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1 O PROBLEMA DA COMUNICAÇÃO

1.1 Dois Modos de Comunicação

Como ―A Dialética da comunicação‖ é dividida em lições, na primeira lição do texto, nosso autor tenta estabelecer critérios que possam conceituar dois modos de comunicação: a direta e a indireta.

Para Kierkegaard a via mais adequada para divulgar a verdade subjetiva, que podemos denominar existenciais é a comunicação indireta, enquanto a direta tem a função de estabelecer e difundir saberes, pois exige a certeza; a indireta encontra-se permeada de relações que, quase sempre, são contraditórias e cheias de dúvidas19

19 Guiomar de Grammont, em seu livro, Don Juan, Fausto e o Judeu errante, relaciona a dúvida com

a figura de Fausto, personagem imortalizado por Goethe, da mitologia medieval, é o paradigma do estádio estético que representa a categoria da dúvida. Essa figura também exemplifica a sensualidade e o desespero, junto às figuras de Don Juan e do Judeu errante, respectivamente. Fausto é um cético, mas vive esse ceticismo no âmago da angústia, porque compreende o que a fé representa para os homens em termos de paz e segurança. Como esteta, Fausto é caracterizado pela dúvida, como vive na ideia, é tão esfomeado do pão cotidiano da alegria como do alimento do espírito.

como a própria existência de fato é. Nesse sentido o saber objetivo perde espaço uma vez que a certeza é impossível ao sujeito em devir, não comunicando verdade existencial. Diante disso, afirma Sampaio:

A filosofia kierkegaardiana, tentando uma apropriação da existência que é inesgotável, expressa-se através de uma escrita igualmente surpreendente, que se afasta da comunicação direta, definida como aquela que acredita ser possível a adequação entre o discurso e seu objeto... (SAMPAIO, 2001, p. 33).

A forma de comunicação, conforme exposto em Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, serve para diferenciar o pensamento subjetivo do pensamento objetivo, nesse caso é necessário estar atento à dialética da comunicação, pois o pensamento subjetivo é comunicado indiretamente, já que se trata de exprimir a interioridade, o existente, é o indivíduo expressando a si mesmo e existindo no exercício de seu próprio pensamento. O pensamento objetivo não tem esta finalidade uma vez que ele é indiferente ao sujeito pensante.

A comunicação indireta oferece a forma mais estrita, sobretudo para a comunicação da verdade do ponto de vista ético e, em parte do ponto de vista ético-religioso. Entretanto uma comunicação direta conduz paralelamente à primeira, pode ser igualmente necessária para sustentar isto pelo qual ela é em si mesma como suporte em outro sentido. Inclui isto desde o início de minha atividade literária. Também meus pseudônimos foram sempre acompanhados de uma comunicação direta sobre forma de Discursos edificantes e nesses anos recentes eu quase que exclusivamente recorri a comunicação direta (KIERKEGAARD, 2004, p. 64).

Kierkegaard constantemente tece elogios à forma de comunicação indireta, entretanto grande parte de suas reflexões e de seus pensamentos são transmitidos aos leitores por meio da comunicação direta, inclusive o próprio texto ―A Dialética da comunicação‖. Poderíamos questionar se esta postura faz dele um filósofo incoerente. A lógica de seus escritos nos permite afirmar categoricamente que não.

Com certeza um irônico20, no sentido socrático, ―o que é dado com uma mão é retirado com a outra‖ (KIERKEGAARD, 1991, p. 56), pois esta é uma estratégia literária que faz parte de seu método: distanciar-se para em seguida avançar. ―Eu me proponho em utilizar a comunicação direta para tirar a vossa atenção sobre a comunicação indireta‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 59). (...) ―Eu usarei então a comunicação direta quando o objeto de meu discurso portar em grande parte sobre a comunicação indireta...‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 59) O que explica a criação e o uso de personagens fictícios ou de pseudônimos21 no conjunto de sua obra bem como do recurso da ironia como método filosófico.

Kierkegaard, na segunda lição, caracteriza a comunicação de poder, ―mais ou menos comunicação indireta‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 76), e a comunicação de saber, ―comunicação direta‖ (KIERKEGAARD, 2004, p. 76), tendo como substrato os seguintes aspectos: o ―objeto‖, o ―emissor‖, o ―receptor‖ e a ―comunicação‖. A regra geral estabelecida por ele é a seguinte: ao refletir sobre o objeto que se deve comunicar, teremos a comunicação de saber, no entanto, ao refletir sobre o aspecto comunicação, temos, então, a comunicação de poder. Refletir sobre a comunicação significa dividir de forma equilibrada a reflexão entre emissor e receptor.

