• Nenhum resultado encontrado

4 A EXISTÊNCIA E SUAS POSSIBILIDADES

4.1 O Estádio Estético

4.1.1 O Esteta Imediato

Há de se ressaltar que, na teoria dos estádios da existência, Kierkegaard considera que o estádio estético deve ser entendido de dois modos: o estético reflexivo, que acabamos de apresentar, a partir do ―Diário do Sedutor”, em que o meio de expressão é a palavra, a escrita ou a linguagem, que tem como característica não enunciar o imediato, pois para o nosso autor a linguagem emana da reflexão e o estético imediato, em que o meio de expressão é a música que para ele não tem a finalidade de expressar o histórico do tempo por considerá-la uma espécie de pré-linguagem ou uma atitude pré-reflexiva (KIERKEGAARD, 2006, p. 93).

As discussões do nosso autor sobre o estético imediato são baseadas na tese de que o helenismo não tinha o conceito de genialidade erótico sensual55, pois ela pertence a um contexto cristão que a introduziu pela primeira vez, determinando-a como um problema oposto ao espírito. Nesse sentido, quando tal genialidade em toda a sua imediatidade passa exigir, por sua vez, sua expressão, a questão que se coloca é a seguinte: qual é o meio mais adequado desta expressão?

Explica Kierkegaard que a música é o meio mais adequado de expressão da genialidade sensual, mas especificamente a música de Mozart. Tal genialidade não pode ser identificada através de outras expressões que permitem uma consciência histórica, como é o caso da escultura, pois ela é própria da interioridade; e, como é o caso da pintura, uma vez que não se pode conceber a genialidade sensual como um

55 A questão da genialidade sensual é representada por Kierkegaard pela ideia de Don Juan,

personagem lendário da Idade Média, período marcado pelo Cristianismo. Isso explica a sua tese de que os helênicos não possuíam a ideia de sensualidade genial.

contorno determinado, pois ela é uma força, um clima, uma impaciência, uma paixão que consiste em uma sucessão de momentos que não se permite retratar ou pintar (KIERKEGAARD, 2006, p. 81).

Afirma Kierkegaard:

A genialidade sensual, portanto, é o objeto absoluto da música. A genialidade sensual é absolutamente lírica e invade a música com toda a sua impaciência; pois está determinada espiritualmente, e por isso é força, vida, movimento, inquietude constante, sucessão constante, mas essa inquietude e essa sucessão não a enriquece, sempre segue a mesma, não se desenvolve, mas se projeta sem interrupção como uma respiração. Se tivesse caracterizar esse lirismo mediante um único atributo, deveria dizer: sons; desse modo volto à genialidade sensual como aquela que se mostra de maneira imediatamente musical (KIERKEGAARD, 2006, p. 94).

Kierkegaard ao refletir sobre o estético imediato ou sobre os estádios eróticos imediatos tem, através do pseudônimo, o ―Esteta A‖, na primeira parte de A alternativa, como objetivo explicitar o significado do erotismo musical a partir de três personalidades mozartianas, isto é, tenta esclarecer ―as diferentes figuras que o erotismo assume nas diversas etapas evolutivas da consciência universal e conduzir-nos a determinação do imediatamente erótico...‖ (KIERKEGAARD, 2006, p. 86). Para tanto, assinala três distintos estádios que são essencialmente musicais e que tem em comum, além do fato de serem imediatamente eróticos, a presença do desejo no sentido de paixão ou libido, porque é essa a conotação de eros apropriada pelo ―Esteta‖.

De um modo geral, o ―Esteta A‖ apresenta o primeiro estádio do Eros imediato como sendo representado pelo Pajem, um dos personagens operístico das bodas de Fígaro, cujo título original é Le nozze de Figaro. Tal estádio é marcado pela contradição de que o desejo possui aquilo que seria seu objeto, no entanto o possui sem haver desejado.

O segundo estádio é representado por Papageno, personagem da ópera A flauta Mágica. Em Papageno, o desejo consiste em fazer descobertas, que é o seu pulso, sua jovialidade. Ao não encontrar o objeto apropriado permanece desejando uma multiplicidade deles.

Já o terceiro é representado por Don Giovanni, o protagonista da ópera em uma interpretação do mito de Don Juan56 realizada pelo austríaco Wolfgang Amadeus Mozart57. Neste estádio, Don Juan é o desejo e ao mesmo tempo sedutor como a música. ―Don Juan é, se atrevo a dizer, a encarnação da carne, ou a animação da carne‖ (KIERKEGAARD, 2006, p. 108). Nele ―o desejo é absolutamente são, vitorioso, triunfante, não resistível e demoníaco‖ definido como o sensual (KIERKEGAARD, 2006, p.1006), essencialmente musical em que não se permite a linguagem, como no caso do Sedutor do Diário, nem a seriedade do pensamento ou a reflexão.

