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4 A EXISTÊNCIA E SUAS POSSIBILIDADES

4.2 O Estádio Ético

O homem começa a ter uma história quando escolhe escolher entre o bem e o mal, submeter-se a norma geral, universal. No estádio ético, escolhendo o indivíduo não se torna outro, mas si mesmo. É um movimento de atualização de si mesmo, ―é a mesma vida, mas segundo outro modo, o da realidade‖. No entanto, a escolha no estádio ético não é uma criação, mas um devir (SAMPAIO, 2001, p. 157).

Ao lermos a obra de Kierkegaard e discutirmos sobre a possibilidade de vida estética, e com base nas palavras de Silvia Saviano Sampaio, acima, enfatizando que a escolha ética é condição para que o homem possa ser si mesmo, é possível notar o teor da comunicação existencial do pensador dinamarquês ao nos colocarmos a seguinte questão: O que é ser feliz e realizado na vida imediata?

O esteta representa o homem da massa para quem a vida é boa e prazerosa. É cômodo ser feliz nas circunstâncias em que se encontra, em que o sentido da vida é construído no mundo exterior a si mesmo, isto é, no entusiasmo da imediatidade. Para ele ―a vida imediata é felicidade, pois nela não se permite a contradição‖ (KIERKEGAARD, 1949, p. 347). O que significa que ele não é capaz de transformar- se pela própria reflexão, pois carece de ―eu‖, o modo de vida em que está imerso, uma vez que o ingrediente fundamental, a vivência do sentimento de sofrimento, ―o pathos estético59 encontra-se distante da existência ou está presente nela somente de forma ilusória‖, como afirma Kierkegaard (1949, p. 34).

59 O termo pathos na obra de Kierkegaard, além de ser compreendido como desejo, afeto e paixão,

pode significar uma vivência complexa, lenta e profunda sobre algo, nesse caso a possibilidade de vida estética. Conforme Jonh W. Elrod, em Paixão, Reflexão e Individualidade em Kierkegaard, afirma que no estádio estético da existência, a paixão fornece (desencadeia) o impulso para a existência, é a forma inicial da consciência de si mesmo do indivíduo em sua concretude. A paixão é também a entrada no estádio ético da existência, na medida em que fornece alternativas ou possibilidades de escolha. No estádio religioso, a paixão religiosa é a fé, a mais alta expressão da subjetividade, questão a qual discutiremos posteriormente.

A consciência do homem, através do pathos existencial60 - que se relaciona com a interioridade -, das contradições, das ilusões, instabilidades, incertezas, dispersão e diversidade, pode provocar o vazio, o tédio, o sofrimento, encaminhando-o, como já afirmamos, à angústia e ao desespero, pois não há a liberdade na vida estética, apenas a necessidade de uma realização que não o conduz ao tornar-se si mesmo.

Conforme Sampaio escreve:

Quando o homem vive sobre o plano estético, sua evolução se opera de acordo com a necessidade e não segundo a liberdade; nenhuma metamorfose acontece no homem, nenhum movimento infinito. A alma deste indivíduo é semelhante a de um terreno no qual todos os tipos de plantas podem crescer. Vemos assim, o sentido da cultura estética: ela é semelhante à da planta, o indivíduo torna-se o que ele é imediatamente. Quanto mais a pessoa está difusa no sentimento, mais também o indivíduo existe no momento (SAMPAIO, 2001, 163). Nestes termos, a felicidade e a realização da vida imediata são superficiais. O irônico, ao notar tal superficialidade pode permanecer como esteta, no instante, buscando constantemente o novo como os sedutores românticos, Johannes e Don Giovanni, ou pode decidir escolher ou dar o salto para a possibilidade de existência ética, aquela em que o indivíduo, escolhendo, não se torna outro, mas sim si mesmo.

O estádio ético (det Ethiske) constitui-se na relação dialética entre decisão individual e norma geral. Colocado como ser imediato, sensível e psíquico, o Indivíduo é o Indivíduo que tem seu no geral; sua tarefa ética consiste em se exprimir constantemente no geral, em abandonar seu caráter geral individual para tornar-se (SAMPAIO,2001, 157).

