser a seriedade, assim como uma época obstinada por conceitos e raciocínios

matemáticos, tenta fazer. A seriedade, do seu ponto de vista, é uma conquista, não

é um dado. Por isso, ele refere-se a ela como a expressão mais alta e profunda do

Indivíduo adquirida com originalidade e liberdade, sempre no sentido de ter um

cuidado especial com a ―realidade‖ ou com o ser no sentido autêntico, consciente de

si mesmo, algo que foi banalizado. Pois, mesmo a época moderna tendo cessado a

ingenuidade não significa que tenha alcançado a maturidade necessária para ter

claro aquilo que se compreende e aquilo que não se compreende diante de um

panorama em que, até mesmo, os religiosos e outros líderes estão influenciados por

uma determinada perspectiva filosófica. Nesses termos, afirma Sampaio:

Por isso, é preciso tomar cuidado com os pensadores abstratos que, não contentes de permanecerem no ser puro da abstração, querem ainda que este seja o fim supremo do homem e que um pensamento que culmina na ignorância da ética e no desconhecimento do religioso seja o grau mais elevado do pensamento humano (SAMPAIO, 2001, p. 39).

Ou seja, a época moderna faz de si mesma ilusão da qual não se fala nem

mesmo raramente ao colocar o método, a especulação filosófica acima da

existência. Tal época, necessitando de probidade suprime a personalidade, a

categoria do Indivíduo, o ―eu‖, postando, em seu lugar a categoria da geração ou da

massa: erro fundamental, pois ser Indivíduo é mais necessário e importante, e está

acima de outras categorias.

(32)

Se imaginarmos um homem elevado que passou a vida inteira sem nunca ter recebido nenhuma impressão de si mesmo, entretanto viveu sem cessar de comparações: este é um exemplo de improbidade. E tal é justamente a condição da época atual. A história da geração segue seu curso, é fato, no entanto, cada pessoa tomada isoladamente deveria ter sua impressão própria, primitiva da existência para tornar-se Indivíduo (KIERKEGAARD, 2004 p. 39-40).

O pensador dinamarquês faz questão de evidenciar, que a época atual à qual

ele refere-se é também a época do grande filósofo alemão: Hegel, cujo pensamento

impregnava toda Europa, exercendo uma influência efetiva sobre todo um contexto

com seu método historicista (KIERKEGAARD, 2004, p. 40), que tira do sujeito a

responsabilidade por aquilo que ele é, pois é tudo logicamente realizado. Para

Kierkegaard, o pensador alemão, com tal método, pretendia sistematizar a

existência com objetividade, apresentando ―a verdade sob sua forma menos

verdadeira‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 53), razão pela qual adquiriu um número

considerável de adeptos.

Guiomar de Grammont, intérprete de Kierkegaard, afirma:

Que o autor não se insurge apenas contra Hegel, mas contra toda classe culta, sobretudo aqueles que, em sua época, ‗―acabavam de descobrir Hegel‘‖ e o utilizavam a torto e a direito, apenas para reforçar uma aparência de saber, um status quo do conhecimento. Kierkegaard polemisa com os pretensiosos teólogos que exprimem verdades que não são aquelas da interioridade (GRAMMONT, 2003, p.135-136).

Pois o método de Hegel não permite ao indivíduo uma compreensão efetiva

de si mesmo, justamente pelo fato de ser objetivo e que, portanto, falta a este

método seriedade, uma vez que as verdades existências não podem ser

comunicadas diretamente para não correr o risco de se comunicar ilusões. O

sistema hegeliano é excessivamente acadêmico para Kierkegaard que, de forma

satírica e até mesmo irônica, afirma não ser um docente - ―As críticas de

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estes auferirem um ganho material para ensinar‖ (GRAMMONT, 2003, p. 117) - Ao

tratar-se da comunicação ética-religiosa, de um conteúdo que não pode ser

ensinado ou transmitido de um eu ao outro, por ser conteúdo existencial e não

imediato. (KIERKEGAARD, 2004, p. 64). Pois a ética, assim como a religião, são

categorias da consciência humana as quais só podem ser pensadas em condições

existenciais e não só em condições científicas ou objetivas.