Desse modo,

A contradição do primeiro estádio consiste em que o desejo não tem objeto algum, mas sem haver desejado encontrava-se em posse de seu objeto e por isso não podia chegar a desejar. No segundo estádio, o objeto se mostra em sua multiplicidade, mas posto que o desejo busca o seu objeto, não tem, em sentido profundo, objeto algum, não está determinado todavia como desejo. Em Don Juan, o desejo está absolutamente determinado como desejo no sentido intenso e extenso da unidade imediata dos estádios anteriores. O primeiro estádio deseja de maneira ideal, o segundo deseja o

56 Para Leyla Perrone-Moisés: Na qualidade de personagem mítica, Don Juan tem a capacidade de

se reencarnar, de ressurgir a cada século com as características de um novo momento histórico. Mas Don Juan tem sob esse aspecto uma especificidade. Diferentemente de outras personagens míticas que assumiram sua forma arquetípica num lugar, num tempo e numa obra particulares (como Édipo e Tristão), Don Juan foi-se constituindo aos bocados, desde a Idade Média até o Romantismo, conhecendo seu momento mais forte nos séculos XVII e XVIII (de El Burlador de Sevilla de Tirso de Molina até o Don Giovanni de Mozart e da Ponte, passando pelo Don Juan de Moliére).‖

57 Em suas reflexões sobre o estético imediato, Kierkegaard dá a Mozart um lugar privilegiado entre

os grandes autores da história universal. Com o seu Don Juan, Mozart ingressa no reduzido círculo daqueles cujos nomes e obras o tempo não se esquecerá, será lembrado na eternidade.

particular sob a determinação do múltiplo, e o terceiro é a unidade dos dois primeiros (KIERKEGAARD, 2006, p. 105).

Sendo assim, é notório que Don Juan ocupa um local de destaque no pensamento do nosso autor, porque representa a reinvindicação da sensualidade em face às exigências do dever ético do cristianismo, pois ele deseja uma mulher, em seguida outra e mais outra. Ele é a sensualidade infinita, natural que se opõe ao espírito tanto na vida quanto na morte (KIERKEGAARD, 2006, p. 109). Dentre as três figuras mozartianas dos estádios de eros imediato, ele, hierarquicamente é o principal destaque para o ―Esteta A‖, pois é por natureza uma genialidade do eros sensual que não se pode descrever conceitualmente ou reflexivamente. É uma sensualidade que só pode ser sentida, ouvida, o que torna a música o seu meio mais adequado de expressão.

Desse modo, Kierkegaard apresenta o estádio estético da existência a partir de seus principais personagens. O Sedutor do Diário, Johannes, interpretado como o esteta reflexivo aquele que escolhe os meios e artifícios, conscientemente, que compõem o método da conquista e, portanto a linguagem é o seu meio de expressão. E Don Juan (Don Giovanni), com o seu erotismo musical tão sedutor simboliza o esteta imediato, porque não reflete, não tem controle sobre a sedução, apenas deseja instintivamente, pois ele é uma força da natureza, representação sensível da sensualidade o que o torna a melhor de todas as óperas.58 ―Nunca

58 A referência ou o elogio a Don Juan como a melhor de todas as óperas não está presente apenas

no texto em que se trata dos estádios imediatos de eros. Em In vino Veritas, um dos livros que compõem a obra Etapas sobre o caminho da vida, também contém elogios à referida ópera. Os cinco pseudônimos presentes no banquete, Johannes, o Sedutor, Víctor Eremita, Constantin Constantius, o Mancebo e o Alfaiate, antes das discussões sobre o tema do amor, ouviam a opera Don Juan. Victor eremita saudou a todos com as seguintes palavras sobre a ópera: ―Oh, música invisível e solene! Oh, acordes sedutores que outrora me fostes arrancar a solidão monacal de uma juventude tranquila! Vós que me decepcionastes, vós que me mergulhastes numa saudade, vós que me fazíeis sofrer uma recordação (...). Mozart imortal a quem devo tudo... Não, não posso dizer isso. Só quando for muito velho, se algum dia o chegar a ser, só quando tiver mais dez anos do que agora, se por ventura lá chegar, só quando tiver os cabelos grisalhos, se atingir essa idade, só quando morrer, pois sei bem que isso é inevitável, direi então: Mozart imortal, tu a quem devo tudo. Vou deixar que a admiração,

antes, a sensualidade tem sido concebida como se concebe em Don Juan: como princípio, por isso o erótico se define mediante outro predicado, nele o erotismo é sedução‖ (KIERKEGAARD, 2006, p. 103).

