• Nenhum resultado encontrado

Qual a relação entre pensamento trágico, pessimismo e niilismo? Destarte, definamos os conceitos assim: o trágico é o teatro, a mise-en-scène, o jogo existencial, o pessimismo é

o pensamento do pior e o niilismo é o pensamento do nada.2 Tratam-se de três perspectivas

distintas, e que podem eventualmente se justapor, a partir do qual diferentes pensadores de diferentes contextos pensaram a categoria (historicamente pessimista3 por excelência) do pior. Digamos, em princípio, que o pior (le pire), segundo o pessimista (Schopenhauer), é que haja um mundo (um ser, uma natureza dada, necessária e substancial), e que esse mundo seja como é: mau, repleto de sofrimento e sobretudo sofrimento inocente. Mas Clément Rosset intende fazer do pior uma categoria puramente trágica (nem bom nem mau), dissociando-a tanto do pessimismo (Schopenhauer) quanto do niilismo. Para Rosset, o pior não é senão o acaso (hasard), aquilo que contraria toda necessidade (Ananke), toda natureza (physis), todo mundo, toda estrutura de ordem a unificar e redimir a contingência dos fenômenos. Para o pessimista, diferentemente, o pior coincide com um fatum, ou seja, com uma lei, com uma necessidade, com uma fatalidade a que todos os seres estão submetidos desde o nascimento. Mais do que no trágico (entendido aqui no sentido de um modelo cultural e espiritual antigo), é no pessimismo que o passar do tempo se tornará um problema sintomático, filosófica e existencialmente (em função da percepção do progresso, da finitude e da insignificância do indivíduo no âmbito da história universal), e neste sentido, o pessimismo já despontará, no horizonte filosófico da modernidade, como uma prefiguração do niilismo.

A categoria do pior4 está presente em grande parte dos livros de Cioran. Mas, diferentemente de Rosset (e de Nietzsche), ele não faz distinção entre pensamento trágico e

1 CIORAN, E.M., “A idade de ouro”, VII, História e utopia, p. 141.

2 DEMARS, A., Le pessimisme jubilatoire de Cioran: enquête sur un paradigme métaphysique négatif, p. 33 (tradução nossa).

3 Em latim, pessimum. O termo “pessimismo” surge pela primeira vez quase que simultaneamente através do poeta romântico inglês Samuel Taylor Coleridge (pessimism), em 1815, e de Schopenhauer (Pessimismus), em 1819. Em Coleridge, a palavra pretende designar, como em Voltaire (Cândido), um estado de coisas (mundo) péssimo, enquanto que em Schopenhauer dará o nome de toda doutrina metafísica do pessimismo. O que está em questão, como tese a ser negada, é a Teodicéia de Leibniz, segundo o qual este é o melhor dos mundos possíveis, e só não é melhor porque não poderia ser.

4 Por exemplo, nos Silogismos: “‘Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais’. Sendo nosso mal a história, o eclipse da história, devemos insistir nas palavras de Valéry, agravar seu alcance: sabemos agora que

97 pessimismo (desde que não seja sistemático). O pessimismo metafísico, tal como ele o concebe, não é senão a elaboração teórica, a tentativa de produção de sentido (o que não implica necessariamente aposta na salvação ou na redenção) sobre o pior estado de coisas. Há algo de positivo, de substancial, de ativo (da ordem do mistério, categoria não filosófica por excelência), no pior representado por Cioran, e que parece ausente da visão materialista (democritiana) de Rosset. Talvez seja o caso de recorrer à distinção entre pensar-dizer diafórico e pensar-dizer adiafórico. Enquanto que Rosset, na linha de Nietzsche, pensa por adiaphora, ou seja, as coisas são indiferentes, nem boas nem más, Cioran pensa por diaphora, ou seja, as coisas podem ser ditas boas ou más, ou ainda boas e más ao mesmo

tempo.1 O pior, como intuição fundamental do pessimismo, é da ordem dos khremata, algo

necessário, de que se precisa, de que se sente falta, e que necessita ser realizado, levado a cabo, consumido. Não apenas khremata, mas a visão cioraniana do pior parece insinuar sua identidade com o conjunto do existente (onta, as coisa do mundo), senão com o ser mesmo, em seu movimento de esquartejamento e em sua trajetória de declínio em direção ao nada.