Aos poucos, Kierkegaard, ao progredir em sua análise, introduz elementos

novos que nos conduzem ao entendimento daquilo que ele denomina falta de

probidade da época moderna:

Ela está incontestavelmente mais confortável e mais segura de fazer por toda parte causa comum com o tradicional, de fazer como os outros, de ter as mesmas opiniões, de pensar, falar como os outros e de se colocar com mais rapidez possível para possuir os fins temporais (KIERKEGAARD, 2004, p. 72).

O intuito de Kierkegaard, conforme a citação, é mostrar os equívocos de tal

época: a busca deveria ser por aquilo que é necessário e não pela contingência. E

isto é, ao mesmo tempo, a ausência de primitividade, na medida em que não permite

ao Indivíduo o desenvolvimento de uma impressão própria e verdadeira de sua

existência, mas simplesmente uma impressão confusa e frágil que parece ser

verdadeira. Uma existência primitiva implica na realização de uma revisão daquilo

que há de mais fundamental no Indivíduo, isto é, na interioridade. Nesse sentido,

―não há necessidade de produzir algo absolutamente novo, pois não há nada de

novo sob o sol‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 72), além da escolha de se fazer uma

revisão ou uma reforma da existência interior. A geração moderna emite, na

tentativa de compreender o Indivíduo, uma exigência tirânica que tenta impor-se,

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discurso objetivo, linguagem que não parece ser confusa, argumentos que também

não parecem ser contraditórios e efêmeros, os quais não permitem ao Indivíduo o

aguçamento de sua primitividade. Para nosso autor, tal primitividade foi substituída

pelo ―tradicional‖ – o conhecimento institucionalizado e objetivamente constatável

em que se compreende tudo até certo ponto, artificialmente, mas nada em

profundidade, pois lhe falta apreender e buscar o sentido para a existência. Em

todos os domínios da vida a primitividade foi deixada de lado. Até mesmo o

cristianismo foi relativizado para ser adaptado à massa, o que o transformou em

uma doutrina engenhosa boa para professores, deixando de ser comunicação

existencial (SAMPAIO, 2001, p. 40).

Kierkegaard enfatiza a perda de sentido da existência, elaborando críticas aos

meios de comunicação os quais, do seu ponto de vista, estão imersos em interesses

mercadológicos, ou seja, os meios de comunicação, os jornais, possuem o poder da

difusão, mas estão à mercê dos interesses financeiros dos editores e, que por este

motivo, ao invés de se focarem no Indivíduo, se dirigem para a multidão, pois é mais

lucrativo em termos financeiros, o que faz com que a individualidade seja eliminada

em detrimento da massa. Nesse sentido, a verdadeira literatura é reduzida a

concessões. O mesmo ocorre com os autores que na tentativa de atingir a

coletividade, acabam deixando de lado a individualidade, uma vez que a verdade

não está na multidão, mas sim em tornar-se único. ―Do ponto de vista ético, ético

-religiosos, a multidão é a mentira, e é uma mentira querer agir pela multidão, pelo

número, e querer fazer do número a instância da verdade‖ (KIERKEGAARD, 2002,

p. 134).

(35)

Cada vez mais os homens são prisioneiros da confusão da vida. A época moderna arrasta o terrível fardo do tradicional o conhecimento institucionalizado e objetivamente constatável. É a falta de probidade deste tempo que se parece com o escorbuto e qual é o remédio preconizado? Um só: a verdadeira primitividade. Mas, este trabalho dificílimo de cavar a primitividade, num tempo como o nosso exigirá muitas vítimas. Tem-se necessidade de primitividade, logo do Indivíduo. A tarefa de Kierkegaard, a tarefa do ―pensador primitivo‖, consistiria em reencontrar, em cavar o sentido fundamental da existência a partir da crítica do seu tempo. Ele seria um ―revisor geral‖ (SAMPAIO, 2001 p. 42-43).