60 Hélène Politis escreve, em Le vocabulaire de Kierkegaard (2002a), que o pensador dinamarquês

tem se esforçado para demonstrar que a dimensão pathética está presente na vida humana como também no funcionamento do pensamento. Ele distingue várias formas de pathético, cada uma delas com uma função diferente. O esteticamente pathético não é o existencialmente pathético. O pathos estético se exprime na palavra em que o indivíduo se ausência de si mesmo para se perder na ideia, assim como o Sedutor do Diário. Já o pathos existencial, por sua vez, surgi graça ao fato de que a ideia se relaciona com a existência do indivíduo.

O modo de vida ético, para Kierkegaard, é a dimensão da liberdade, o que faz com que a característica necessária de tal modo de existir seja a existência da escolha orientada pela liberdade. Porém não se trata de qualquer escolha, como aquelas próprias do modo de vida estético em que se escolhe tudo e nada ao mesmo tempo ou escolhas momentâneas com finalidades egocêntricas, que segundo o ponto de vista de nosso autor, podem não ser, de fato, escolhas, pelo motivo de serem imediatas, pois o esteta escolhe para o instante, para o presente. Mas trata-se da escolha que deve ser exercida com seriedade, inserida no contexto social, em que se considera os padrões e as regras morais que tentam organizar o convívio coletivo, uma vez que o indivíduo ético, é aquele que, assim como explicitado por Johannes de Silentio em Temor e Tremor:

Tomado como ser imediato, sensível e psíquico, o Indivíduo é o Indivíduo que tem o seu telos no geral; a sua tarefa ética consiste em exprimir-se constantemente, em despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade (KIERKEGAARD, 1972, p. 146).

Enquanto dimensão da liberdade, a vida ética é o estádio da escolha, ou seja, do isto ou daquilo sem furtar-se ao desafio concreto da existência em que o indivíduo escolhe reflexivamente ser um eu ideal que se realiza no geral61. Trata-se da escolha de si mesmo, como assegura o Juiz Wilhelm:

A escolha efetua, por sua vez, dois movimentos dialéticos: o objeto possível da escolha não é, advém da escolha; esse objeto é, senão a escolha não seria possível. Se, com efeito, a coisa que eu escolhi

61 Silvia Saviano Sampaio (2001), explica que: O indivíduo tem sua teleologia em si mesmo, seu eu é

o fim para o qual ele tende. Porém, este eu não é uma pura abstração, mas absolutamente concreto. Ele não pode se comportar de modo negativo em relação ao meio, caso contrário, seu eu torna-se se apenas uma abstração. Seu eu deve abrir-se em toda sua concreção, deve intervir ativamente no mundo. Desse modo, o movimento parte de si mesmo para atravessar o mundo e voltar a si mesmo. É um movimento real porque é um ato de liberdade e é ao mesmo tempo uma teleologia imanente.

não fosse, mas surgisse absolutamente da escolha, eu não a escolheria, eu a criaria; mas, eu não crio a mim mesmo, eu escolho a mim mesmo. Assim, do mesmo modo que a natureza é criada do nada, do mesmo modo que eu sou como pessoa, imediatamente criado do nada, eu mesmo sou como espírito livre, criado pelo princípio de contradição ou criado pelo fato de ter escolhido a mim mesmo (KIERKEGAARD, 1970, p. 194).

Vale dizer que a escolha ética é mediada pela consciência que o indivíduo adquire de si mesmo e, ao mesmo tempo, do outro, tendo em consideração a questão do compromisso, pois como afirma Sampaio:

O homem do estádio estético relaciona-se apenas consigo mesmo, por isso sua interioridade é vaga, inconsistente. A vida ética, porém, caracteriza-se pela abertura ao outro, pelo estabelecimento de relações, pela passagem a uma existência concreta (SAMPAIO, 2001, p. 161).

Tal existência concreta exige consciência do dever universal, como ocorre com o matrimônio, expressão típica da possibilidade ética de vida, como explica ―B‖, o Juiz Wilhelm, autor da segunda parte de A Alternativa, que ao endereçar as cartas ao esteta ―A‖62. Ele tenta convencê-lo de que a vida ética é mais verdadeira do que a estética, de que o amor romântico está fundado na ilusão e na eternidade do tempo.