O pior é um valor, um recurso, uma “esperança”. Diferentemente do pire segundo Rosset, o

pire para Cioran está atravessado de um sentido místico, mesmo sem o concurso da fé. Trata-

se, pois, de um desvelamento da catástrofe já em curso, de uma revelação2 do pior, no sentido

profético do livro do Apocalipse, obra que Cioran menciona em dois livros, História e utopia

(1960) e Écartèlement3 (1979).

a civilização é mortal, que galopamos em direção a horizontes de apoplexia, a milagres do pior, à idade de ouro do pânico.” CIORAN, E.M., Silogismos da amargura, p. 48.

1 “Para voltar-nos à impressão do niilismo nietzschiano na obra de Cioran, um comentário interessante de C. Barbu (La fin qui commence) nos envia a uma determinação grega do conceito. Nietzsche se refere a ele por adipahora, portanto a não-diferença ou indiferença (as coisas não são nem boas nem más, por exemplo), enquanto que o pensador romeno parece inabordável senão por uma perspectiva diaphorica (segundo a qual as coisas podem ser boas ou más, mas também boas e más). É um ponto nevrálgico de toda a posição filosófica cioraniana, bastante revelador de sua tonalidade singular, que o faz evoluir do niilismo descabelado e engajado de Nos cumes do desespero em direção a uma postura de espectador discretamente fascinado pelo seu próprio sem-sentido e curioso pelo ridículo do sem-sentido universal.” MODREANU, S., Le Dieu paradoxal de Cioran, p. 21 (tradução nossa).

2 Apokálypsis: em grego antigo, “revelação”, de kalumna, “véu”, e apo, “retirar/retirado” (portanto, desvelamento de algo oculto).

3 Não pretendemos aprofundar-nos no profetismo do pior (apocalipticismo) de Cioran, e isso por duas razões: em primeiro lugar, porque a questão extrapola o escopo de nosso recorte temático, que é o pensamento existencial de Cioran e sua écriture como corolário de todo um itinerário ou odisseia da lucidez (ainda que o tema do apocalipse, mediante os conceitos do pior e da lucidez, esteja profundamente implicado em sua visão da existência); em segundo lugar, porque a própria teologia do livro do Apocalipse é extremamente complexa e difícil de interpretar, em virtude de sua densidade simbólica. Sobre o Apocalipse em Cioran, cf. “Urgência do pior” (“Urgence du pire”), ensaio de Écartèlement traduzido por Luiz Cláudio Gonçalves e Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes, e publicado em Nota do Tradutor (N.T.) – Revista Literária em Tradução, nº 9, 2014 (disponível on-line).

98

Não é dado a todo mundo confiar em uma catástrofe cósmica, nem amar a linguagem e a maneira como é anunciada e proclamada. Mas aquele que admite a ideia e a aplaude, lerá, nos Evangelhos, com o arrebatamento do vício, as frases de efeito e os clichês que se tornaram famosos em Patmos: “...o céu se obscurecerá, a lua não dará sua luz, os astros cairão... todas as tribos da terra se lamentarão... esta geração não passará e todas estas coisas ocorrerão.” Este pressentimento do insólito, de um acontecimento capital, esta espera crucial pode converter-se em ilusão, e então aparecerá a esperança de um paraíso sobre a terra ou em outra parte; ou se transformará em ansiedade, e será a visão de um Pior ideal, de um cataclisma voluptuosamente temido.1

Como destaca Joshua Dienstag, o tempo será uma temática central de todo pessimismo filosófico na modernidade. A passagem do tempo, sua irreversibilidade, seu império, sua necessidade implacável. O “fardo do tempo” (burden of time), como formula o autor, diretamente implicado na problemática pessimista da consciência, que é

fundamentalmente consciência do tempo.2 A problemática do tempo remonta aos primórdios

da filosofia, aos pré-socráticos. Nietzsche identificará em Anaximandro de Mileto os antecedentes filosóficos do pessimismo de Schopenhauer. “‘De onde todas as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar penitência e de ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do tempo’. Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição oracular sobre a pedra limiar da filosofia

grega, como te interpretaremos?”3 Anaximandro postula o princípio cósmico da injustiça

(adikia) como necessidade e, mais do que isso, paradoxalmente, postula-a, a injustiça, como princípio de “justiça e deferência”, “segundo a ordenação do tempo”...4 Muito embora considere o sentido da sentença enigmático, oracular, Nietzsche parece não ter dúvidas em sua intuição do pessimismo a ela inerente. E, se Nietzsche despreza o ascetismo da negação de Schopenhauer, não obstante acolherá certo pessimismo, de matriz anaximandriana, relacionado à ordem do tempo (ordem da geração e da corrupção, em que a justiça se paga com injustiça), dando a esse pessimismo uma nova coloração, um novo significado (pela

1 CIORAN, E.M., “Mecanismos da utopia”, História e utopia, p. 104-105.

2“Neste sentido, a consciência de si [self-consciousness] é consciência do tempo [time-consciousness] para o pessimista, no sentido de que a consciência do tempo é o atributo fundamental e indispensável da consciência de si.” DIENSTAG, J. F., Pessimism: philosophy, ethic, spirit, p. 20-21 (tradução nossa).