Sendo assim, a comunicação não deve jamais ter como base a ordem

presente, não pode estar subordinada aos que possuem os meios para torná-la

geral e abrangente, quando de fato é necessário tornar-se Indivíduo, olhar em

direção à interioridade, avaliando as condições existenciais e suas implicações. Com

esta argumentação fica claro que Kierkegaard despreza a massa18. Pois:

Na sociedade de massa os homens procuram viver comparativamente, cada um procurando ser ―como o outro‖; é uma sociedade na qual as diferenças individuais não contam, os homens comportam-se como fazendo parte de um rebanho. As únicas diferenças que chamam a atenção são aquelas relativas à posse de bens, de cargos, de dinheiro, e honrarias. (SAMPAIO, 2001, p. 87)

Ao criticar a massa, Kierkegaard exalta a humanidade que deve estar

presente de forma individual no ser e de modos diferentes. Pois entende que a

massa, a multidão torna-se alvo de ideologias que legitimam e valorizam somente a

aparência da realidade, o significado mais profundo, a especificidade do real deixa

de ser compreendida. Isto é, a multidão, sobretudo do ponto de vista ético-religioso,

não pode ser uma instância ou um critério que sirva para definir algo como

18 De acordo com Márcio Gimenes de Paula, em seu livro, Indivíduo e comunidade na filosofia de

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verdadeiro uma vez que ela é a mentira e o Indivíduo, considerado isoladamente,

em sua relação edificante com Deus, é a verdade.

Há uma concepção da vida segundo a qual onde está a multidão, está também a verdade; a verdade está na necessidade de ter por ela a multidão. Mas há ainda outra; para ela, por toda parte onde se encontre a multidão, também lá se encontra a mentira, de tal modo que – para levar, por um instante a questão ao extremo – se todos os Indivíduos determinassem, cada um separadamente e em silêncio, a verdade, não obstante, se se reunisse em multidão (que assumiria então um significado decisivo qualquer, pelo voto, pela algazarra, pelo falar), imediatamente se teria a mentira (KIERKEGAARD, 2002, p. 111).

1.1 Dois Modos de Comunicação

Como ―A Dialética da comunicação‖ é dividida em lições, na primeira lição do

texto, nosso autor tenta estabelecer critérios que possam conceituar dois modos de

comunicação: a direta e a indireta.

Para Kierkegaard a via mais adequada para divulgar a verdade subjetiva, que

podemos denominar existenciais é a comunicação indireta, enquanto a direta tem a

função de estabelecer e difundir saberes, pois exige a certeza; a indireta encontra-se

permeada de relações que, quase sempre, são contraditórias e cheias de dúvidas19

(37)

como a própria existência de fato é. Nesse sentido o saber objetivo perde espaço

uma vez que a certeza é impossível ao sujeito em devir, não comunicando verdade

existencial. Diante disso, afirma Sampaio:

A filosofia kierkegaardiana, tentando uma apropriação da existência que é inesgotável, expressa-se através de uma escrita igualmente surpreendente, que se afasta da comunicação direta, definida como aquela que acredita ser possível a adequação entre o discurso e seu objeto... (SAMPAIO, 2001, p. 33).

A forma de comunicação, conforme exposto em Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, serve para diferenciar o pensamento subjetivo do pensamento objetivo, nesse caso é necessário estar atento à dialética da

comunicação, pois o pensamento subjetivo é comunicado indiretamente, já que se

trata de exprimir a interioridade, o existente, é o indivíduo expressando a si mesmo e

existindo no exercício de seu próprio pensamento. O pensamento objetivo não tem

esta finalidade uma vez que ele é indiferente ao sujeito pensante.

A comunicação indireta oferece a forma mais estrita, sobretudo para a comunicação da verdade do ponto de vista ético e, em parte do ponto de vista ético-religioso. Entretanto uma comunicação direta conduz paralelamente à primeira, pode ser igualmente necessária para sustentar isto pelo qual ela é em si mesma como suporte em outro sentido. Inclui isto desde o início de minha atividade literária. Também meus pseudônimos foram sempre acompanhados de uma comunicação direta sobre forma de Discursos edificantes e nesses anos recentes eu quase que exclusivamente recorri a comunicação direta (KIERKEGAARD, 2004, p. 64).