Diz Kierkegaard:

20 Kierkegaard discutiu sobre o tema da ironia, em sua dissertação, cujo título, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates para a obtenção do título de mestre em teologia. O texto é

composto por duas partes. Devemos advertir que tal dissertação deve ser lida com muita paciência para não correr o risco de inferir precipitadamente que a as duas partes que compõem o texto tratam de problemas diferentes. De acordo com Álvaro Valls, os examinadores que faziam parte da banca pareciam não compreender bem que foi através da primeira parte da dissertação que a segunda pode ser colocada em prática.

21

―Se, ao construir uma realidade fictícia através do exercício heteronímico, Fernando Pessoa trouxe para o contexto da modernidade do século XX uma experiência radical no que tange à questão da subjetividade, não se pode dizer, entretanto, que o exercício ficcional das identidades múltiplas não tenha sido praticado anteriormente, de uma forma quase tão intensa quanto a que marcou o universo pessoano. Basta um recuo a primeira metade do século XIX para que encontremos na obra de Søren

Kierkegaard uma experiência bem próxima à do poeta português, visto ter o filósofo escritor dinamarquês criado para seus textos, vários autores fictícios, compondo através deles uma obra múltipla e matizada, avessa à ideia de sistema e atravessada por uma lógica paradoxal.‖ (Don Juan, Fausto e o Judeo errante, p. 13.)

Quando refletindo sobre a comunicação, se faz tratar da reflexão sobre o receptor, então termos a comunicação ética. Maiêutica. O emissor se ausenta para assegurar e contribuir com o dever do outro. A comunicação ética é comunicação de poder, isto é, mais precisamente de dever- poder, entretanto esta comunicação se faz no sentido não do saber, mas do poder. Quando a comunicação ética comporta, além disso, um início de saber, nós teremos uma comunicação ético – religiosa, in espécie, uma comunicação cristã. Este momento de saber a distingue da comunicação ética em seu sentido mais estrito, porém, em regra geral, ela se inscreve sob a rubrica de uma comunicação, não de saber, mas de poder, e mais necessariamente sobre dever – poder; a comunicação não vai ao sentido do saber, mas do poder: o saber comunicado é nos limites mesmos desta comunicação, um momento transitório (KIERKEGAARD, 2004, p. 75).

Desse modo, o problema da comunicação tratado por Kierkegaard pode ser denominado como uma espécie de teoria da comunicação, em que são apontados os problemas da época moderna: falta de probidade, de seriedade, de primitividade, problemas os quais podem ser traduzidos como confusão do mundo moderno, de uma filosofia que ignora a existência, que despreza o Indivíduo. Ela se esquece totalmente da realidade da comunicação, transformar a comunicação de poder e de dever-poder em comunicação de saber, isto é, o que era preciso comunicar como poder foi transmitido como saber, provocando a eliminação da questão existencial, fator preponderante no pensamento de Kierkegaard.

Nosso autor não é um conformista, é um instigador diante de um contexto profundamente afetado pela categoria estética em que se é cristão automaticamente, apenas por imaginação e não por via de fato, de uma escolha pela eternidade. Viver em um país cristão, frequentar a Igreja aos domingos, ouvir os sermões, amar a multidão22 que está à sua volta e, até mesmo, ao morrer e ser enterrado como cristão pela Igreja (KIERKEGAARD, 2002), não é o suficiente, do

22 Para Kierkegaard, em Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor, o cristianismo pede-nos

para amar o nosso próximo, isto é, cada homem, não nos manda amar a multidão, caminho que conduz sempre à conquista do poder temporal e a todas as baixezas da lisonja e do compromisso.

ponto de vista de Kierkegaard, para denominar alguém como cristão, a não ser de forma ilusória, pois, nesse sentido, os fundamentos do cristianismo pregados que deveriam ser vividos pelo indivíduo encontram-se falsificados. Isto é, não se é cristão pelo fato de a religião oficial do seu país ser o cristianismo. Pois ser cristão não é somente uma questão geográfica. Aliás, que tipo de relação existe entre cristianismo e Estado? Para Kierkegaard: nenhuma. Pois, segundo ele, o Estado, ao invés de viver pelo cristianismo, vivia do cristianismo, tirando proveito dos ritos e corroborando com a impossibilidade do cristianismo em seu sentido primitivo, tirando a importância do seu fator histórico.

