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O Paradoxo das Migalhas: uma contestação à Intelectualidade

3 COMUNICAÇÃO E PSEUDONÍMIA

3.2 Clímacus e as Migalhas Filosóficas

3.2.1 O Paradoxo das Migalhas: uma contestação à Intelectualidade

Para Clímacus:

O paradoxo é a paixão do pensamento, e o pensador sem o paradoxo é como o amante sem paixão, um tipo medíocre. Mas a potência mais alta de qualquer paixão é sempre querer a sua própria ruína, e assim também a mais alta paixão da Inteligência consiste em

querer o choque, de uma ou de outra maneira [...] (KIERKEGAARD, 1995, p. 59).

O conceito de paradoxo é tanto necessário na estrutura do pensamento de Kierkegaard, quanto na definição de temas como o desespero, a angústia, escândalo, a existência, o eu. Pois trata-se de uma crítica à intelectualidade, não que o filósofo de Copenhague seja um anti-intelectualista, mas o que está em questão é o paradoxo enquanto categoria de contestação da inteligência em seu sentido mais lógico, como o princípio de identidade, de não contradição e do terceiro excluído, do idealismo e do racionalismo moderno, sobretudo, o sistema hegeliano.

Explica Sampaio:

O paradoxo, essa antidialética feita de oposições não resolvidas, é a estrutura lógica que convém ao tipo de demonstração requerida pela problemática do existente, do indivíduo diante de Deus. O paradoxo consiste no fato de que a tese e a antítese estejam presentes sem nenhuma síntese. Assim é que a verdade eterna paradoxal – Deus que se fez homem — se revela paradoxalmente a uma verdade existente que também é paradoxal — o homem sendo uma síntese não acabada de finito / infinito, necessidade / liberdade, temporalidade / eternidade (SAMPAIO, 2010, p. 26)

De acordo com Hélène Politis (2002b, p. 61), o fato paradoxal rompe com a imanência, escapando a toda tentativa de homogeneização unilateral. Determina a presença de outro no mesmo, uma vez que testemunha a realidade do eterno no coração do tempo e anula o tempo morto dando abertura à temporalidade viva. O paradoxo ocorre quando se configura a relação de dois elementos radicalmente opostos como o infinito e o finito. É paradoxal o reencontro entre imanência e transcendência, mesmo dentro da imanência, algo que parece ser absurdo para o entendimento da respectiva lógica do princípio de identidade, de não contradição e do terceiro excluído. Clímacus examina, no primeiro capítulo das Migalhas filosóficas, duas concepções antitéticas, comparando a reminiscência platônica e a

mensagem dos Evangelhos. O discurso de Cristo relatado pelo Novo Testamento é qualitativamente diferente do discurso socrático/platônico desenvolvido, sobretudo no Mênon: a palavra do evangelho é nova no sentido de que ela não conduz de nenhuma maneira a alma a um saber intemporal em que ela teria que relembrar, entretanto ele confronta o indivíduo humano com uma alteridade real, sendo inextricavelmente aquilo que há nele mesmo e que é cada vez mais estranho. O cristianismo/cristandade manifesta-se para Clímacus/Kierkegaard como a expressão/ação do paradoxo em seu sentido stricto sensu: Deus se fez homem uma só vez, uma vez por todas, entretanto, para sempre. Introduzindo realmente o eterno no tempo, este fato paradoxal modifica de modo decisivo a relação entre indivíduos humano com o absoluto vivido.

A entrada em cena do deus no tempo, na história provocou o paradoxo, pois a razão não consegue reunir a ideia de um deus eterno com a figura deste servo humilde. O princípio de identidade fracassa, sobra a opção do salto da fé, renunciando, neste ponto, à inteligência. Ante o paradoxo, ante o ―fato absoluto‖, o contemporâneo, que se serve dos sentidos para reconhecer o fenômeno, não possui nenhum privilégio frente aos pósteros (KIERKEGAARD, 1995, p. 15).