Kierkegaard constantemente tece elogios à forma de comunicação indireta,

entretanto grande parte de suas reflexões e de seus pensamentos são transmitidos

(38)

Com certeza um irônico20, no sentido socrático, ―o que é dado com uma mão é

retirado com a outra‖ (KIERKEGAARD, 1991, p. 56), pois esta é uma estratégia

literária que faz parte de seu método: distanciar-se para em seguida avançar. ―Eu

me proponho em utilizar a comunicação direta para tirar a vossa atenção sobre a

comunicação indireta‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 59). (...) ―Eu usarei então a

comunicação direta quando o objeto de meu discurso portar em grande parte sobre

a comunicação indireta...‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 59) O que explica a criação e o

uso de personagens fictícios ou de pseudônimos21 no conjunto de sua obra bem

como do recurso da ironia como método filosófico.

Kierkegaard, na segunda lição, caracteriza a comunicação de poder, ―mais ou

menos comunicação indireta (KIERKEGAARD, 2004, p. 76), e a comunicação de

saber, ―comunicação direta‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 76), tendo como substrato os

seguintes aspectos: o ―objeto‖, o ―emissor‖, o ―receptor‖ e a ―comunicação‖. A regra

geral estabelecida por ele é a seguinte: ao refletir sobre o objeto que se deve

comunicar, teremos a comunicação de saber, no entanto, ao refletir sobre o aspecto

comunicação, temos, então, a comunicação de poder. Refletir sobre a comunicação

significa dividir de forma equilibrada a reflexão entre emissor e receptor.

Diz Kierkegaard:

20 Kierkegaard discutiu sobre o tema da ironia, em sua dissertação, cujo título, O conceito de ironia

constantemente referido a Sócrates para a obtenção do título de mestre em teologia. O texto é composto por duas partes. Devemos advertir que tal dissertação deve ser lida com muita paciência para não correr o risco de inferir precipitadamente que a as duas partes que compõem o texto tratam de problemas diferentes. De acordo com Álvaro Valls, os examinadores que faziam parte da banca pareciam não compreender bem que foi através da primeira parte da dissertação que a segunda pode ser colocada em prática.

21

―Se, ao construir uma realidade fictícia através do exercício heteronímico, Fernando Pessoa trouxe

(39)

Quando refletindo sobre a comunicação, se faz tratar da reflexão sobre o receptor, então termos a comunicação ética. Maiêutica. O emissor se ausenta para assegurar e contribuir com o dever do outro. A comunicação ética é comunicação de poder, isto é, mais precisamente de dever- poder, entretanto esta comunicação se faz no sentido não do saber, mas do poder. Quando a comunicação ética comporta, além disso, um início de saber, nós teremos uma comunicação ético religiosa, in espécie, uma comunicação cristã. Este momento de saber a distingue da comunicação ética em seu sentido mais estrito, porém, em regra geral, ela se inscreve sob a rubrica de uma comunicação, não de saber, mas de poder, e mais necessariamente sobre dever poder; a comunicação não vai ao sentido do saber, mas do poder: o saber comunicado é nos limites mesmos desta comunicação, um momento transitório (KIERKEGAARD, 2004, p. 75).

Desse modo, o problema da comunicação tratado por Kierkegaard pode ser

denominado como uma espécie de teoria da comunicação, em que são apontados

os problemas da época moderna: falta de probidade, de seriedade, de primitividade,

problemas os quais podem ser traduzidos como confusão do mundo moderno, de

uma filosofia que ignora a existência, que despreza o Indivíduo. Ela se esquece

totalmente da realidade da comunicação, transformar a comunicação de poder e de

dever-poder em comunicação de saber, isto é, o que era preciso comunicar como

poder foi transmitido como saber, provocando a eliminação da questão existencial,

fator preponderante no pensamento de Kierkegaard.