Com tal crítica, o pensador dinamarquês inaugura a polêmica contra a religião oficial de seu país23, posicionando-se diante de uma cultura em que se é cristão apenas por nascimento e rotina. O cristianismo é um modo de vida que reside na subjetividade e deve se efetivar através da escolha do Indivíduo, resultado do desejo24 que orienta a consciência a caminho de uma vida interior com uma finalidade mais elevada. Tal postura não ocorre naturalmente, pois se trata de um processo.

Como se opor a este modo de vida em que se está imerso no engano e o cristianismo é adotado como uma espécie de tranquilizante, massificador, quando, na verdade, deveria ser inquietante e instigador? Em O Instante, Kierkegaard reforça o seguinte: ―O que sustenta a ilusão de que existe um povo cristão é em parte a generalizada apatia e indolência humana que prefere não sair da rotina‖

23 Para dar maior amplitude e difusão aos seus objetivos, Kierkegaard lançou a revista O Instante no

final de 1854 e início de 1855. Os artigos eram escritos por ele e tinham a finalidade de criticar a Igreja oficial da Dinamarca e, sobretudo, aqueles que a utilizavam proclamando-se cristãos com a intenção de autopromover-se, buscando a ―lógica do conforto‖.

24 Sobre esta questão do desejo pode-se consultar ―O desejo nos estádios d existência: ético, estético e religioso‖ de Silvia Saviano Sampaio, um dos artigos que compõem o livro organizado por Álvaro Valls e Jasson da Silva Martins, Kierkegaard no nosso tempo (2010).

(KIERKEGAARD, 2012, p. 58). Isto é, aceitar tal modo de vida conduzido pelo conformismo traz uma felicidade apenas aparente para grande maioria que não sabem os motivos pelos quais aceitam aquilo que está pré-estabelecido, no entanto, porque não pensar que a realidade possa ser diferente e desejar um modo de vida que talvez não seja o mais tranquilo e confortável, porém mais verdadeiro? Tal tarefa cabe somente para aquele que se entende como indivíduo e reconhece o que rejeitar em uma doutrina e, sobretudo, compreende os motivos que o levam a tomar certas decisões. Isto nos encaminha aos conceitos de cristicismo o qual consiste em imitação, de forma gratuita e amorosa, de um exemplo que nos foi deixado, nesse caso, Jesus Cristo. E ao conceito de cristandade, que, no pensamento de Kierkegaard, podemos chamá-lo de cristianismo – rotina.

O que seria, primeiramente, a cristandade, ou (como ele também começa a dizer) ‗―a assim chamada cristandade‘‖? Seria um grupo humano de características modernas, superficial, inautêntico, que não leva mais a sério o Cristianismo enquanto comunicação de existência, ou enquanto mensagem de vida plena, prefere adotá-lo de maneira rotineira, como doutrina objetiva, e uma mentalidade triunfal e acomodada agarra-se à exterioridade do rito e da doutrina, abandonando totalmente a paixão e a maior das paixões, que é a fé. Dominado pela rotina, ou, como é dito n‟As obras do amor, por este

inimigo insidioso do amor que é o ‗―hábito‘‖, o tipo médio da cristantade não vive segundo o amor cristão, que é sempre, em todas as circunstâncias, amor ao próximo (VALLS, 2012, p. 79 -80). O recurso do pensador dinamarquês frente a este problema da cristandade, isto é, da banalização do verdadeiro cristianismo, é a comunicação indireta que se desdobra em duas categorias necessárias: a ironia e a pseudonímia.

Kierkegaard nunca ministrou nenhuma disciplina acadêmica, como já foi dito anteriormente, no entanto, é como pedagogo que ele desenvolve sua comunicação de reflexão, ou comunicação existencial, isto é, o método indireto, uma vez que a verdade existencial é subjetiva em seu sentido edificante como reapropriação do

verdadeiro significado de ser Indivíduo ou ser cristão, o qual não pode ser dado objetivamente como tentou fazer a época moderna de forma costumeira.

Se a verdade é subjetividade e deve ser reapropriada por cada indivíduo, a comunicação dela só pode ocorrer, para o pensamento kierkegaardiano, de maneira indireta. Com efeito, a comunicação do crístico se dá por meio do testemunho, isto é, de sofrer pela verdade que se possui subjetivamente. O ataque kierkegaardiano à cristandade é ambíguo, pois ele é feito ora se afastando do ser cristão, ora de dentro das estruturas do cristianismo. Trata-se de uma estratégia socrática e irônica de confundir o adversário, mostrando a vacuidade de suas afirmações e, ao mesmo tempo, indagando sobre o que significa o cristianismo (PAULA, 2009a, p.28).