Portanto, de acordo com nosso autor, o paradoxo não pode ser um conceito objetivo, sistemático, mas uma categoria em que o indivíduo no tempo, na angústia, no desespero e no temor e tremor, faz uma escolha pela eternidade, a exemplo de Abraão, compreendido por ele, em Temor e tremor43, como o herói da fé, aquele Indivíduo que contraria as normas universais de comportamento – a moral kantiana44

43 O livro Temor e tremor, publicado em 1843, tem como autor o pseudônimo Johannes de Silentio.

Um indivíduo de idade avançada que se propõe a entender a profundidade da vida, elaborando reflexões bíblicas a partir de Abraão.

44 Sílvia Saviano Sampaio, em sua tese sobre A subjetividade existencial em Kierkegaard, explica que

A crítica que Kierkegaard faz à ética kantiana é, pois, uma crítica da ética enquanto tal. Kierkegaard dirá que mais do que uma severa crítica da Razão é de uma severa crítica da subjetividade que sua época precisava. Ele critica o conceito kantiano de autonomia como ilusório, na medida em que identifica o autor da lei com o sujeito que deve ser submetido a essa lei, o sujeito legislador e o sujeito

e a ética hegeliana - ao oferecer em holocausto o seu único filho Isaac no monte Morija, relacionando-se com um Absoluto. E, aqui, nesse sentido, podemos lançar uma indagação que fundamenta a questão do paradoxo enquanto contestação à racionalidade: como entender a atitude de Abraão, discutida por nosso autor a partir do exemplo bíblico: ―E Deus pôs Abraão à prova e disse lhe: toma o teu filho, o teu único filho, aquele que amas, Isaac; vai com ele ao país de Morija e, ali, oferece-o em holocausto em uma das montanhas que eu te indicarei‖? (KIERKEGAARD, 1972, p. 106). Esta atitude não se pode ser explicada pela intelectualidade que se escandalizaria e, no mínimo, consideraria Abraão louco, pois sacrificar o próprio filho seria um fato irracional, absurdo e desumano. No entanto, pode-se, pelo menos, pensar, considerando que Abraão faz uma escolha pelo paradoxo da fé, pois não se escandaliza, prefere crer no absurdo sem jamais duvidar, porque se trata de encontrar a verdade em sua relação absoluta com Deus a qual transcende os limites da razão terrestre que determina as leis morais.

Tal ideia de paradoxo está presente em outros escritos de Kierkegaard, especialmente, nas Migalhas de Johannes Clímacus, um livro que, segundo ele, com um pouco de ironia, é claro, não tem a mínima intenção de colaborar com a evolução da ciência, pois ele não acredita que ela seja um fator do progresso humano, apesar de realizar um experimento teórico.

O conceito de fato absoluto ocorre nas Migalhas filosóficas, livro de 1844 que pode ser bem mais valorizado do que é, apesar do título tão modesto. A expressão ―Migalhas‖ contém uma ironia contra a moda da época de se escreverem tratados sistemáticos, ou como diria nosso autor, sistemas de sistemas (VALLS, 20012, p. 25).

do desejo. Kant, ao pretender que o sujeito possa se ―desdobrar em autor da lei e sujeito à lei, para se redobrar ou se reunir em seguida, desconsidera o fato que este ‗auto redobramento‘ é um hermetismo, manifestação do desespero-desafio, do demoníaco, que consiste em que ―o eu não reconhece nenhuma potência acima dele, dando às suas próprias experiências a maior atenção possível, conferindo-lhes interesse e importância infinitos. (C.F. 2001, p. 18-19).

Clímacus, em seu texto, não se refere a um paradoxo de qualquer natureza, trata-se do paradoxo absoluto, isto é, de algo que a inteligência não possa pensar. Portanto questiona: ―O que é então o desconhecido?‖ (KIERKEGAARD, 1995, p. 68).