O que amas é o inesperado. O sorriso de uma mulher bonita em urna situação picante, um olhar que apreendes; eis ali o que persegues, aí tens um motivo para a tua frívola imaginação. Tu, que tanto te empenhas em ser observador, resigna-se, também, a ficar submetido à observação. (...) em outras oportunidades, és um adolescente apaixonado. No entanto, continuas muito afastado do casamento, e espero que o teu gênio bom te guarde dos maus caminhos, porque penso em algumas ocasiões adivinhar por certos indícios que procuras portar-te como um pequeno Júpiter. Tens uma ideia tão elevada do teu amor que certamente qualquer mulher deveria se considerar feliz em ser a tua amada durante oito dias (KIERKEGAARD, 1994, p. 8-9).

62 Esta constatação fica clara nas palavras de ―B‖: Uma vez mais, não posso deixar de me regozijar

de escrever para ti, porque se bem que é certo que eu não queria falar a ninguém mais de minha vida conjugal, também o é que me abro a ti com uma alegria confiante.

Enquanto, para o Juiz, o matrimônio é a beleza da vida, mas não qualquer matrimônio, sobretudo aquele realizado por conveniências e interesses, em que se renuncia o amor propriamente dito e que deixa a união contraída muito frágil, pois o amor, segundo ele, é o constituinte do matrimônio, ou seja, não é o matrimônio que conduz ao amor, mas o amor que o pressupõe. Nesse caso, o indivíduo que ama deve está unido ao outro pelo vínculo do dever, mas não se pode determinar que se ame unicamente pelo dever, caso contrário a vida em comum, isto é, dos esposos se tornaria uma pura e simples satisfação do apetite sensual ou uma espécie de associação em que se busca objetivos sem caráter de eternidade.

Já para o esteta ―A‖, a beleza da vida é o amor romântico63 de eternidade ilusória, aquele amor que não resiste, diferente do amor conjugal, ao dever. O amor que não possui uma característica ético-religiosa pelo motivo de estar baseado nas vicissitudes do mundo totalmente exterior, pois a vida do esteta se resume nos simples episódios, nos quais busca apenas o interessante, fazendo do momento de gozo uma pequena eternidade. ―Há em ti uma inquietude sobre a qual flutua, sem dúvida, a clara luz da inteligência; tua alma se concentra inteiramente no único ponto que te ocupa; tua razão traça cem projetos; tudo dispõe para o ataque‖ (KIERKEGAARD, 1994, p. 10).

63 Em Apologia (e nostalgia) do amor romântico, um dos itens discutido no primeiro capítulo do texto, O Matrimônio, o Juiz Wilhelm afirma: ―Nossa época viu, muito bem, o lado fraco do amor romântico: os ataques irônicos que lhe dirige são, às vezes, muito divertidos. Veremos, porém, se corrigiu seus defeitos e o que propôs em seu lugar. Pode-se dizer que seguiu dois caminhos: um deles se apresenta falso ao primeiro olhar: falso, quer dizer, imoral. O segundo, mais respeitável, deixa de lado, sem dúvida, o elemento profundo do amor. Pois se o amor repousa sobre o sensível, claramente se vê aquela cavalheiresca fidelidade, que, segundo o imediato, é uma loucura. Por que, pois, admirar-se de que a mulher reclame sua emancipação, um dos numerosos e terríveis fenômenos de nossos tempos, de que os homens são responsáveis? O eterno que o amor implica, se converte em objeto de escárnio: o que se retém do amor é o aspecto temporal, porém, quintessência na eternidade sensível, no instante eterno do abraço. Minhas palavras não se aplicam somente a tal ou qual sedutor, que ronda pelo mundo, como uma ave de rapina: não, senão que também se referem a um numeroso coro de espíritos dos mais distintos, e Byron não é o único que declara o amor um paraíso e o casamento um inferno‖ (1994, p. 19).

Eis os desafios do Juiz Wilhelm:

Proponho-me sobretudo duas tarefas: mostrar o valor estético do casamento, e como poder conservar esse elemento estético, apesar dos múltiplos obstáculos da vida. No entanto, para que possas abandonar-te com mais confiança aos resultados que adviriam da leitura desta pequena obra, insistirei um pouco na polêmica, para dar às tuas observações sarcásticas a atenção que merecem. Assim espero livrar-me dos tributos exigidos pelos estados bárbaros, para me encontrar então aprazivelmente em meu papel; porque estou em meu papel, sendo casado e combatendo pelo matrimônio, pro anis et

focis. Acredita: tanto me importa esta questão que, apesar de minha

repugnância por escrever livros, quase tenho vontade de fazê-lo, se posso salvar uma só união do inferno em que mergulhar, ou tornar dois esposos mais aptos para cumprir a mais bela das missões que foi proposta ao ser humano (KIERKEGAARD, 1994, p. 8-9).

