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Dostoievski é um dos autores prediletos de Cioran, uma das grandes paixões de sua

vida intelectual. “Devo dizer que considero Os demônios como o maior livro do século XIX.

O maior romance também, de modo geral. E Dostoiévski como o maior escritor de todos os

tempos, o mais profundo.”2 Dostoiévski teria ido, como Nietzsche, “até o limite da razão, à

vertigem última. Ele foi até o fundo, por esse salto no divino, no êxtase.”3 O que interessa a Cioran em Dostoiévski não é tanto os seus dotes literários quanto a sua qualidade de pensador. Através de seus romances, Dostoiévski mostra ser um autor preocupado em narrar a condição humana profunda, entre o bem e o mal, Deus e o nada, a liberdade e a perdição: o homem decaído, pecador e sofredor, no fundo de sua solidão inapelável, em monólogo consigo ou em diálogo com Deus, redimido ou desgraçado. Cioran não mede as palavras para elogiar Dostoiévski:

Eu o tenho amado enormemente, é uma das paixões da minha vida. Ele é talvez o escritor mais profundo, mais estranho, mais complicado de todos os tempos. Eu o coloco acima de todo mundo, com defeitos enormes, mas com relâmpagos de santidade. [...] Dostoiévski é o escritor que mais me impressionou, que foi mais longe no exame do homem, que soube explorar o mal e o bem. Ele tocou profundamente o mal, como essência do homem, mas ao mesmo tempo a inspiração nele é dupla. Para mim, Dostoiévski é O ESCRITOR.4

As questões levantadas pela obra de Cioran não poderiam deixar de nos lembrar de alguns dos personagens de Dostoiévski. Pensemos em Kiríllov (o êxtase sem a fé, a epilepsia manqué) ou Stavróguin (o ennui demoníaco), Ivan Karamázov (a luta com Deus e a revolta

1 CIORAN, E.M., “Rostos da decadência”, Breviário de decomposição, p. 121-126. 2 IDEM, Entretien avec Léo Gillet, Entretiens, p. 70 (tradução nossa).

3 IDEM, Ibid., p. 91 (tradução nossa).

146 metafísica1) Raskolnikov2 (o remorso), ou mesmo o anônimo “homem do subsolo”3 (a consciência como doença): personagens complexos e cheios de personalidade, caracteres intempestivos e frágeis (enfermos, em suma), angelicais ou demoníacos, que aspiram a uma existência tão intensa quanto trágica. Conforme sustenta Bakhtin, é como se Dostoiévski buscasse não influenciar, não controlar, não coagir seus personagens a pensar como ele, como se não os forçasse a se subordinar à sua própria visão de mundo. Assim, eles poderiam desfrutar, na vida da literatura, do máximo de liberdade, do máximo de poder sobre suas próprias palavras e ações, seus destinos e tragédias: os personagens de Dostoiévski são livres para agir como bem entenderem, para ir até o limite, de corpo e alma, na direção do pecado

ou da santidade. É como se pudessem mesmo insurgir-se contra o autor – o próprio criador!4

No romance dostoievskiano, “o herói tem competência ideológica e independência, é

1 No capítulo “A revolta”, Ivan faz um longo discurso, em conversa com seu irmão noviço, Aliócha, até culminar na célebre lenda do “Grande Inquisidor”. Após narrar o episódio verídico em que um grande senhor de terras teria mandando seus cães comerem uma criança viva (o filho de um servo que machucou a pata de um dos cães sem querer), Ivan exprime sua revolta (contra Deus e sua Criação): “Escute, limitei-me às crianças para ser mais claro. Nada disse sobre as lágrimas humanas das quais a Terra está saturada, abreviando de propósito meu assunto. [...] Quero estar presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não posso resolver essa questão. Se todos devem sofrer, a fim de concorrer com seu sofrimento para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não se compreende por que deveriam sofrer, elas também, em nome da harmonia. [...] Enquanto ainda é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que ela não vale uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e rezava ao “bom Deus”, no seu canto infecto; não vale porque aquelas lágrimas não foram redimidas. Enquanto for assim, não se poderá falar de harmonia. [...] Aliás, o que vale essa harmonia que comporta um inferno? [...] E se o sofrimento das crianças serve para completar a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale esse preço. Não quero que a mãe perdoe o carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães. [...] Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia.” DOSTOIÉVSKI, F., Os irmãos Karamázov. Trad. de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 256-257.

2 “Ser um Raskolnikov – sem a desculpa do homicídio.” CIORAN, E.M., Silogismos da amargura, p. 14. 3 “Sou um homem doente [...]. Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos [...]. Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a ‘pregar peças’ nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.” DOSTOIÉVSKI, F., Memórias do subsolo. Trad. de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 15.