3 NIETZSCHE, F., “Crítica moderna”, in: Col. Os Pensadores (“Anaximandro”). Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. Abril Cultural, 1973, p. 23.

4 “(Em discurso direto:)... Princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo.” ANAXIMANDRO, “Fragmentos”, §1 (citado por SIMPLÍCIO, Física, 24, 13), in: Col. Os Pensadores. Trad. de Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 22.

99

ótica da Vontade de potência1): “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a

morte de incontáveis seres, gerar viver e morrer são uma unidade.”2

Dienstag explica que “conforme o tempo se tornou menos uma questão de ciclos celestes e mais uma questão de sequências seculares, a ideia de uma direção ou tendência de

longo prazo da história humana tornou-se cada vez mais concebível.”3 Para sustentá-la, ele

menciona a introdução do calendário gregoriano, em 1582, e a disseminação de relógios mecânicos no século XIV, além da invenção de outras tecnologias mais ou menos contemporâneas que tornariam, pela primeira vez na história, o progresso material visível no curso de uma única vida. “Tornando-se mensurável e calculável, o tempo se tornou menos

como as estações e mais como um commodity.”4 Mas um commodity ambivalente, como um

“presente de grego”. A ironia do tempo é fazer-nos lembrar daquilo que ele, cedo ou tarde, nos arrancará, fazer-nos esquecer daquilo que nos dá: a possibilidade de existir, de criar, de

experimentar a eternidade, o absoluto no tempo – a plenitude do eterno presente. O tempo é

condição possibilidade de tudo e de nada, princípio de geração e de corrupção, império da vida e da morte, a mais justa das injustiças, tudo conforme uma necessidade cósmica. O que a “morte de Deus” acentuará, nos indivíduos e povos teologicamente órfãos, é a dimensão negativa da existência no tempo: a finitude, a decomposição, a morte. O progresso da ciência e da tecnologia conduzirá a uma hiperconsciência do tempo (a uma atenção demasiada, indevida, da passagem do tempo, portanto sua problematização), o que equivale a uma hiperconsciência de si no tempo, à consciência atormentada do fim contido nos começos, da morte já sempre presente. Não por coincidência, notará Dienstag, as representações de ampulhetas começarão a abundar nas pinturas a partir do Renascimento, muito embora já existissem desde muito antes. É que apenas a difusão dos relógios mecânicos, com a transformação na mentalidade por ela acarretada, faria com que os indivíduos e sobretudo os artistas passassem a se interessar (filosoficamente, esteticamente) pela questão do tempo (do qual a ampulheta, mais do que o relógio, oferecia possibilidades de representação muito

mais ricas em termos poéticos).5

1 Uma vez mais, a diferença de inflexão entre o discurso do Sileno, em O nascimento da tragédia, e o discurso do demônio do Eterno Retorno, em A gaia ciência.

2 NIETZSCHE, F., “O Estado grego”, Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p. 49

3 DIENSTAG, J. F., Pessimism: philosophy, ethic, spirit, p. 14 (tradução nossa). 4 IDEM, Ibid., p. 13 (tradução nossa).

5“Um detalhe menor, porém revelador, mencionado por Dohrn-van Rossum nos dá alguma noção do que isso significou: após a emergência do relógio, ampulhetas começaram a aparecer regularmente nas pinturas

100 Eis que surgem e se desenvolvem concomitantemente, na História do Ocidente, na transição entre a Idade Média e o Renascimento, consciência do tempo e da efemeridade da vida, ironia, melancolia e vanitas. Sergio Givone nota como a toda a arte romântica remonta a essa transformação, a essa ruptura no espírito e na cultura da civilização: a emergência do tempo, a acentuação da consciência de sua passagem, a intuição inquietante de que tudo passa, à exceção do tempo mesmo, sempre vigente, tornando todo “é” em “foi” no mesmo em que se o profere. “Uma constante intenção poética a conduz, como se a obcecasse: a representação daquilo que não é (que já não é ou que jamais fora) representável. São numerosos os modos, as figuras, os topoi através dos quais nela [arte romântica] se dá a

representação do irrepresentável.”1 Os pioneiros desse projeto artístico são, de acordo com

Givone, figuras do Renascimento como Albert Dürer (1471-1528), tão apreciado por

Cioran,2 e o menos conhecido Willam Hogarth (1697-1764), autor de uma gravura intitulada

The Bathos,3 ou At the world’s end (“No fim do mundo”).