Esta passagem de Márcio Gimenes de Paula é essencial para enfatizar o quanto Kierkegaard opera por caminhos indiretos, e pode-se dizer que ela contém os elementos daquilo que seria a estratégia do pensador dinamarquês de ―como dizer o existencial‖ tomado em sua situação concreta, em sua singularidade, um modo de ser que é irredutível à universalidade do pensamento sistemático. Diante disso, a comunicação existencial de Kierkegaard é uma reação ao contexto filosófico de sua época, que impregnado pelo Sistema hegeliano suprime a categoria do Indivíduo (den Enkelte) que, ao mesmo tempo, é a categoria cristã decisiva a qual entendida como verdade deve ―opor-se ao fantástico, ao abstrato, ao impessoal...‖ (KIERKEGAARD, 2002, p. 116).

2 A IRONIA

De um modo geral, a ironia é uma das atitudes mais políticas e filosóficas realizadas por Kierkegaard. Portanto, convém questionar em que sentido é necessário compreender a utilização estratégica da ironia no interior de seu pensamento.

O termo ironia25 tem a sua origem no latim e também do grego eironéia26 que quer dizer ―fingir ignorância, dissimulação‖, espécie de cinismo que pode ser considerado sinônimo de sarcasmo, zombaria. Atualmente tal palavra possui um sentido moderno que não é muito diferente do seu significado originário e está dicionarizado da seguinte maneira: ―1. Modo de exprimir-se em que se diz o contrário do que se pensa. 2. Contraste fortuito que parece um escárnio.‖ Como se pode perceber, até mesmo as palavras possuem a sua história e, nesse caso, o contexto é de fundamental importância.

O primeiro filósofo a utilizar a ironia não apenas como figura de linguagem ou como um instrumento de retórica foi o grego ateniense Sócrates (469 a.C - 399 a.C), em seu método de filosofar desenvolvido por si mesmo e denominado diálogo, em que a ironia era uma das vertentes, além da maiêutica, para conduzir o interlocutor a

25 Na medida em que é essencial à ironia ter um exterior oposto ao interior, poderia parecer que ela

se identifica com a hipocrisia. Em dinamarquês, às vezes se traduziu a ironia por Skalkagtighed (picardia, pirraça, travessura, sem-vergonhice), e a um hipócrita se costuma chamar oienskalk (impostor, malicioso).

26 Oswaldo Giacóia Junior, na apresentação do livro de Álvaro Valls, Kierkegaard, cá entre nós,

afirma que: Mesmo em nossos dias, ainda não foi estabelecida para a palavra ironia (Eipwveía) uma etimologia clara e definida; desde a antiguidade grega clássica, o termo conserva, no entanto, uma acepção de matriz predominantemente ambivalente, tanto positiva, quanto negativa, sendo o irônico (Eipwv) uma pessoa astuta, solerte e matreira, que dispõe armadilhas, ao disfarçar-se menor do que efetivamente é – procedimento com o qual diferencia-se tanto da fútil soberba daqueles que apresentam falsamente como personagens elevadas, quando realmente não o são, quanto dos veneráveis caracteres circunspectos e decentes, os bons e os justos, na verdade tumbas caiadas.

alcançar o conhecimento verdadeiro de sua interioridade27, na medida em que obtivesse consciência da própria ignorância por meio do exame reflexivo de si mesmo.

De modo inédito e singular, o problema é retomado por Kierkegaard que encontra na concepção socrática uma abordagem fecunda de problematização, a ponto de escrever uma dissertação de mestrado sobre a ironia do pensador de Atenas e a utilizá-la em seu itinerário filosófico.

