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Uma das chaves de leitura mais importantes para se adentrar o pensamento de Cioran é Pascal, um dos poucos franceses por quem ele nutriu uma admiração incondicional. Interesse pelos moralistas à parte, Pascal e Baudelaire são os únicos franceses que contam verdadeiramente para ele, enquanto que os outros seriam demasiado cerebrais e pouco

passionais.2 Em sua fatuidade, Cioran gostaria de se considerar um Pascal sem a fé, exilado

e perdido no século XX de domínio tecnológico sobre a terra (mais viável será fazer experimentações baudelairianas no auge de uma modernidade agonizante). É o Pascal dividido entre a fé e a dúvida, angustiado diante do silêncio de um universo que ignora seus apelos, que interessa Cioran. A problemática moderna do absurdo (Camus) encontra em Pascal, em sua polêmica com Descartes e a geometrização do mundo, seus antecedentes

eu seja niilista. Pois o niilista no sentido corrente é um tipo que põe tudo abaixo com violência, com segundas intenções mais ou menos políticas ou Deus sabe lá o quê! Mas no meu caso, não tem nada a ver com isso. Então, se poderia dizer que sou niilista no sentido metafísico. E mesmo isso não recobre nada. Aceito melhor o termo cético – ainda que eu seja um falso cético. Se preferir, eu não creio em nada, é bem nesse sentido que... e mesmo isso, não é verdade!” CIORAN, E.M., Entretien avec Jean-François Duval, in: Entretiens, p. 43 (tradução nossa).

1 JACCARD, R., A loucura, p. 37.

2 “Pascal e Baudelaire – os únicos franceses verdadeiramente apaixonados. Os outros parecem premeditados ou então delirantes. Não há literatura mais cerebral que a francesa. Eu só tenho afinidade com a russa.” IDEM, Cahiers: 1957-1972, p. 96 (tradução nossa).

116 históricos na modernidade filosófica. O pensamento de Pascal se constitui por uma série de dualismos a perpassar as diferentes esferas da existência. Corpo e alma, homem interior (infinito) e homem exterior (finito), natureza pré-adâmica e natureza decaída (concupiscente), natureza e sobrenatureza, graça e des-graça, etc.. São, contudo, dualismos (mais precisamente, dualidades) concebidos e vividos de modo agônico, logo, trágico, pelo ser humano (de tal maneira que reclama a fé cristã como condição de redenção, de

reconciliação com a condição trágica do humano1). Não há síntese natural entre as

componentes dessas dualidades. “O homem é, em si mesmo, o objeto mais prodigioso da

natureza; pois não pode conceber nem o que é corpo nem, menos ainda, o que é espírito e,

ainda menos, de que modo pode um corpo unir-se a um espírito.”2 Descartes buscou explicá-

lo pela glândula pineal, o que é uma explicação fisiologizante, se não racionalista. Pascal é mais cético do que Descartes. O drama do ser humano consiste justamente, para empregar uma terminologia kierkegaardiana, nesta “síntese” a realizar, e, de certo modo, irrealizável, pois realizada desde sempre. Leitor de Pascal, porém, ávido de heresia, Cioran extrapola a teologia oficial, recorrendo ao Evangelho gnóstico de Tomé:

“Maldita essa carne que depende da alma e maldita essa alma que depende da carne!” – é no coração de certas noites que apreendemos todo o alcance dessas palavras do Evangelho de Tomé. A carne boicota a alma, a alma boicota a carne; funestas uma à outra, são incapazes de coabitar, de elaborar conjuntamente uma mentira salutar, uma ficção de envergadura.3

1 Não obstante, a posição de Pascal se caracteriza por certa recusa à fuga mundi, pela recusa à renúncia à vida mundana e pela exigência de uma religiosidade inserida no mundo e no tempo (no século), diferentemente da posição de outro jansenista, Martin de Barcos (1600-1678), que pregava a exigência de um retrait (“retração”, “retiro”), de uma recusa do mundo (concupiscente, pecaminoso) a favor da pureza ascética de uma vida totalmente voltada a Deus (ao absoluto, à eternidade) e a ele dedicada. Com isso, Pascal parece preocupado em manter certa tensão (trágica, conforme pensamos) entre o humano e o divino, o temporal e o eterno, a potencialidade da graça e a atualidade da des-graça, evitando a supressão (em alemão, Aufhebung) da contradição e do paradoxo (uma vez mais, trágico) que dela deriva. Cf. LEOPOLDO E SILVA, F., “Pascal: condição trágica e liberdade”, in: Cadernos de lógica e filosofia da ciência, Campinas, série 3, v. 12, nº 1-2, janeiro-dezembro de 2002, p. 346.

