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No contexto alemão e para além dele, Schopenhauer e Nietzsche são referências teóricas particularmente importantes uma vez que incidem diretamente sobre a problemática do pessimismo e do niilismo, conforme se constituiu na filosofia alemã moderna em reação ao positivismo e aos excessos da Razão iluminista. Os títulos de seus livros já sugerem por si só a herança de Cioran dessa problemática: Nos cumes do desespero, O livro das ilusões, Breviário de decomposição, Do inconveniente de ter nascido, Esquartejamento (Écartèlement), para citar apenas os mais impactantes. Schopenhauer é reputado o patrono

72 do pessimismo filosófico, o filósofo da negação da Vontade e da vontade ascética de redenção pelo nirvana; Nietzsche, o filósofo do niilismo e da superação do niilismo, o profeta

do eterno retorno, o filósofo-artista, o homem do fragmento, inimigo do sistema. “A tentação

é grande de reduzir Cioran a um novo Nietzsche”,1 o que, o que diga-se de passagem, também vale em relação a Schopenhauer. Reducionismo à parte, há de fato afinidades, paralelos, e não carece de sentido relacionar Cioran a estes dois filósofos, sobretudo quando, a despeito de seu “exílio metafísico” e de sua “dialética da indolência”, ele se insere de uma maneira ou de outra, transitando entre a filosofia e a literatura, numa história (e numa tradição) na qual relações e correspondências se estabelecem. Mas é preciso ter cuidado: é difícil discernir e tocar aquilo que o autor possui de singular, original,2 sendo fácil, em contrapartida, perder de vista as diferenças essenciais entre ele e qualquer outro autor. O seu estilo mesmo contribui para isso. Ainda mais se o leitor já parte da expectativa de paralelos, relações, coincidências; quanto maior a expectativa, mais perfeitamente parecem se confirmar, a cada página, a cada frase. Por outro lado, tendo feito uma leitura aprofundada, e desta vez partindo dele aos outros, para verificar esses mesmos paralelos, relações, coincidências, descobre-se que muitos eram apenas superficiais, genéricos, esquemáticos. Tratar Cioran como um novo Nietzsche ou um novo Schopenhauer, só parece possível em função de generalizações e distorções não apenas de Cioran, mas também dos autores com os quais ele dialoga. Enfim, deveremos fazer a análise da análise sobre a relação de Cioran, que é o nosso objeto central, com outros autores da tradição, o que faz com que se entrelacem muitas escritas e muitas leituras, textos e contextos. As perspectivas e horizontes hermenêuticos são vários, desdobrando-se indefinidamente de um texto ao outro, de um contexto ao outro, a ponto de se tornar um emaranhado de discursos sobre discursos refletindo-se esterilmente num diálogo em que não se sabe quem fala o quê. O que nos interessa é Cioran. E, particularmente, sua obra francesa, que representa, como um mausoléu, uma morte mais do que simbólica para tudo o que é passado, familiar, natural: sua romenidade e toda identidade, passada, presente e futura. E o renascimento, se podemos dizer assim, a uma nova vida, a uma nova morte, a uma vertigem sonhada.

1 DEMARS, A., Le pessimisme jubilatoire de Cioran: enquête sur un paradigme métaphysique négatif, p. 68 (tradução nossa).

2 Ainda que o autor, no caso, ponha em questão, ironicamente, toda pretensão de originalidade, inovação, em matéria de pensamento, notadamente no que diz respeito ao Essencial (cf. “Obsessão do Essencial”, in: Breviário de decomposição)

73 Costuma-se debater, no âmbito dos estudos acadêmicos sobre Cioran, o que permanece e o que muda em seu pensamento na transição do romeno ao francês. A discussão implica, dentre outras, a questão de saber de que maneira a obra de Cioran dialoga, antes e depois, com a de Schopenhauer e a de Nietzsche. No âmbito dos estudos romenos sobre Cioran, duas interpretações divergentes se destacam: a de Marta Petreu e a de Ciprian Vălcan. Enquanto Petreu sustenta a tese da predominância constante da influência de Schopenhauer no pensamento de Cioran, do começo ao fim, Vălcan tende a ler a obra do jovem Cioran como estando mais fortemente marcada pela influência de Nietzsche,1 diferentemente de sua obra francesa, cujo pessimismo atroz seria normalmente associado a Schopenhauer. Pensamos que ambos os intérpretes têm alguma razão em suas alegações, mas estamos pessoalmente inclinados a concordar com Vălcan. Se a sua tese é mais verdadeira, a obra francesa de Cioran está marcada, a começar pelo Breviário de decomposição, pela renegação do “nietzschianismo exaltado” de juventude e pela conversão a um “pessimismo implacável” que seria digno de Schopenhauer. Para nós, a marca anti- nietzschiana do discurso de Cioran em francês é clara; pensamos também que ela é uma novidade em comparação com os escritos romenos, nos quais Cioran tende a exaltar as qualidades de Nietzsche Ao mesmo tempo, não poderíamos deixar de reconhecer, na totalidade da obra cioraniana, inclusive na romena, uma tendência manifesta ao pessimismo,