Há profundas e significativas semelhanças entre essa peça de Hogarth e a famosa gravura Melancolia I, de Dürer (em que figura uma ampulheta, em meio a outros elementos pictóricos), que Cioran tem como o seu profeta:4 o sentimento da vanitas universal, da inutilidade de todo esforço e da nulidade de todas as coisas, a percepção do vazio inerente ao Ser, a intuição da negatividade inerente à existência no tempo, existência marcada pelo signo da morte e do nada. A melancolia, que aparece textualmente na representação de Dürer, emana com semelhante força do quadro de Hogarth, em que se visualiza Saturno-

renascentistas e em inventários pessoais, aparentemente porque tornaram-se mais comumente utilizados. Como tecnologia, é claro, as ampulhetas não dependiam da existência dos relógios – mas foi apenas a essa altura, após o surgimento dos relógios mecânicos, que as pessoas começaram a achanar necessário medir frequentemente períodos exatos de tempo. E o conceito de tempo como o transcorrer deum interminável fluxo de grãos idênticos é obviamente mais congruente com uma visão mais linear do tempo. Nessas pinturas, a ampulheta é também um símbolo da mortalidade e da fugacidade da existência. Como afirma Lichtenberg, em 1772, ‘as ampulhetas nos lembram não apenas de como o tempo voa, mas também do pó em que um dia deveremos decair’.” IDEM, Ibid., p. 13-14 (tradução nossa).

1 GIVONE, S., Historia de la nada, p. 123 (tradução nossa).

2 Um dos artigos de juventude, contidos no volume Solitude et destin, e marcados por um estilo acadêmico completamente distinto da linguagem poética que adotará em seus livros, é dedicado a essa pintura. Cf. “La Mélancolie de Dürer”, Solitude et destin, p. 109 (tradução nossa).

3 “O termo indica um estilo e um gênero que se encontram nas antípodas do sublime, mas que também significa o afundamento que ‘leva ao fundo’.” GIVONE, S., Historia de la nada, p. 136 (tradução nossa).

4“Dürer é meu profeta. Quanto mais contemplo o desfile dos séculos, mais me convenço de que a única imagem suscetível de relevar seu sentido é a dos Cavaleiros do apocalipse. Os tempos só avançam atropelando, esmagando as multidões; tanto os fracos quanto os fortes perecerão, inclusive esses cavaleiros, salvo um. É para ele, para sua terrível fama, que padeceram e uivaram as eras. Eu o vejo crescer no horizonte, já percebo nossos gemidos, escuto até nossos gritos. E a noite que descerá sobre nossos ossos não nos trará a paz, como trouxe ao salmista, mas o terror.” CIORAN, E.M., “Escola de tiranos”, História e utopia, p. 56.

101 Cronos, divindade do tempo, jazendo moribundo, rodeado de objetos quebrados (uma foice, um cachimbo, um arco, um sino...), e expirando pela boca uma fumaça onde se lê (de maneira que chega a ser cômica, de tão gráfico que é o escrito) “Finis” (há também a inscrição “No fim do mundo” ao longo da trave de madeira que faz parte de uma forca). Diferentemente

de sua representação na Antiguidade, a melancolia aparece aqui “com uma conotação

religiosa, mas opera um deslocamento em direção a dimensões que com a religião pareciam querer ‘fechar-se’”; trata-se, de acordo com Givone, da “afecção niilista por excelência”, a

melancolia como “desperatio Dei”.1 Cioran será o primeiro a nos lembrar que a modernidade

filosófica e cientifica é atormentada, desde seus começos, pelas visões apocalípticas dos antigos profetas (notadamente Newton). Com o progresso vem a ansiedade, esse “fanatismo

do pior”.2 O que teria sido intuído nessas primeiras representações do fim não é senão aquilo

que a pós-modernidade artística problematizará como o fim da representação. Tudo está

consumado, tudo já aconteceu desde sempre – a plenitude se confunde com a aniquilação,

coincide com ela, assim como o começo e o fim. Omnia consummata sunt. Contemporâneo de uma época tardia, demasiado madura, demasiado desenganada, Cioran não poderá olhar senão com ironia e incredulidade para essas representações tão terríveis quanto fantasiosas,

demasiado pueris, dir-se-ia ingênuas. “O final da história? O fim do homem? É sério pensar

nisso? São acontecimentos longínquos que a Ansiedade – ávida de desastres iminentes –

deseja a todo custo precipitar.”3

Sim, o tempo – “granito” contra o qual se choca a vontade (Giacoia) – é implacável,

intransigente, indiferente a nossos anseios por fixidez e permanência, arrastando e devorando

tudo o que nasce sob a sua esfera – “o tempo não para”, como cantava Cazuza. Eis, segundo