http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Franklin%20Leopoldo%20e%20Silva.pdf

2 E prossegue Pascal, citando Agostinho: “Essa a sua dificuldade máxima e, não obstante, a sua própria essência: Modus quo corporibus adhaerent spiritus compreendi ad hominibus non potest, et hoc tamen homo est (“A maneira por que se acha o espírito unido ao corpo não pode ser compreendida pelo homem e, não obstante, é o homem”, Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XXI, 10, citado por Montaigne).” PASCAL, B., Pensamentos, II (“Miséria do homem sem Deus”), 72, in: Coleção “Os Pensadores”. Trad. de Sérgio Melliet. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 56.

3 “« Malheur à cette chair qui dépend de l’âme et malheur à cette âme qui dépend de la chair ! » – c’est au coeur de certaines nuits que nous saisissons toute la portée de cette parole de l’Évangile selon Thomas. La chair boycotte l’âme, l’âme boycotte la chair ; funestes l’une à l’autre, elles sont incapables de cohabiter, d’élaborer en commun une mensonge salutaire, une fiction d’envergure”. CIORAN, E.M.,“Sur la maladie”, La chute dans le temps, in: Œuvres, p. 1123-1124 (tradução nossa).

117 A importância conferida por Cioran ao ceticismo, por um lado, e à mística por outro, face ao problema do conhecimento e da existência (e do ceticismo e da mística conjuntamente, como tensão de contrários, conjunção agônica), fica clara neste fragmento de Lacrimi şi sfinţi (“Lágrimas e santos”), seu terceiro livro romeno, resultado, como o afirma o próprio autor,1 de uma crise religiosa:

Nada mais fácil do que se desembaraçar da herança filosófica, pois a filosofia tem raízes que detêm em nossas incertezas, enquanto que as raízes da santidade ultrapassam em profundidade o próprio sofrimento. A suprema coragem da filosofia é o ceticismo. Para além dele ela só reconhece o caos.

Um filósofo só escapa à mediocridade pelo ceticismo ou a mística, essas duas formas de desespero face ao conhecimento. A mística é uma evasão para fora do conhecimento, o ceticismo, um conhecimento sem esperança. Duas maneiras de dizer que o mundo não é uma solução.2

Uma das coisas que Cioran tem em comum com Schopenhauer e com Nietzsche é a herança moralista, e Pascal poderia ser dito, pelo contexto em que se insere, e pela natureza do seu discurso, um moraliste. Mas não apenas. Os moralistas, por sua vez, são herdeiros dos libertins, como La Mothe la Vayer, que representam a expressão filosófica e literária do humanismo e do relativismo cultural ensejados pela descoberta, mediante as explorações marítimas, de “bons selvagens” aparentemente isentos de todo “pecado original”. O que mais desconcertava é que esses povos ditos primitivos viviam em maior harmonia e equilíbrio do que os europeus. O resultado cultural, no que se refere à intelecção europeia do mundo e do homem até então, foi o questionamento sistemático da validade da crença no pecado original. “Ora, dada a estreita relação entre os dogmas cristãos, principalmente o da Encarnação, e a concepção cosmológica tradicional, o que se colocava em questão era exatamente a unidade e a coerência do sistema de intelecção do mundo e do homem que até então alimentara o

1“E então algo se passou, sabe, eu escrevi um livro – meu segundo ou terceiro livro – que se chama Lágrimas e santos. [...] Esse livro foi extremamente mal recebido; primeiramente, o editor – o livro estava quase pronto – estava em Bucareste e eu estava, nessa época, em Braşov, ele me telefonou para me dizer que não iria publicá- lo, pois ele não tinha o lido e, no momento da publicação, disseram-lhe: ‘Você leu esse livro?’ Então, ele o leu e me disse: ‘Eu fiz minha fortuna com a ajuda de Deus, e não posso publicar o vosso livro.’ (Risos) Isso é balcânico. Eu lhe disse: ‘Mas é um livro profundamente religioso’. Ele retrucou: ‘Pode ser, mas não quero fazê-lo.’ Era o ano em que eu vim para a França. Eu lhe disse: ‘Devo deixar o país, devo ir a Paris em um mês. – Pode ser, mas não quero o seu livro.’ Eis tudo o que ele respondeu! Naquele momento, fui a um café, eu estava desesperado, e me dizia: ‘O que vou fazer?’ Eu amava bastante esse livro, porque ele era o fruto de uma crise religiosa, e finalmente encontrei um editor, ou, antes um tipógrafo, um impressor que me disse: ‘Eu vou publicá-lo’.” IDEM, Entretien avec Michael Jakob, in: Entretiens, p. 288-289. (tradução nossa)