que, no entanto, não se sistematiza nunca – um pessimismo “do anti-sistema”,2 intuitivo e

fragmentário. Por fim, estamos inclinados a pensar que as posições de Petreu e Vălcan, e a

própria controvérsia à que respondem, derivam em grande medida de certa prerrogativa

filosófica, transgredida por Cioran3 (em francês mais do que em romeno), segundo a qual o

1“O primeiro alvo de Vălcan contra essa pretensa origem schopenhaueriana das obras do jovem Cioran é a ideia de pessimismo. Ele afirma que nos escritos cioranianos de juventude não há nenhuma adesão ao ‘pessimismo implacável’ de Schopenhauer. O que há é uma ‘visão heroica’, uma ‘intensificação do vivido’, marca visível de um nietzschianismo exaltado.” BRUM, J. T., “Cioran e Schopenhauer: duas visões romenas”, in: ethic@, Revista Internacional de Filosofia da Moral, v. 11, nº 2 , 2012, p. 102.

2 CIORAN, E.M., Carta-prefacio a Fernando Savater (Paris, 22 de outubro de 1973), in: SAVATER, S., Ensayo sobre Cioran, p. 18.

3 Uma indistinção que se poderia dizer logológica (em oposição a ontológica) e “fenomenalista” (cética) em suas premissas, e que não saberia manter-se alheia a uma racionalidade eminentemente fragmentária, na contramão de todo espírito sistemático. Ela será compartilhada por Cioran com Nietzsche, em contraposição a Schopenhauer (um defensor apaixonado do diletantismo em filosofia mas, ele mesmo, não muito diletante) que manteve-se cúmplice desse preconceito e contribuiu para consolidá-lo. Temos em mente sua classificação dos três tipos de autores (os que “escrevem sem pensar”, os que “pensam enquanto escrevem” e os que “pensaram antes de se pôr a escrever”) e principalmente sua divisão, ao mesmo tempo idealista e romântica, entre matéria e forma: “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dois pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria.” SCHOPENHAUER, A., “Sobre a escrita e o estilo”, § 2, § 3, in: A arte de escrever, p. 57, 63.

74 pensamento em si desfruta de preeminência lógica e ontológica sobre a forma, e que seria legítimo tratar a cada um destes aspectos isoladamente, separando-os.

Não se trata de determinar se Cioran é mais nietzschiano ou mais schopenhaueriano. Antes e depois, o seu pensamento apresenta um caráter tão movente, tão proteico, buscando ser fiel a si mais do que a qualquer outra autoridade intelectual ou espiritual. Seu “método”, gestado desde os anos romenos, sendo “pensar contra si”, conforme o título do ensaio que

abre La tentation d’exister, a solidão essencial do pensador-escritor impede-o de se ocupar

tudo o que não seja a sua própria queda, a sua própria lucidez, o seu próprio destino. Uma

vez que se busca esquecer-se, apagar-se à medida que se avança, lucidamente, “a graus mais

altos de insegurança”,1 como preocupar-se com o que um filósofo disse sobre tal ou tal tema?

Em todo caso, as leituras, sobretudo as mais apaixonantes, deixam marcas em nossa fisionomia, em nosso caráter, produzindo o que Harold Bloom denominou a “angústia da influência”, e que está presente, de forma manifesta ou latente, na sua criação de todo autor. Pensamos e escrevemos, em grande medida, para nos diferenciar, para nos singularizar em relação àqueles que admiramos, cujas obras, filosóficas ou de outra natureza, nos impactaram de alguma maneira, talvez por tocar em algo que já estava em nós. Buscaremos as afinidades na diferença e as diferenças fundamentais por detrás das aparentes filiações. Há, por fim, certa megalomania demiúrgica no fundo do pensamento cioraniano que o levaria, mediante uma espécie de metafísica da regressão, virando as costas ao tempo, imaginar um Schopenhauer cioraniano ou um Nietzsche cioraniano.

Estamos inclinados a concordar com Vălcan, mas não sem ressalvas. Parece-nos que, a despeito de certas inscrições significativas que denotariam, nos primeiros escritos de Cioran (notadamente, os dois mencionados acima), um suposto schopenhauerianismo, o que prevalece neles é certa exaltação trágica da existência sem recurso ao ascetismo, sofrida até o limite, transfigurada e renovada pela doença. Mas, que inscrições seriam essas, que permitiriam apreender um pessimismo filosófico nos textos de juventude de Cioran? Primeiramente, o signo inaugural do desespero, presente no título do livro estreante do jovem intelectual insone, e que também não poderia deixar de nos enviar, para além das

1 CIORAN, E.M., Carta-prefacio a Fernando Savater (Paris, 22 de outubro de 1973), in: SAVATER, S., Ensayo sobre Cioran, p. 19.