Nosso autor não é um conformista, é um instigador diante de um contexto

profundamente afetado pela categoria estética em que se é cristão

automaticamente, apenas por imaginação e não por via de fato, de uma escolha

pela eternidade. Viver em um país cristão, frequentar a Igreja aos domingos, ouvir os

sermões, amar a multidão22 que está à sua volta e, até mesmo, ao morrer e ser

enterrado como cristão pela Igreja (KIERKEGAARD, 2002), não é o suficiente, do

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ponto de vista de Kierkegaard, para denominar alguém como cristão, a não ser de

forma ilusória, pois, nesse sentido, os fundamentos do cristianismo pregados que

deveriam ser vividos pelo indivíduo encontram-se falsificados. Isto é, não se é

cristão pelo fato de a religião oficial do seu país ser o cristianismo. Pois ser cristão

não é somente uma questão geográfica. Aliás, que tipo de relação existe entre

cristianismo e Estado? Para Kierkegaard: nenhuma. Pois, segundo ele, o Estado, ao

invés de viver pelo cristianismo, vivia do cristianismo, tirando proveito dos ritos e

corroborando com a impossibilidade do cristianismo em seu sentido primitivo, tirando

a importância do seu fator histórico.

Com tal crítica, o pensador dinamarquês inaugura a polêmica contra a religião

oficial de seu país23, posicionando-se diante de uma cultura em que se é cristão

apenas por nascimento e rotina. O cristianismo é um modo de vida que reside na

subjetividade e deve se efetivar através da escolha do Indivíduo, resultado do

desejo24 que orienta a consciência a caminho de uma vida interior com uma

finalidade mais elevada. Tal postura não ocorre naturalmente, pois se trata de um

processo.

Como se opor a este modo de vida em que se está imerso no engano e o

cristianismo é adotado como uma espécie de tranquilizante, massificador, quando,

na verdade, deveria ser inquietante e instigador? Em O Instante, Kierkegaard reforça

o seguinte: ―O que sustenta a ilusão de que existe um povo cristão é em parte a

generalizada apatia e indolência humana que prefere não sair da rotina‖

23 Para dar maior amplitude e difusão aos seus objetivos, Kierkegaard lançou a revista O Instante no final de 1854 e início de 1855. Os artigos eram escritos por ele e tinham a finalidade de criticar a Igreja oficial da Dinamarca e, sobretudo, aqueles que a utilizavam proclamando-se cristãos com a intenção de autopromover-se, buscando a ―lógica do conforto‖.

24 Sobre esta questão do desejo pode-se consultar ―O desejo nos estádios d existência: ético, estético

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(KIERKEGAARD, 2012, p. 58). Isto é, aceitar tal modo de vida conduzido pelo

conformismo traz uma felicidade apenas aparente para grande maioria que não

sabem os motivos pelos quais aceitam aquilo que está pré-estabelecido, no entanto,

porque não pensar que a realidade possa ser diferente e desejar um modo de vida

que talvez não seja o mais tranquilo e confortável, porém mais verdadeiro? Tal

tarefa cabe somente para aquele que se entende como indivíduo e reconhece o que

rejeitar em uma doutrina e, sobretudo, compreende os motivos que o levam a tomar

certas decisões. Isto nos encaminha aos conceitos de cristicismo o qual consiste em

imitação, de forma gratuita e amorosa, de um exemplo que nos foi deixado, nesse

caso, Jesus Cristo. E ao conceito de cristandade, que, no pensamento de

Kierkegaard, podemos chamá-lo de cristianismo rotina.

O que seria, primeiramente, a cristandade, ou (como ele também começa a dizer) ‗―a assim chamada cristandade‘‖? Seria um grupo humano de características modernas, superficial, inautêntico, que não leva mais a sério o Cristianismo enquanto comunicação de existência, ou enquanto mensagem de vida plena, prefere adotá-lo de maneira rotineira, como doutrina objetiva, e uma mentalidade triunfal e acomodada agarra-se à exterioridade do rito e da doutrina, abandonando totalmente a paixão e a maior das paixões, que é a fé. Dominado pela rotina, ou, como é dito n‟As obras do amor, por este inimigo insidioso do amor que é o ‗―hábito‘‖, o tipo médio da cristantade não vive segundo o amor cristão, que é sempre, em todas as circunstâncias, amor ao próximo (VALLS, 2012, p. 79 -80).