2 “Rien de plus facile que de se délester de l’héritage philosophique, car la philosophie a des racines qui s’arrêtent à nos incertitudes, tandis que les racines de la sainteté dépassent en profondeur la souffrance elle- même. Le suprême courage de la philosophie est le scepticisme. Au-delà de lui elle ne reconnaît que le chaos. Un philosophe n’échappe à la médiocrité que par le scepticisme ou la mystique, ces deux formes du désespoir face à la connaissaince. La mystique est une évasion hors de la connnaissance, le scepticisme une connaissance sans espoir. Deux manières de dire que le monde n’est pas une solution.” IDEM, Des larmes et des saints (Lacrimi şi sfinţi), Op. cit. p. 299 (tradução nossa).

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pensamento europeu”.1 Pode ser que o antigo cinismo de Diógenes encontre nesse contexto

um solo fértil para ser reavivado. O que tem início com os libertins culminará, por um lado, no rigorismo jansenista, e por outro, em Sade. Cioran tem um ensaio, “Portrait de l’homme civilisé” (Retrato do homem civilizado), logo após “L’arbre de vie” (A árvore da vida), em La chute dans le temps, em que expõe, numa combinação de cinismo anti-prometeico e

retórica moralista-libertina, as contradições e malefícios da civilização.2 O moralismo de

Pascal, contudo, não é um moralismo naturalista (libertino), mas espiritualista e ascético. Dentre os moralistes (La Rochefoucauld, Chamfort, Bruyère), Pascal se destaca para Cioran pelo sentido agudo da transcendência, pela sensibilidade ao mistério, pela intuição de certos “abismos”. Comparado a Pascal, os moralistes pareceriam “maniqueístas de salão, seduzidos por um dualismo anedótico”, incapazes de uma visão mais vertical e mais profunda sobre a condição humana. Mais do que todos, Pascal teria apreendido “o Essencial”, para empregar a terminologia cioraniana:

Entre os moralistas somente Pascal se debruçou sobre a dimensão metafísica da existência humana (também não consta que ele tenha reparado em algum autor de retratos). Ao lado dele, todos os outros, sem exceção, parecem fúteis porque não perceberam nossa miséria, e sim nossas misérias, esta soma de insuficiências, de enfermidades inevitáveis e insignificantes, que exprimem apenas um aspecto de nossa natureza. Mas se não perceberam o mal capital, intrínseco, que lhe é inerente, não devia escapar-lhes, em compensação, esse mal medíocre e geral, em luta com um bem do mesmo quilate. Maniqueístas de salão, seduzidos por um dualismo anedótico, hostis ou inaptos a essa solidão em que se debate o homem interior, frente a frente consigo ou com Deus. Não será significativo que quando por acaso se voltam para Pascal é para secularizar sua visão da concupiscência adaptando-a ao estudo dos costumes e rebaixando-a ao nível de uma “psicologia” sem trevas?3

1 LEOPOLDO E SILVA, F., “Pascal: condição trágica e liberdade”, Op. cit., p. 340.

2 “O encarniçamento em banir da paisagem humana o irregular, o imprevisto e o disforme beira a indecência. Pode-se sem dúvida deplorar que em certas tribos ainda se devore os anciãos moribundos; quanto a perseguir sibaritas tão pitorescos, com isso não consentiremos jamais, sem contar que o canibalismo representa um modelo de economia fechada, e também um hábito propício a seduzir, algum dia, um planeta abarrotado. [...] Totalmente diferente nos parece a situação dos analfabetos, massa considerável, presa a suas tradições e a seus privilégios, contra a qual se lança com uma virulência que nada justifica. Afinal, é um mal não saber ler nem escrever? Com toda franqueza, não me parece. Vou ainda mais longe e digo que quando o último iletrado houver desaparecido, nós poderemos vestir luto pelo homem.