Como se percebe, tanto Don Giovanni como Johannes, apesar de um ser reflexivo e o outro não, são imediatos, pois a imediatidade é própria do modo de vida estético, mesmo tendo uma orientação intelectual ou não. Nas palavras de Álvaro Valls, em A Sedução e Suas Máscaras, um representa o método e o outro a força, ―poderíamos distingui-los como desdobramento da mesma figura, uma atando espontânea e inconscientemente, como pura libido, atração musical, outro super- refletida e metódica‖ (1988, p. 116).

Na compreensão existencial de Kierkegaard, os dois representam um tipo de homem que buscam gozar o instante. Suas escolhas são ou o prazer, ou o prazer, pois não existe uma tentativa de superar a imediatidade do estádio estético, ou seja, não há uma paixão em querer ser um eu, ou ser si mesmo, uma vez que suas escolhas são resultadas da exterioridade, dos valores da finitude, da sensibilidade, do agradável. Não há compromisso com a região mais nobre do ser, pois a interioridade é vazia, reduzida a contingência ou a transitoriedade do mundo exterior, sem consciência de si mesmo. O que torna tal alternativa de vida comum à maioria dos homens que não conseguem realizar a síntese dos opostos polares: finito e infinito, temporalidade e eternidade que é dever de todo indivíduo construi-la conscientemente.

Por isso, os homens do estético experimentam os problemas existenciais do desespero discutido, em A Doença para a morte, por Anti-Clímacus, em que o

sentimento, princípio e objeto único de minha alma, pese inteiramente sobre mim, para me esmagar, como tantas vezes quis. Porque eu pus já todos os meus negócios em ordem, pensei já em minha bem-amada, confessei já o meu amor, compreendi que te devo tudo, tudo.‖ (2002, p. 56).

desesperado não tem consciência de ter um eu, ou o desespero impropriamente dito (1971, p. 171). Como também o problema da angústia discutido por Vigilius Haufniensis em O Conceito de Angústia, em que apresenta o homem como uma síntese inacabada de alma e de corpo que tem como elemento de sustentação um terceiro termo, o espírito. Nessa perspectiva, o esteta é tão desesperado o quanto é angustiado, pois não se tem consciência de ser espírito. Não sabe o que fazer com o desespero, não sabe o que fazer com a angústia. Quando deixar de ser um conformista e passar a arriscar-se a aprender a desesperar e a angustiar-se talvez encontre a sua mais profunda verdade interior que lhe permita desenvolver a potencialidade de escolher um novo rumo existencial ou uma nova possibilidade de vida, ou seja, a escolher por si mesmo. Explica Sílvia Saviano Sampaio:

Na vida do homem do estádio estético não há lugar para a decisão, pois na pura imanência da concepção estética é permitido aos opostos coexistirem. O esteta encontra apenas figurações e sombras de si mesmo. A perda de toda validade transcendental deixa seus traços nos variados estados de ânimo do esteta: melancolia, entusiasmo, tédio. A sua vida é desespero. Desespero inconsciente de si mesmo. Desespero que se traduz num ativismo lancinante, numa perda da possibilidade, num mergulho na probabilidade. Um homem que não escolhe jamais. Um homem condenado a fracassar na sua tentativa de repetir na sua intensidade os momentos do passado. Um homem? Mas, o próprio do homem não é libertar-se? (SAMPAIO, 2001, p. 156).

4.1.1.1 A Ironia

A individualidade da estética, que divide, deve ser abandonada para que alcancemos a universalidade da ética, que coloca um fim comum, acabando com as diferenças. O ético é o homem cuja vida deve ser inteiramente manifesta, sua interioridade deve ser expressa pela exterioridade, ele é ―o homem geral‖ (SAMPAIO, 2001, p. 59- 60).

Mediante as palavras de Sílvia Saviano Sampaio, na citação acima, um questionamento que necessariamente temos que nos fazer e que possivelmente pode ser respondida à luz da ironia é o seguinte: como o homem do estádio estético atinge a possibilidade de existência ética?

O homem do estádio estético, como já afirmamos, é aquele da vida imediata que não reflete sobre a constituição do eu, não se dá contra da contradição entre finito e infinito, portanto, é a não verdade. Eternamente no instante, nunca escolhe, pois está preso a imediatidade. Nesse sentido, questiona Sampaio (2001, p. 156) ―Mas, o próprio do homem não é libertar-se?‖.