O Juiz entende, conforme a citação, e suas considerações acerca da natureza do matrimônio, que o compromisso legítimo matrimonial é a mais bela missão que deve ser realizada pelo indivíduo ético. No entanto, o homem do estádio estético não pode matrimoniar-se? Diante das reflexões do Juiz sobre tal questão, o esteta vive o amor romântico, desprovido de história. Ele não tem absoluta certeza de seu sentimento por ser imediato e lhe faltar a reflexão, nesse sentido se adquirir o matrimônio não lhe dará uma significação mais profunda, porque não tem consciência da função ética que o casamento comporta, numa época que declara ser a favor do amor excluindo o matrimônio e que ao mesmo tempo admite o matrimônio excluindo amor. (KIERKEGAARD, 1994, p. 24). Para o Juiz Wilhelm, amor e matrimônio são uma única e só coisa que às vezes deve conservar a unidade dos diversos modos de expressões do estético, como a paixão que tem caráter apriorístico; a do ético: o amor, como síntese dos contrários, liberdade e necessidade; e a expressão do religioso, o amor sensível impregnado de espírito, de eternidade, pois ―o religioso, longe de negar o sensível, o enobrece‖ (KIERKEGAARD, 1994, p. 52).

Escreve o Juiz Wilhelm:

O matrimônio comporta o infinito, mais ainda que a paixão, porque sua infinitude intrínseca é uma vida eterna. O matrimônio é a síntese dos contrários, mais ainda que a paixão, porque tem uma antítese a mais, o espiritual e o sensível, em uma oposição ainda mais radical. (...). O matrimônio tem excelências, uma beleza, uma estética tanto maiores quanto mais se eleva o firmamento acima do local do docel nupcial; e o céu do matrimônio não é o da terra, e sim o do espírito. Certo que também o matrimônio pertence ao instante, porque é são e vigoroso, e tende a aperfeiçoar-se; porém em um sentido mais profundo que a paixão, cuja falha é seu caráter abstrato, enquanto que a resolução inerente ao matrimônio implica a lei do movimento, a possibilidade de uma história interna (1994, p. 51).

O matrimônio como expressão típica por excelência da possiblidade de vida ética é a tarefa que se manifesta e se realiza no cumprimento do dever cotidianamente em que comporta a resignação, o desistir de algo em favor do outro, um novo modo de se enxergar a imediatidade estética, bem como um novo ponto de vista sobre o amor romântico, como propõe o Juiz Wilhelm ao Esteta ―A‖, o qual ainda não compreende que o eu ideal associa-se ao geral, isto é, que o eu é necessariamente individual e realiza-se no universal.

Entretanto, tal realização do eu no geral, sobretudo, nas condições matrimoniais, implica dificuldades, que o Juiz faz questão de abordar, pois às vezes o matrimônio que deveria unir o sensível ao espiritual torna-se um programa de conduta a ser seguido, motivado por intenções de ordem finita determinada pelo meio social, pelo costume, o que faz com que a vida ordeira torne-se monótona e enfadonha, ou seja, a uniformidade pode fazer da vida doméstica e conjugal um tremendo marasmo. Aliás, este é o risco que a possibilidade de vida ética está submetida, pois a vivência costumeira provoca o vazio, um ambiente sem distrações, uma ausência total de acontecimentos, pois o eticista não faz nada mais e nada menos além daquilo que o dever lhe ordena. Nesse sentido, a escolha consciente,

que deveria ser motivada pela liberdade, é orientada pelas obrigações sociais, por isso chega o momento em que o indivíduo reconhece que não é capaz, que não tem condições de ser tão zeloso e tão ordeiro com seus deveres e com as leis éticas e universais que está submetido para fazer parte do geral, pois entende que a compreensão e a realização de si mesmo como ser singular e existente não se resume na linguagem do dever ou nas exigências da cidadania.