4“Ao tomarmos conhecimento da vasta literatura sobre Dostoiévski, temos a impressão de tratar-se não de um autor e artista, que escrevia romances e novelas, mas de toda uma série de discursos filosóficos de vários autores e pensadores: Raskólnikov, Míchkin, Stavróguin, Ivan Karamázov, o Grande Inquisidor e outros. Para o pensamento crítico-literário, a obra de Dostoiévski se decompôs em várias teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias, que são defendidas pelos heróis dostoievskianos. Entre elas as concepções filosóficas do próprio autor nem de longe figuram em primeiro lugar. Para uns pesquisadores, a voz de Dostoiévski se confunde com a voz desses e daqueles heróis, para outros, é uma síntese peculiar de todas essas vozes ideológicas, para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas. Polemiza-se com os heróis, aprende-se com os heróis, tenta-se desenvolver suas concepções até fazê-las chegar a um sistema acabado.” BAKHTIN, M., Problemas da poética de Dostoiévski, p. 3.

147 interpretado como autor de sua concepção filosófica própria e plena e não como objeto da visão artística final do autor.”1

O que atrai Cioran em Dostoiévski é a sua dupla intuição da enfermidade e do mal

enquanto elementos indissociáveis da condição humana presente; patologia e teologia: “O

que eu amo em Dostoiévski é o lado demoníaco, destrutor, a obsessão do suicídio, a epilepsia

em suma”, lê-se em um dos Cahiers.2 É a bestialidade demoníaca de um Stavroguine lado a

lado com a pureza angelical de uma figura como o príncipe Míchkin, é a luta perpétua, sem trégua, entre o bem e o mal e sua calamitosa con-fusão no mundo das aparências, a tragédia – mas também a beleza – da existência transfigurada pelo sofrimento, inclusive o sofrimento inocente, a exemplo do Cristo. O êxtase, equivalente religioso da epilepsia: estado de graça

ou de des-graça, conforme se enxerga o sorriso ou “as caretas do absoluto”.3 Cioran, que os

experimentou em raros momentos, gosta de comparar-se a Kiríllov, o niilista suicida de Os demônios, que alcança momentos de uma obscura “iluminação”.

E então, experimenta-se às vezes o êxtase, e eis a razão pela qual eu amo tanto Dostoiévski. Ele descreveu os êxtases sem a fé. É Kiríllov,4 é o epiléptico, todos os epilépticos de Dostoiévski experimentam o êxtase sem a fé. E eu, sem ser epiléptico, também conheci esses êxtases, que lhe permitem compreender os êxtases propriamente religiosos.5

Kiríllov é um jovem ateu e melancólico, um revoltado metafísico (como Ivan) que, além de desenvolver uma teoria confusa sobre o suicídio como forma de triunfo sobre o maior dos medos, experimenta instantes de autêntico êxtase, sem a fé. O que não carece de relação com o fato de que Kiríllov tem uma constituição frágil e enfermiça. É um indivíduo atormentado por uma violenta crise religiosa, debatendo-se consigo mesmo entre Deus e o

1 IDEM, Ibid., p. 5.

2 CIORAN, E.M., Cahiers: 1957-1972, p. 836 (tradução nossa).

3 IDEM, “A santidade e as caretas do absoluto”, Breviário de decomposição, p. 127.

4 A passagem em questão, em que Kiríllov descreve seus êxtases, é a seguinte: “– Existem segundos – apenas uns cinco ou seis simultâneos – em que você sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida. Isso não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro e indiscutível. É como se de súbito você sentisse toda a natureza e dissesse: sim, isso é verdade! Deus, quando estava criando o mundo, no fim de cada dia da criação dizia: ‘É, isso é verdade, isso é bom’. Isso... isso não é enternecimento, mas algo assim... uma alegria. Você não perdoa nada porque já não há o que perdoar. Não é que você ame – oh, a coisa está acima do amor! O mais terrível é que é extraordinariamente claro e há essa alegria. Se passar de cinco segundos a alma não suportará e deverá desaparecer. Nesses cinco segundos eu vivo uma existência e por eles dou toda a minha vida porque vale a pela. Para suportar dez segundos é preciso mudar fisicamente. Acho que o homem deve deixar de procriar. Para que filhos, para que desenvolvimento se o objetivo foi alcançado? No Evangelho está escrito que na ressurreição não haverá partos, serão como os anjos de Deus. Uma alusão. Sua mulher está dando à luz?” DOSTOIÉVSKI, F., Os demônios. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, p. 571- 572.

148 nada. Outro personagem de Os demônios em relação ao qual Cioran admite sentir alguma

identificação é o agitador Stavróguin,1 um dos dois líderes (juntamente com Piotr

Stiepanovitch) da célula niilista que instaura o terror na cidadezinha em que se passa a narrativa. Mas não é tanto a ação política o que atrai Cioran a Stavróguin, senão a tristeza, a melancolia, o fastio (ennui) do personagem. Um mal-estar existencial profundo, eventualmente acompanhado de angústia e tristeza, de um mal de ser, um sentimento essencial que será tematizado pelas diferentes tradições românticas europeias, dentre elas a

russa – notadamente, o byronismo russo.2 Ao afirmar a sua simpatia pelo alucinado

Stavróguin, Cioran confessa ao mesmo tempo a sua forte inclinação romântica, animada por sua própria experiência do Weltschmerz: esse tédio angustiante e melancólico que é sentido como uma dor (Schmerz) do mundo (Welt), como o mal de estar no mundo, de existir, de viver.

2.10. A romenidade de Cioran: zădărnicie, nimicnicie, “realidades do meu sangue”