O recurso do pensador dinamarquês frente a este problema da cristandade,

isto é, da banalização do verdadeiro cristianismo, é a comunicação indireta que se

desdobra em duas categorias necessárias: a ironia e a pseudonímia.

Kierkegaard nunca ministrou nenhuma disciplina acadêmica, como já foi dito

anteriormente, no entanto, é como pedagogo que ele desenvolve sua comunicação

de reflexão, ou comunicação existencial, isto é, o método indireto, uma vez que a

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verdadeiro significado de ser Indivíduo ou ser cristão, o qual não pode ser dado

objetivamente como tentou fazer a época moderna de forma costumeira.

Se a verdade é subjetividade e deve ser reapropriada por cada indivíduo, a comunicação dela só pode ocorrer, para o pensamento kierkegaardiano, de maneira indireta. Com efeito, a comunicação do crístico se dá por meio do testemunho, isto é, de sofrer pela verdade que se possui subjetivamente. O ataque kierkegaardiano à cristandade é ambíguo, pois ele é feito ora se afastando do ser cristão, ora de dentro das estruturas do cristianismo. Trata-se de uma estratégia socrática e irônica de confundir o adversário, mostrando a vacuidade de suas afirmações e, ao mesmo tempo, indagando sobre o que significa o cristianismo (PAULA, 2009a, p.28).

Esta passagem de Márcio Gimenes de Paula é essencial para enfatizar o

quanto Kierkegaard opera por caminhos indiretos, e pode-se dizer que ela contém

os elementos daquilo que seria a estratégia do pensador dinamarquês de ―como

dizer o existencial‖ tomado em sua situação concreta, em sua singularidade, um

modo de ser que é irredutível à universalidade do pensamento sistemático. Diante

disso, a comunicação existencial de Kierkegaard é uma reação ao contexto filosófico

de sua época, que impregnado pelo Sistema hegeliano suprime a categoria do

Indivíduo (den Enkelte) que, ao mesmo tempo, é a categoria cristã decisiva a qual

entendida como verdade deve ―opor-se ao fantástico, ao abstrato, ao impessoal...‖

(43)

2 A IRONIA

De um modo geral, a ironia é uma das atitudes mais políticas e filosóficas

realizadas por Kierkegaard. Portanto, convém questionar em que sentido é

necessário compreender a utilização estratégica da ironia no interior de seu

pensamento.

O termo ironia25 tem a sua origem no latim e também do grego eironéia26 que

quer dizer ―fingir ignorância, dissimulação‖, espécie de cinismo que pode ser

considerado sinônimo de sarcasmo, zombaria. Atualmente tal palavra possui um

sentido moderno que não é muito diferente do seu significado originário e está

dicionarizado da seguinte maneira: ―1. Modo de exprimir-se em que se diz o

contrário do que se pensa. 2. Contraste fortuito que parece um escárnio.‖ Como se

pode perceber, até mesmo as palavras possuem a sua história e, nesse caso, o

contexto é de fundamental importância.

O primeiro filósofo a utilizar a ironia não apenas como figura de linguagem ou

como um instrumento de retórica foi o grego ateniense Sócrates (469 a.C - 399 a.C),

em seu método de filosofar desenvolvido por si mesmo e denominado diálogo, em

que a ironia era uma das vertentes, além da maiêutica, para conduzir o interlocutor a

25 Na medida em que é essencial à ironia ter um exterior oposto ao interior, poderia parecer que ela se identifica com a hipocrisia. Em dinamarquês, às vezes se traduziu a ironia por Skalkagtighed

(picardia, pirraça, travessura, sem-vergonhice), e a um hipócrita se costuma chamar oienskalk

(impostor, malicioso).

Referências

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