A interioridade assume a exterioridade, porém, nunca há identificação perfeita entre as duas, pois são incomensuráveis e, por isso a tensão permanece. É por isso que Kierkegaard afirma que a vida moral comporta um elemento de incógnito, de tal modo que, entre os burgueses jamais se reconhecerá com certeza o ético verdadeiro. O caráter paradoxal da vida ética consiste em que o comum seja ao mesmo tempo o extraordinário e o mais comum seja também o mais pessoal. Não é possível a completa identificação entre a interioridade e a exterioridade. Encontrando-se desde o início na não verdade, o indivíduo fracassa na tarefa ética de realização de si mesmo (SAMPAIO, 2001, 160).

Tal consciência do fracasso na realização de si mesmo pode desencadear no sujeito o desejo64 de tomar uma atitude de retorno à possibilidade de vida estética, ou o desejo de arriscar-se em dar mais um salto a uma possibilidade de vida mais elevada, isto é, ao estádio religioso.

64 Silvia Saviano Sampaio, em Kierkegaard em nosso tempo, ao escrever sobre ―Kierkegaard e

Girard: o desejo mimético‖, afirma que o tema do desejo perpassa toda a filosofia de Kierkegaard, na medida em que constitui todos os estádios da existência e possui uma relação estreita com a categoria do indivíduo, a categoria kierkegaardiana por excelência. Segundo ela é o desejo que guia a consciência sobre o caminho da vida para tomar consciência de si mesma. O estádio estético é eminentemente egoísta nele, o desejo não é ocasião para se recordar de si mesmo na sua consciência eterna por intermediário da relação ao outro; mas, é o outro que é utilizado como ocasião de um desejo que não é ocasião de nada diferente.

4.2.1 O Humor

―A vasta esfera do estádio ético é separada do plano inferior pela ironia. E do plano superior é separada pelo humor‖ (KIERKEGAARD, 1986, p. 61).

Discutimos que a ironia enquanto zona limite entre o estádio estético e o ético tem um papel notório na existência do indivíduo, uma vez que é através dela que é possível lançar um novo olhar sobre a realidade dada ou sobre o imediatismo da possibilidade de vida estética, avaliando as contradições vividas, permitindo-lhe eleger a si mesmo como um eu que tem consciência do seu caráter eterno que não se basta a si mesmo, mas que é relação do início ao fim. É na ironia que o indivíduo entende que se não houver consciência da eternidade do eu, sua vida será, então, sempre desespero. Não que o desespero será extirpado a partir de tal consciência, mas poderá ser mais bem experimentado a partir das escolhas sérias e conscientes de si mesmo como ser único no estádio ético.

O humor também é uma zona limite, entretanto, geograficamente situa-se entre a possibilidade de vida ética e a possibilidade religiosa. Para Kierkegaard, em seu texto, Post-Scriptum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, ―o humor não é a fé, mas se encontra antes da fé‖ (KIERKEGAARD, 1977, p.231). Para Sílvia Saviano Sampaio, intérprete de Kierkegaard (2001, p. 36), o humor ―é um tipo de comunicação que permanece no nível dos signos linguísticos‖.

Assim como a ironia, o humor também tem um papel notório na vida do indivíduo. No entanto: ―Humor contém um ceticismo muito mais profundo do que a ironia; pois nele tudo gira não mais ao redor da finitude...‖ (KIERKEGAARD, 1991, p. 280). É por meio dele que o indivíduo tem a postura de isolar-se, na tentativa de

realizar uma revisão da vida ética - que sempre tende, de forma muito racionalizada ou sistemática, ao universal, ao geral -, à qual está inserido, porque entende que a realização do eu está relacionada ao desenvolvimento da subjetividade e não no cumprimento do dever, portanto, reflete sobre si mesmo, sobre sua condição de indivíduo, pois vive o conflito entre interioridade e exterioridade à qual a ética não pode resolver, pois: ―a ética apresenta uma tensão que lhe é inerente, pois, ao mesmo tempo em que é indispensável para que o homem realize na sua vida a generalidade das normas, esta é um obstáculo para a individualidade‖ (SAMAPIO, 2001, p. 18). Nestes termos, o humor kierkegaardiano é uma crítica à razão que normatiza o comportamento humano, padroniza sua conduta e lhe dá uma