Logo no início do capítulo que trata sobre o experimento teórico, discutindo a questão em que medida a verdade pode ser apreendida pelo indivíduo, apresenta um problema que parece difícil de resolver:

que é impossível a um homem procurar o que sabe e igualmente impossível procurar o que não sabe, pois o que sabe, não pode procurar porque sabe, e aquilo que não sabe não pode procurar porque não sabe nem ao menos o que deve procurar (KIERKEGAARD, 1995, p. 27).

No entanto, tal problema é solucionado a partir da concepção grega, isto é, do socratismo, considerando a teoria da reminiscência, da recordação. Ou seja, todo conhecimento já está presente no indivíduo e para apreendê-lo só é necessário, apenas, relembrar. Nesse sentido, o indivíduo precisa do mestre, que, nesse caso, é o próprio Sócrates, que mantém uma relação elevada com o discípulo, aliás, com qualquer homem, utilizando meias palavras ou ideias pela metade, até mesmo a ironia, tendo em vista o parto de ideias, a maiêutica. Mas, o discípulo carece de algo a mais para compreender a verdade. Este algo a mais Clímacus define como ―condição essencial‖, um elemento que não pode ser dado pelo mestre, mas sim, pelo paradoxo absoluto, pelo desconhecido, que não é ―certamente, um ser humano, na medida em que o homem sabe o que o homem é, nem qualquer outra coisa que o homem conheça. Chamemos então este desconhecido: o deus‖ (KIERKEGAARD, 1995, p. 63), Aquele que é absolutamente diferente da não verdade, isto é, do

homem, e a inteligência não é capaz de compreendê-lo. Nesse sentido, pode o paradoxo ser realmente algo que não possa ser pensado?

Desse modo, ao discutir o problema do paradoxo nas Migalhas filosóficas, Clímacus opõe rigorosamente pensamento e fé. A atividade de pensar cai na imanência, o paradoxo não se deixa pensar, mas supera o pensamento. No entanto, não significa que a fé seja inferior a razão ou que o pensamento deva ser rejeitado. Não se pode confundir os dois campos, atribuindo para o domínio de um aquilo que depende do outro. Todo pensamento digno se implanta no ambiente de identidade, igualdade essencial, de invariabilidade que é a intemporalidade, dando acesso ao fato paradoxal, ratificando a doutrina do Homem/Deus, a fé escandaliza o pensamento que não pode quanto ela operar de outro modo, concebendo o outro no mesmo. Mas não se pode pensar a alteridade absoluta, se crê e se relaciona pessoalmente com ela. Mas é preciso destacar que isto não ocorre com o exercício do pensamento, mas contra as exigências do pensamento. O que nenhum aufhebung45 de nenhuma natureza consiga resolver. É doloroso e desconfortável suportar que tal contradição é, no entanto, fácil de contornar: é preciso colocar entre parênteses o teste que é preciso fazer da conjunção/disjunção entre tempo e eternidade, de suspender abstratamente o eterno vivo em virtude de uma não mudança (o atemporal de um eu penso privado de seu contexto). Pensar abstratamente é implantar os efeitos mortíferos deste ato cirúrgico, desta amputação, desta ruptura que tem consistido em romper a conexão vital entre o temporal e o eterno. (...). Isto é o que torna desacreditado o pensamento abstrato que não quer e nem pode relacionar-se dialeticamente consigo mesmo no campo

45 O termo ―aufhebung‖ é uma meta-categoria ou uma determinação fundamental na lógica hegeliana.

No livro, Ciência da Lógica de Hegel, aufhebung é uma das condições que efetiva o novo modo de desenvolvimento científico preconizado pela filosofia do pensador alemão.

desconhecido que cai no domínio de aplicação. Fazendo-se capaz de tudo explicar, o pensamento se ilude e, ainda, se orgulha, ao invés de adquirir consciência de seus limites e realizar a aventura espiritual da fé, que não é o caso dos idiotas e dos imbecis, nem da classe de teólogos ou de espíritos cultivados, mas para qualquer um que queira e sente pessoalmente provocado por ele (C. F. POLITIS, 2002b, p. 61-62).