O interesse que o civilizado tem pelos povos ditos primitivos é dos mais suspeitos. Inapto a se suportar mais, se dedica a descarregar sobre eles o excedente de males que o sobrecarregam, os incita a experimentar suas misérias, conjura-os a enfrentar um destino que ele não pode mais desbravar sozinho. Tendo que considerar a sorte que eles tiveram de não ter ‘evoluído’, experimenta em relação a eles os ressentimentos de um aventureiro desconcertado e desequilibrado. Com que direito permanecem à parte, fora do processo de degradação que ele suporta há tanto tempo e ao qual não consegue se subtrair? A civilização, sua obra, sua loucura, lhe aparece como um castigo que ele se inflige e que gostaria de impor a aqueles que escaparam dela até aqui.” CIORAN, E.M., “Portrait du civilisé”, La chute dans le temps, Op. cit., p. 1084 (t.d.a).

119 Pascal teria, como Dostoiévski, tocado “certo abismos” dos quais os moralistes, demasiado atentos ao aspecto exterior, acessório, superficial da existência, teriam sido incapazes, perdendo de vista assim o essencial. Antes de ser filósofo e cientista, Pascal é um místico, um “candidato” à santidade. O que Cioran compartilha com ele é a intuição da filosofia como mero divertissement da razão, esquive em relação ao Essencial, de que os verdadeiros problemas começam “após o último capítulo de um imenso tomo, que põe o ponto final em sinal de abdicação ante o Desconhecido, onde se enraízam todos os nossos instantes, e com o qual precisamos lutar”, a intuição de que “só começamos a viver realmente no final da filosofia, sobre suas ruínas, quando compreendemos sua terrível nulidade, e que era inútil recorrer a ela, incapaz de qualquer auxílio.” Esse “mal capital” inerente à condição humana, que não teria escapado a Pascal (neste sentido, mais do que um filósofo), tampouco estará ausente da antropologia negativa de Cioran, sendo determinante para que seu pensamento (religioso, mas herético, gnóstico) acabe sendo, em muitos aspectos, extemporâneo em relação ao contexto histórico em que se insere. Enfim, o Pascal de Cioran é o filósofo do drama existencial em que o homem interior, o espírito, exilado do mundo, se debate com sua solidão essencial, “frente a frente consigo ou com Deus”, em um deserto de certezas. “Concebidos nas noites de vigília, sem nada de incomodamente luminoso, os Pensamentos, ruminações de um insone contumaz, de um espírito que se revolve e se crispa no obscuro, não serão nunca, não digo compreendidos, mas sentidos, por aqueles que não

veem claro senão em pleno dia.”1

O ser humano é retratado em Pascal como um bateau sans port, um “barco sem

porto” à deriva na existência, metafisicamente exilado de sua origem, duplamente exilado: tanto em relação à natureza, sobre a qual se eleva pela cultura (nomos), quanto em relação à sobrenatureza. O homem cai no estado de natureza, ao mesmo tempo que se projeta para além dela. Ele vive, do alto de sua consciência, a situação aporética de desamparo e orfandade da criação, a criatura abandonada pelo seu Criador. Da perspectiva humana, pouca ou nenhuma diferença, fenomenologicamente falando, entre o Deus absconditus e nenhum Deus: o Deus silencioso equivale, em última instância, a um “Deus exilado”,2 no

limite, a um Deus inexistente – ainda que Deus tenha estado desde sempre, em certo sentido

e em alguma medida, escondido, silencioso, inacessível. Essa nova configuração

1 IDEM, Ibid., p. 14.

120 cosmológico-existencial, dramaticamente apontada por Pascal há mais de três séculos, é o que resultará no “mundo absurdo” de Albert Camus, um mundo opaco e indiferente ao entendimento humano, quando não hostil, a seus interesses e anseios os mais profundos. Por fim, Cioran herdará de Pascal certa percepção do “escândalo” de uma natureza entregue a si mesma (concupiscente, violenta, promíscua), uma natureza decaída e des-graçada, no quadro de uma hermenêutica teísta, portanto não ateísta (como em Schopenhauer), da existência e do mundo.

Em se tratando de um pensador que prefere mil vezes Pascal a todos os moralistes

juntos – “maniqueístas de salão, seduzidos por um dualismo anedótico, hostis ou inaptos a

essa solidão em que se debate o homem interior” –, não deixa de surpreender quão

importante era para ele o projeto de Antologia do retrato de Saint-Simon a Tocqueville – o

que Cioran realizaria, tardiamente,1 dedicando ao volume um belo prefácio. Este seria o seu

adieu à l’homme (“adeus ao homem”). Por que despedir-se com uma coletânea de perfis literários de figuras mais ou menos ilustres do século XVIII (e início do XIX) francês? Qual o significado profundo, para Cioran, desses retratos de “maniqueístas de salão”?

As figuras retratadas na Antologia – Saint-Simon, Mme Du Deffand, Talleyrand,

Mme de Staël, Chateaubriand, Saint-Beuve, entre outras – são os legítimos herdeiros, no

século XVIII, dos moralistes do século XVII – La Rochefoucauld e La Bruyère, mas também

Vauvernagues, Chamfort, Joubert, Rivarol –, e continuadores do espírito mordaz desses

autores no sentido de dissecar, por uma espécie de psicologia dos costumes, o ethos (les mœurs) dominante na corte e nos salões. “Em um tal contexto, nós assistimos à demolição atenta de todas as instâncias dos comportamentos dos indivíduos, participando da eliminação sistemática das motivações nobres ou bem intencionadas e ao desvelamento das razões profundas que os determinam, frequentemente ignóbeis e hilárias, nutridas pelo ressentimento, pela covardia, pela inveja, pela vaidade, pelo desejo de glória e pela vontade de potência.”2 O que caracterizaria o discurso dos filósofos moralistas é a intenção de unidade entre pensamento e estilo, conteúdo e forma, essência e aparência; a brevidade e o caráter assistemático de seus escritos testemunham a constituição histórica de um novo gênero discursivo (neste quesito, bastante tributário de Montaigne) e de um novo olhar, individualizado, dessacralizado, sobre o homem e o mundo. A reflexão sobre a importância

1 “Após a Antologia dos moralistas, escrever: A queda no tempo.” CIORAN, E.M., Cahiers: 1957-1972, p. 41 (tradução nossa).

121 do estilo na história francesa extrapola em muito o contexto dos moralistas dos séculos XVII e XVIII; é tributária de Racine e, enunciada objetivamente, conhecerá seus desdobramentos ulteriores apenas tardiamente, em autores como, por exemplo Flaubert (1821-1880) e Proust (1871-1922). Em todo caso, é na leitura exaustiva dos chamados moralistes que Cioran encontrará, na França, sua principal lição de estilo, o que explica em grande medida o porquê de Cioran dar, amiúde, a impressão de um classicismo canônico ultrapassado, e que seria indissociável, na época em que estava em pleno vigor, de certa ética baseada na elegância e do respeito à aparência.

Quando se considera o estilo de nosso tempo, não se pode deixar de perguntar sobre as razões de sua corrupção. O artista moderno é um solitário que escreve para ele mesmo ou para um público sobre o qual não tem nenhuma ideia precisa. Ligado a uma época, esforça-se para exprimir seus traços; mas esta época é forçosamente sem rosto. Ele ignora a quem se dirige, não se representa seu leitor. No século XVIII e no seguinte, o escritor tinha em vista um círculo restrito do qual conhecia as exigências, o grau de finesse e de acuidade. Limitado em suas possibilidades, não podia se furtar às regras, reais ainda que não formuladas, do gosto. A censura dos salões, mais severa que a dos críticos de hoje, permite a eclosão de gênios perfeitos e menores, submetido à elegância, à miniatura e ao finito.1

A importância dos moralistes para Cioran é dupla: estética e ética. Trata-se de um gênero discursivo híbrido em que a forma é inseparável do conteúdo. O aforismo é um gênero à parte, e os moralistes constituem uma de suas principais matrizes históricas na modernidade filosófica. O discurso desses “gênios perfeitos e menores, submetidos à elegância, à miniatura e ao finito” constituiu o outro, o avesso do racionalismo nascente na França: não o cogito transcendental, mas carácteres empíricos. A preocupação com o estilo como declaração ética, mais do que estética (trata-se de um distintivo em meio à décadence moderna), só terá sentido para Cioran escrevendo em francês (é uma preocupação ignorada em sua escrita romena). E o modelo desse estilo ele buscará nos autores franceses dos

séculox XVII e XVIII, esses moralistes para quem a ética da brevidade (a “elegância da

miniatura”) tinha uma razão prática de ser, fora do quadro de uma racionalidade metafísica: o domínio de si, a soberania da inteligência sobre a tempestade das paixões, sobre os maus instintos. Na Alemanha, a forma aforística dos moralistas será cultivada por Lichtenberg, Nietzsche, Schopenhauer, entre outros, mas talvez tenha sido barrada pelo espírito de sistema

1 CIORAN, E.M., “O estilo como aventura”, La tentation d’exister, in: Traduzires – Revista do programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UnB, vol. II, nº 2, 2013, p. 128.