Na vida imediata, o esteta não é capaz de refletir sobre aquilo que vive e aquilo que é, uma vez em que está sempre sozinho consigo mesmo, sua intenção é o gozo no sentido individualista do termo e ao mesmo tempo egocêntrico que não lhe permite lançar a interrogação existencial, ―quem sou eu?‖ como ato de reflexão que desvela e cerceia a relação entre o indivíduo e a verdade que vive.

A ironia tal como Kierkegaard descreve, em Post-Scritum Conclusivo não científico às Migalhas filosóficas, como zona limite entre a possibilidade de vida estética e ética é continuidade da XV tese - ―Como toda filosofia inicia pela dúvida, assim também inicia pela ironia toda vida que se chamará digna de homem‖ -

discutida por ele em sua dissertação O Conceito de Ironia Constantemente Referido a Sócrates.

A ironia para o pensador de Copenhague é ―justamente o incitamento da subjetividade‖ (KIERKEGAARD, 1991, p. 165), traduzida em reflexão, em que o indivíduo passa a perceber o modo como ele se relaciona com a exterioridade, notando as contradições da vida imediata. Como zona limite, a ironia torna-se o início de um modo de existência que não é o estético, pelo fato de ser reflexivo, mas que também não é o ético pelo motivo de ainda não haver deliberado. Conforme Henri-Bernard Vergote, a ironia é um momento de crise o qual não se pode denominar como estádio. Ela é significativamente a transição de um estádio a outro (VERGOTE, 1982, p. 106).

Conforme Kierkegaard, sendo a ironia reflexão, é o primeiro itinerário subjetivo em que se inicia o processo de compreensão da interioridade, o indivíduo ao atingi-la, torna-se instruído por ela a despertar um estado de estranheza com relação à imediatidade (KIERKEGAARD, 1991, p. 174). Isto é, ao silenciar-se e dar ouvidos à interioridade concentrando o ―eu‖ no próprio ―eu‖, entende as ilusões da vida estética, percebe que está imerso em tais ilusões, muitas delas criadas por ele próprio em sua imaginação, no entanto, ainda, não escolheu abandoná-las.

Explica nosso autor:

A ironia é, com efeito, uma saúde, na medida em que ela liberta a alma dos enganos do relativo; é uma doença, na medida em que ela não pode suportar o absoluto senão sob a forma do nada, mas esta doença é uma doença que depende do clima, e que só raros indivíduos contraem, e mais raros ainda são os que a superam (KIERKEGAARD, 1991, p. 74).

Sendo assim, o irônico só se torna superior ao esteta se aprender o que fazer com a ironia - se conseguir ser formado por ela e, ao mesmo tempo, superá-la, no

sentido de se comprometer a escolher. Ou seja, quando escolhe escolher como uma expressão de engajamento da interioridade ocorrerá a passagem do estádio estético ao ético. Caso não decida escolher para superar as contradições da vida da imediatidade, sua ironia terá que ser compreendida apenas como uma expressão momentânea que é fácil de ser executada e não como uma ironia pura ou ironia como ponto de vista (KIERKEGAARD, 1991, p. 221), aquela que questiona o que significa existir como indivíduo singular, questão que o sujeito precisa se colocar na tentativa de que adquira consciência de si mesmo como condição de sua liberdade, isto é, uma condição que reafirma a individualidade e a subjetividade, na medida em que se compreende na existência como, outrora, fez o filósofo Sócrates.

A ironia é uma determinação da subjetividade. Na ironia o sujeito está negativamente livre; pois a realidade que lhe deve dar conteúdo não está aí, ele é livre da vinculação na qual a realidade dada mantém o sujeito, mas ele é negativamente livre e como tal flutuante, suspenso, pois não há nada que o segure. (KIERKEGAARD, 1991, p. 227).

É na ironia que o indivíduo desenvolve a consciência de que ele é uma exceção entre os demais, em que se questiona sobre aquilo que se é. Como explica Henri-Bernarde Vergote, em Sentido e Repetição, Ensaio sobre a Ironia kierkegaardiana (1982, p. 106): A ironia é a eterna possibilidade de se interrogar. Ela examina a posição em que se está se perguntando em que se pode apoiar para abandonar ou não tal posição. Ela é o indício de uma consciência inquietante que precisa arriscar-se, não pela necessidade, mas pela liberdade. ―Só o homem capaz de se arriscar pode efetuar a passagem para o domínio da liberdade, só este homem pode alcançar a felicidade eterna‖ (SAMPAIO, 2001, p. 199).