Afirma Kierkegaard sobre Sócrates:

Ele nada deixou a partir do que uma época posterior pudesse julgá- lo; sim, mesmo que eu me imaginasse contemporâneo dele, ainda seria difícil de conceber o que ele foi. Pois ele pertencia àquela espécie de homens diante dos quais ninguém pode dar-se por satisfeito somente com o exterior como tal. O exterior indicava constantemente algo de diferente e de oposto. Não se dava com ele o caso daquele filósofo que, ao explanar suas intuições, seu discurso era a própria presença da ideia. Muito pelo contrário: o que Sócrates dizia significava algo de diferente (KIERKEGAARD, 1991, p. 25). ―O conceito de ironia fez sua entrada no mundo com Sócrates‖ (KIERKEGAARD, 1991, p. 23). É exatamente com esta afirmação que o escritor dinamarquês manteve uma relação fecunda com o problema da ironia, refletindo sobre ela na dissertação, defendida na Universidade de Copenhague em 1841, para a obtenção do título de mestre em teologia, cujo título é, ―O conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates.‖ De um modo Geral, tal texto segue um esquema didático que pode facilitar a compreensão do tema. A dissertação é composta por um emaranhado número de teses, quinze no total, organizadas em duas partes.

27 A interioridade é uma categoria cristã, no pensamento de Kierkegaard, no entanto a interioridade

socrática não é a cristã, pois Sócrates não chega a atingir o estádio religioso da existência (discutiremos sobre tal estádio ao tratarmos das possibilidades existenciais em um capítulo específico). Para Kierkegaard não é possível que o ser humano atinja a verdade por suas próprias forças, pois ela se encontra no Inteiramente Outro.

Na primeira parte, analisa-se ―O ponto de vista de Sócrates concebido como ironia‖, na segunda parte, Kierkegaard, após ter se apropriado da irônica estratégia socrática, tenta combater a ironia dos pensadores românticos, para ele inconsequentes, no sentido de desenvolver uma especulação sem levar em conta a existência, como Solger, Schelegel, Tieck, além de mediar o debate entre tais pensadores e o filósofo Hegel.

Em um determinado sentido, podemos afirmar que em Sócrates, a ironia é um método, já em Kierkegaard, a ironia é um recurso a serviço da comunicação indireta que, por sua vez, também se faz método, ou caminho, em que o pensador de Copenhague percorre com a finalidade de despertar no indivíduo a reflexão sobre sua condição existencial. Tal tarefa não teria sido possível ao nosso pensador sem o auxílio socrático.

É perceptível, no conjunto da obra de Kierkegaard, que a questão da ironia não é algo contingente, pelo contrário, é uma das grandes questões centrais do seu pensamento que se faz presente do início ao fim, pois é pela ironia que ele inicia sua atividade filosófica e de escritor. Valls, ao traduzir a dissertação sobre a ironia do dinamarquês para o português, afirma: ―O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates contém a verdadeira plataforma, o programa em seus aspectos temáticos e metodológicos que se desenvolveram ao longo da produção kierkegaardiana.‖ (1991, p.10).

Tentar compreender Kierkegaard, portanto, significa necessariamente começar compreendendo o que de fato é a ironia28 para ele. ―Pois, que a tradição tenha vinculado à existência de Sócrates a palavra ironia, isto qualquer um sabe,

28 Valls em Kierkegaard, cá entre nós, afirma que: ―Já podemos iniciar ao menos uma leitura de

Kierkegaard. E como diria Vergote, que se comece pela Dissertação sobre a ironia. Ali se encontra o método, com as técnicas da maiêutica e os artifícios do parteiro, pois, Kierkegaard está convencido de não ter uma doutrina para ensinar. Recusa-se à comunicação professoral.‖ (2012, p. 114).

mas daí não se segue, de maneira alguma que todo mundo saiba o que é a ironia (KIERKEGAARD, 1991, p. 24). Nesse sentido, a questão que se coloca é a seguinte: Não seria a ironia uma forma de comunicação existencial que contrapõe o interior ao exterior?

Assim, ocorre no discurso retórico29 uma figura que traz o nome de

ironia; e cuja característica está em dizer o contrário do que se pensa. Aí já temos uma definição que percorre toda ironia, ou seja, que o fenômeno não e a essência, e sim o contrário da essência. Na medida em que eu falo, o pensamento, o sentido mental, é a essência, a palavra é o fenômeno (KIERKEGAARD, 1991, p. 215). No entanto, é significativo esclarecer que não é só de oposições que a ironia é construída, pois às vezes o tom da voz se torna suficiente para ironizar uma pessoa, uma ideia ou até mesmo uma situação. A esta certeza, Kierkegaard não se furtou. Nas palavras de Politis, interpretando Kierkegaard, que também dá ênfase à ironia como questão central de seu pensamento, percebe-se que a ironia do pensador dinamarquês é um modo de vida o qual perpetua a relação entre o ser ideal e o ser empírico. Portanto: