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A obra de Cioran é um caso sintomático daquilo que se poderia chamar o “retorno

do negado” ou “do excluído” na história, e cuja presença, resgatada dos porões escuros da

desrazão,1 torna-se agora apavorante. O que retorna? Não é de hoje; trata-se de algo cuja

exumação Nietzsche, continuando um trabalho iniciado pelos românticos de Iena, já havia realizado bravamente: em primeiro lugar, certo espírito trágico que reintroduz, na linha das filosofias da vontade alemãs (Schopenhauer, Mainländer, Banhsen, Nietzsche, Klages),

certo “paradoxo sólido”2 que tende a negar a primazia do racional (esse “otimismo

dialético”3), contraditando os princípios que se consagrarão como os valores cardinais de

toda filosofia reputada séria: ordem, unidade, necessidade, identidade, harmonia, justiça, bem. Ainda que a tragédia seja um patrimônio espiritual grego, e o problema do mal, conforme chegou até nós, se origine no interior de uma cosmovisão bíblica (universo como Criação de um único Deus, onipotente e onisciente, infinitamente justo e bondoso), portanto semítica, na modernidade será forçoso vincular – através da experiência, doravante sem

sentido nem justificação transcendente, do sofrimento e da morte – sentimento trágico da

existência e consciência negativa do mal. A tragédia é o que entra em cena conforme Deus a abandona, e o trágico não tardará a ser identificado ao ateísmo, que é a consequência natural do progresso científico. Pelo viés de um espírito longamente cristianizado, a repercussão profunda da morte de Deus levará à naturalização de uma associação que é, no fundo, artificial e retórica: a associação, que se tornará confusão, entre o trágico e o niilista, por intermédio da associação, ela também impaciente e mal-intencionada, entre ateísmo e ceticismo. Disso resultaria uma transposição indevida, ao contexto da mentalidade grega,

1 BLANCHOT, M. “O esquecimento, a desrazão”, A conversa infinita, II (A experiência-limite), p. 178. 2 “Nossos sonhos de um mundo melhor se fundam em uma impossibilidade teórica. O que há de mais espantoso no fato de que, para justificá-los, seja preciso recorrer a paradoxos sólidos?” CIORAN, E.M., “Mecanismo da utopia”, História e utopia, p. 110.

3 “Pois quem pode desconhecer o elemento otimista existente na essência da dialética, que celebra em cada conclusão a sua festa de júbilo e só consegue respirar na fria claridade e consciência?” NIETZSCHE, F., O nascimento da tragédia (ou Helenismo e Pessimismo), § 14. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 86-87.

67 antiga e arcaica, de uma categoria tecnicamente inexistente para os gregos, por se tratar de um problema que, da forma como tendemos a colocá-lo, sequer fazia sentido para eles: o mal. Pensar o não-ser não é, ainda, o mesmo que perguntar: Unde malum? Eis, ao nosso ver, a pergunta que não quer calar, a Grundfrage que subsiste e insiste em se recolocar na (e pela)

obra de Cioran – escrevendo após Nietzsche, mas também após algo que Nietzsche não viveu

para testemunhar: duas grandes guerras, a bomba atômica, os campos de concentração nazistas e os gulags, os totalitarismos diversos e a ascensão estúpida do niilismo que ele mesmo vaticinara para os séculos vindouros.

Trata-se, então, de pensar o mal (um problema teológico antes que filosófico), o que não significa racionalizá-lo, explicá-lo, reduzi-lo a uma causa naturalmente compreensível e manejável. Com efeito, se há uma mistura de ceticismo e pessimismo, niilismo e misticismo em Cioran, essas atitudes parecem exprimir, em seu conjunto, diferentes maneiras de tentar “responder” ao problema do mal, de fazer face a ele. O mal, admitindo-

se que é de fato uma preocupação filosófica obsessiva1 de Cioran, seria a pedra de tropeço

(skandalon) à qual essas tendências e atitudes seriam diferentes formas de reação; é a pedra angular sobre a qual o seu pensamento se desenvolverá em duas direções distintas e dificilmente conciliáveis: o ceticismo (fenomenalismo, empirismo, suspensão do juízo, senso-comum) e o pessimismo (mais do que existencial, ontológico, ainda que não

sistemático).2 O pensamento de Cioran descreve assim um retorno ao ponto em que

Descartes abandona, tão logo alcançado o seu ponto arquimediano, a dúvida hiperbólica.

Que coincidência maior do que entre o seu mauvais démiurge3 e o “gênio maligno”4? De

1 Uma “obsessão” pouco pragmática e nada fecunda, se poderia argumentar, e que está no cerne de seu deslocamento em relação às filosofias do século XX (notadamente o existencialismo) e modernas em geral. 2 “Eu tentei fazer a apologia do ceticismo e também do pessimismo, mais isso não é importante. O que é importante é o que se vive, o que se experimenta, e como isso é sentido.” CIORAN, E.M., Entrevista com Hans-Jürgen Heinrichs (“E. M. Cioran: cafard”), in: Magazine littéraire, nº 373, Paris, fevereiro de 1999 (tradução nossa).

3 Em sua história alternativa da filosofia que tem como eixo temático o problema filosófico do mal na modernidade, Susan Neiman explica que, muito embora opte por fixar o início do Iluminismo em 1697, com a publicação do Dictionnaire de Pierre Bayle, “há boas razões para escolher uma data anterior. Uma delas seria explorar a imagística gnóstica na pessoa creditada como o pai da filosofia moderna, René Descartes. O gênio do mal de Descartes não é um experimento mental, mas sim uma ameaça. Ao contrário do seu pálido herdeiro, o cérebro numa cuba, o diabo era uma preocupação real. E se o mundo tivesse sido criado por um Ser cuja única preocupação fosse causar-nos tormento e ilusão? Deus sabe que às vezes parece ser assim.” NEIMAN, S., O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, p. 22.

4 O gênio maligno representa a dúvida extrema ou ‘hiperbólica’, levada a seu limite último; sua aparição prepara o terreno, portanto, para Descartes chegar a seu ‘ponto arquimediano’ – a certeza do meditador quanto a sua própria existência, que sobrevive a todos os esforços do gênio para enganar de todas as maneiras possíveis (ver cogito ergo sum). COTTINGHAM, J., “Gênio maligno”, in: Dicionário Descartes. Trad. de Helena Martins. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 72.

68 Pascal a Schopenhauer, de Leopardi a Berdiaev, Cioran se insere em uma linhagem de autores que parecem compartilhar, de uma maneira ou de outra, certa inquietude metafísica face à realidade incompreensível (o mistério) do mal. A morte de Deus, como figura da secularização do pensamento pela ciência, só complicará o problema: o mal, e o sofrimento absurdo que ele produz, seguirá existindo mesmo quando já não houver mais nenhum Deus no horizonte para dar-lhe um sentido. O mal moral é a sobrevivência, após a morte de Deus, do antigo nexo causal entre mal moral e mal natural, pois o moral é a maneira natural de ser

do homem. Ou seja, a distinção – tipicamente moderna – entre males morais e naturais1 (que,

em última análise, sequer poderiam ser chamados de males; são a própria natureza sendo ela mesma) não resolve em nada o problema; pelo contrário, talvez só o torne mais inabordável, mais abismal. Descartes buscará solucionar o problema de uma forma tão moderna quanto “engenhosa”:2 vinculado tacitamente a faculdade volitiva ao livre-arbítrio, ele inova ao afirmar que a faculdade pela qual nos assemelhamos a Deus não é, como se pensava até

então, o entendimento, mas a vontade.3 É pelo querer, este sim infinito, como a liberdade de

afirmar e de negar, que somos imago dei, e não pela ciência. Fomos dotados para conhecer em muito menor proporção do que fomos feitos livres para agir, de onde a tese paradoxal:

“aquilo que nos faz semelhantes a Deus é também aquilo que nos leva ao erro e ao pecado.”4

Não é difícil ver de que maneira esse paradoxo vai culminar no pessimismo de Schopenhauer: já não somos imago dei, nem pelo saber nem pelo querer, pois tudo o que há é uma Vontade cósmica cuja natureza cega e irracional não oferece nenhum modelo de virtude. Cioran hesitará em assumir a Vontade como absoluto, oscilando entre esse paradigma metafísico moderno e o modelo teológico antigo criatura-Criador, só que por um viés heterodoxo: somos feitos à imagem e semelhança do deus mau dos gnósticos, o demiurgo. De resto, é digno de nota que a lucidez reivindica por Cioran, atribuindo à negação uma função de primeira ordem, como forma ativa de um dúvida cética que se esforça em não fraquejar, reduz o essencial da faculdade de juízo e de escolha não a uma dialética, mas

1Que, em última análise, sequer poderiam ser definidos como “males”, pois não resultam senão das forças e transformações da natureza: apenas a natureza sendo ela mesma, por mais que seus movimentos causem destruição, dor e morte (como ademais, também geram vida e prazer). Susan Neiman explicita que o terremoto de Lisboa (1755), a julgar pelas reações diversas que causou (por exemplo, de Voltaire e de Kant), seria decisivo para consagrar essa divisão.

2“A solução de Descartes é engenhosa, muito significativa do ponto de vista da promoção de valores modernos, e consiste numa aplicação do racionalismo como estratégia de justificação.” LEPODOLDO E SILVA, F., “A incompreensibilidade do mal”, in: Revista Cult, ano 13, nº 150, setembro de 2010, p. 72.

3 IDEM, Ibid., p. 72. 4 IDEM, Ibid., p. 72.

69 a uma luta (polemos), sem fim nem solução, entre vontade de afirmação e vontade de negação.

Eis que o skandalon do mal que conduz Cioran ao ceticismo é o mesmo que o leva a contradizer o próprio ceticismo, por vezes dando mostra de um pessimismo apocalíptico,

carregado de subjetividade. “Estamos afogados no mal”;1 “História universal: história do

Mal”,2 “mesmo o bem é um mal”:3 afirmações contundentes que mereceriam uma análise

crítica, e que nos levam a pôr em dúvida as leituras que tendem a esvaziar o discurso de Cioran de todo alcance metafísico, de toda intencionalidade ontológica, enfim, de todo

referência a algo que estaria, a bem dizer, fora do discurso, no dado, no próprio “real”, e que

informa, por assim dizer, o discurso. “Ver nele um simples cínico que sobrevoa a realidade com um olhar desabusado de tanto-faz, ou um cético de soberana indiferença, seria negar a pulsão profunda e sempre ativa de uma inquietude metafísica que nenhum niilismo saberia

suprimir.”4 Esse comentário mostra que Sylvie Jaudeau, como outros comentadores, intuiu

a complexidade da problemática colocada pelo pensamento de Cioran em sua gênese, uma

problemática que pode muito bem ser significada pelo substantivo alegorizado: Mal.5

“Cioran não encontrou Deus, ele encontrou o mal”,6 afirma a comentadora, que, para a nossa

surpresa, afirma, noutra parte, que “o pessimismo da obra de Cioran só aparece para aqueles

que não penetraram o seu sentido último”.7 Encontrar o mal até em Deus não é pessimista o

suficiente?

Eis o tipo de polêmica, muitas vezes infrutífera, pois mal colocada, que o discurso de Cioran, polifônico e fragmentário, não poderia deixar de evitar. O seu pensamento é uma soma de atitudes, não pretende ser de outra forma, e precisar as relações entre certos conceitos é uma preocupação nossa, de leitor, não dele. Parece-nos que, se há pensamento

do mal, deve haver algum pessimismo. Mas, “niilismo, não. Cioran baniu essa palavra. Ele

se diz cético”,8 e assim o ceticismo, alhures parametrizado e relativizado (junto com o cinismo), em nome de uma “inquietude metafísica” que estaria no âmago do pensamento de

1 CIORAN, E.M., “Mecanismo da utopia”, História e utopia, p. 108. 2 IDEM, “O tédio dos conquistadores”, Breviário de decomposição, p. 108. 3 IDEM, Entrevistas com Sylvie Jaudeau, p. 21.

4 JAUDEAU, S., Cioran ou le dernier homme, p. 116 (tradução nossa).

5 Cf. NEIMAN, S., O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia. 6 JAUDEAU, S., Cioran ou le dernier homme, p. 212 (tradução nossa).

7 IDEM, Ibid., p. 17 (tradução nossa). 8 IDEM, Ibid., p. 18 (tradução nossa).

70 Cioran, torna-se agora o recurso para dissociar Cioran de todo pessimismo. Passa-se apressadamente pela relação entre niilismo e ceticismo, e entre niilismo e pessimismo, negligenciando suas conexões subterrâneas, suas cumplicidades metateóricas, suas histórias conceituais que se interseccionam em determinados momentos. Seria ingênuo achar que não se pode encontrar expressões de certo pessimismo na história da filosofia antes de Schopenhauer, assim como é questionável atribuir niilismo a Górgias. E, no entanto, nenhuma das duas atitudes carece totalmente de justificação racional.

A genealogia do pensamento de Cioran possui muitos inícios diferentes e caminhos paralelos que se bifurcam; é uma história de eventos sincrônicos, uma história multiversal, e cuja pluralidade irredutível só chega a realizar sua unidade de sentido, se realiza, na

existência mesma do autor, em seu carrefour subjetivo de “acontecimentos, ações,

interações, retroações, determinações, acasos”.1 A narrativa principal começa na Romênia

da segunda década do século XX. Paralelamente, poderíamos iniciá-la no Idealismo e no Romantismo alemães da virada do XVIII para o XIX, na França de Montaigne e de Pascal, nas “filosofias crepusculares” do período helenístico (epicurismo, cinismo-estoicismo, hedonismo, ceticismo, gnosticismo), na Grécia trágica e pré-socrática, na Índia do Buda Shakyamuni quinhentos anos antes de Cristo, e tantos outros cenários históricos.

E voltamos à questão: como inserir Cioran numa História da qual ele buscou escapar, tanto quanto isso seja possível, no frenesi de um elã anti-prometeico? Apesar de sua dedicação à arte de pensar contra si,2 não evitou ser incluído tanto em uma história do pessimismo3 quanto em uma história do niilismo.4 Ele poderia figurar também na História do mal no pensamento moderno elaborada por Susan Neiman (que sequer o menciona). Outra história alternativa, bastante rica em seu leque de expressões (filosofia, teologia, mística, artes visuais, literatura) e na amplitude temporal que abarca (da Antiguidade à contemporaneidade), e na qual Cioran poderia ser muito bem incluído, é a História do nada

de Sergio Givone.5 Trata-se de uma longa e sinuosa história, que se cruza com a do niilismo,

mas que não se confunde com ela: dos pré-socráticos aos trágicos, e então à sofística; daí

1 MORIN, E., “A necessidade do pensamento complexo”, Introdução ao pensamento complexo, p. 13. 2 Cf. “Penser contre soi”, La tentation d’exister.

3Cf. “Consciousness is a disease: existential pessimism in Camus, Unamuno and Cioran”, in: DIENSTAG, J., Pessimism: philosophy, ethic, spirit. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2006.

4 Cf. “Niilismo, existencialismo, gnose”, in: VOLPI, F., O niilismo. Trad. de Aldo Vannucchi. São Paulo: Loyola, 1996.

5 GIVONE, S., Historia de la nada. Trad. de Alejo González & Demian Orosz. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 1995.

71 aos místicos cristãos medievais, Dürer, Pascal, Baudelaire, Leopardi, para citar apenas aqueles mais relevantes no horizonte de Cioran, o mérito da História do nada é que ela dissocia a ideia do nada do conceito tão desgastado de niilismo, mostrando-a, através de diferentes perspectivas e cenários, como um princípio infinitamente paradoxal que está longe de se reduzir à imagem mental patológica de jovens românticos e suicidas.

Pessimismo, ceticismo, cinismo, niilismo, misticismo1: estas são as tendências mais

usualmente identificadas em Cioran por seus intérpretes, e as considerações de Sylvie Jaudeau permitem ver como é, muitas vezes, inevitável cair na armadilha (armada pelo próprio Cioran) de assumir uma destas tendências como definitiva, perdendo de vista a complexidade de um pensamento que se quer polifônico, diafônico, autodissonante, descentrado, irredutível a uma unidade de sentido. Assim, por exemplo, joga-se fora o místico, para salvar o cético; ou, em outro registro categorial, joga-se fora o pensador (que é pessimista, niilista, fatalista, etc., etc., e por isso mesmo pernicioso, perigoso...) para salvar o escritor. A operação se repete de um lado para o outro. Diante dessa situação, optamos por adotar um procedimento hermenêutico compreensivo, buscando compreender as razões de cada uma dessas posições e a mútua relação, explícita ou implícita, entre elas, assumindo que, se têm sido evocadas insistentemente para descrever o pensamento de Cioran, é porque há uma razão para isso, contra toda exigência de unidade e de sistematicidade. Enfim, sendo o nosso interesse apresentar o pensamento existencial de Cioran, a partir dessas tendências de pensamento que incidem sobre o seu universo intelectual, passaremos agora a uma análise das principais referências filosóficas e não filosóficas, modernas e pré-modernas, no horizonte do pensamento de Cioran, escrevendo no século XX. Comecemos pelas influências mais próximas, no tempo e no espaço.