Nietzsche, o grande problema, a razão inconfessa de toda metafísica, de todo dualismo, do niilismo mesmo: a impotência da vontade face o transcurso do tempo, em virtude da qual o homem se torna um “animal doente”, pois ressentido. Pois, segundo Nietzsche, o ressentimento fundamental não é senão o ressentimento que tem por objeto não um ser ou

um acontecimento determinado, mas o tempo4 e seu império da finitude, da mortalidade

1 GIVONE, S., Historia de la nada, p. 132. 2 CIORAN, E.M., Silogismos da amargura, p. 96. 3 IDEM, Ibid., p. 99.

4“Trata-se, essencialmente, de uma enfermidade ou indisposição da vontade, uma debilidade que se expressa como aversão voltada contra um obstáculo intransponível, que ultrapassa suas forças e poderes. Esse elemento aversivo não é mais do que o tempo e a experiência do passar no tempo. O escoar, a impermanência do fluxo, o perene diluir-se de todo presente num “foi”, esse é o granito contra o qual se partem todas as garras com as quais a vontade luta por aferrar-se ao rochedo do estável, a qualquer porto seguro, ao ponto fixo anelado por Arquimedes, e que Descartes reedita ao instaurar filosoficamente a modernidade cultural. A finitude é o

102 de onde a impotência da vontade e, em primeiro lugar, da razão; independentemente do que se deseja, imagina, pensa, nada mudará a relação de sujeição do homem à passagem do

tempo. Como se lê ao início do filme francês Irreversible, le temps détruit tout (“o tempo

destrói tudo”).

Cioran busca pensar contra o tempo, em dois sentidos: tendo-o como objeto de seus

ataques (o tempo presente) e no sentido contrário a ele, na contramão do tempo, “virando as

costas ao tempo”.1“Minha missão é matar o tempo e a, por sua vez, é me matar. Fica-se à

vontade entre assassinos.”2“Matar o tempo” é o meio de reencontrar, caso possível, ainda

que por instantes fugazes, esse tempo perdido, o não-lugar essencial anterior ao nascimento

e à consciência – à chute dans le temps. Trata-se de uma metafísica da regressão que se

desenvolve – a partir da melancolia3 de um presente sempre inatual, sempre passado, de um

futuro que morre antes mesmo de nascer, e da nostalgia de uma unidade perdida, de uma

plenitude ausente, de um absoluto irrealizável – em direção ao Essencial: à vida e à morte e

a consciência lúcida que se insere entre elas para vê-las esvanecer-se no vazio universal. Mas

o Essencial – “domínio estranho às dúvidas habituais”4 – repele a consciência, que deve

assim “reintegrar-se na eterna farsa” e “cumprir sua tarefa de falso vivente”.5 Ou seja,

inimigo odiado pela vontade impotente, que por isso se vinga do passar no tempo, ficcionando além-mundos, fortalezas metafísicas imaginárias, consolos na eternidade a que só a ascese pode conduzir, protegidas e asseguradas contra a corrente deletéria do vir-a-ser, contra a instabilidade dos desejos, dos sentidos, das constringentes pressões do corpo, das mazelas do mundo.” GIACOIA, O., Nietzsche: o humano como memória e como promessa, p. 11.

1“Ontem, hoje, amanhã: categorias para uso de criados. Para o ocioso suntuosamente instalado no Desconsolo, e ao qual todo instante aflige, passado, presente e futuro são somente aparências variáveis do mesmo mal, idêntico em sua substância, inexorável em sua insinuação e monótono em sua persistência. E esse mal possui a mesma extensão do ser, é o ser mesmo.

Fui, sou ou serei, é uma questão de gramática e não de existência. O destino – enquanto carnaval temporal – presta-se a ser conjugado, mas, despojado de suas máscaras, mostra-se tão imóvel e tão desnudo como um epitáfio. Como se pode conceder mais importância à hora que é do que a que foi ou será? O equívoco no qual vivem os criados – e todo homem que se apegue ao tempo é um criado – representa um verdadeiro estado de graça, um obscurecimento encantado; e este equívoco – como um véu sobrenatural – cobre a perdição à qual se expõe todo ato engendrado pelo desejo. Mas, para o ocioso desenganado, o puro fato de viver, o viver puro