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manchetes sensacionalistas1 que alegadamente o inspirariam), e para além de Schopenhauer,

a Kierkegaard,2 que Cioran também leu com atenção.

O desespero, por si só, coloca em questão as razões efetivas que se teria, ou então de que se careceria, para desesperar-se. Para Nietzsche, o desespero é mau sinal. Seríamos levados a pensar que o desespero contém, em seu núcleo subjetivo, um elemento não apenas de angústia (por definição, angústia por nada, sem causa nem fundamento, vazia de objeto, puramente subjetiva), mas também de medo. O que denotaria a existência de um objeto, de um ser, de um mundo a ser temido, por nos ameaçar de sofrimento e morte. O desespero denotaria, assim, a crença pessimista, a convicção negativa de um mal (uma ameaça, um perigo) que vai muito além dos objetos imediatos da experiência cotidiana. Um pessimismo que evoca seres e questões que são tudo menos evidentes, epistemologicamente falando. Portanto, um pessimismo que não é só existencial, mas metafísico, dir-se-ia a priori (Schopenhauer, kantiano, nos permite dizê-lo), tendo como hipótese de trabalho a assunção

(dogmática, essencialista) da existência de um mundo,3 de uma natureza necessariamente

dada, e que está longe de ser, pela perspectiva do pessimismo, sede, paradigma, valor, critério, norma.

Rossano Pecoraro acerta ao contrastar, no saldo final, os pensamentos de Cioran e Nietzsche, aproximando o romeno do pessimismo de Schopenhauer. Porém, é preciso

1 A biógrafa e compatriota de Cioran, Ilinca Zarifopol-Johnston, comenta a respeito de Nos cumes do desespero: “Muito embora dificilmente haja uma referência histórica nele, passada ou presente, o seu ‘gênero’ e carácter autoral são inteiramente contemporâneos da Romênia da década de 1930. Notícias de suicídios em jornais romenos do período começavam invariavelmente com a mesma fórmula: ‘Nos cumes do desespero, o jovem assim e assado tirou sua vida...’ A frase um tanto pomposa ‘Nos cumes do desespero’ era, assim, reconhecida como uma espécie de lógica genérica para todos os suicídios. Cioran claramente espera que seus leitores reconheçam isso e apreciem sua irônica (muito embora séria) adoção do papel do suicida putativo; o narrador é um suicida, um assassino de si. Mas para Cioran, este eu ficcional é um gesto retórico, teatral, pelo ele espera salvar o seu eu verdadeiro. Lançando-se neste personagem, Cioran comete suicídio metaforicamente, enquanto pode sobreviver ao chamado da morte ao liberar, através do seu personagem inventado, o excedente de energia lírica que ele sentia explodindo nele.” ZARIFOPOL-JOHNSTON, I., Searching for Cioran, p. 77 (tradução nossa).

2 A diferença fundamental entre Cioran e o filósofo dinamarquês é claramente apontada por Rossano Pecoraro, para além de eventuais afinidades no que concerne à reflexão sobre o fenômeno do desespero: “Em Cioran não há um Deus nem uma fé nem uma possibilidade que possa curar a doença mortal”. PECORARO, R., Cioran, a filosofia em chamas, p. 64. Para Kierkegaard, o desesperado não pode se libertar de si próprio, a não ser entregando-se, por uma espécie de “salto da fé” (cuja possibilidade efetiva nos conduziria a discussões teológicas sobre a graça agostiniana que não nos interessa levantar), a Deus, dimensão incriada do homem. Em todo caso, o desespero em Cioran é, como para Kierkegaard, “sem causa, isto é, não é desencadeado por algo de determinado, que pode ser individuado, nomeado, enfrentado. O desespero se desespera pelo próprio ser- desesperado sem motivo.” IDEM, Ibid., p. 63.

3 “Mau ordenamento, mas ordenamento: o mundo está reunido (mal reunido), ele constitui uma ‘natureza’ (má); e é precisamente na medida em que ele é um sistema que o filósofo pessimista pode declará-lo tenebroso in aeterno, não suscetível de modificação ou melhora.”ROSSET, C., Lógica do pior, p. 20.

76 esclarecer as razões explicitas e implícitas, e o alcance, tanto das divergências quanto das afinidades entre Cioran e Schopenhauer, assim como entre Cioran e Nietzsche. Segundo

Pecoraro, “a ‘filosofia desesperada’1 de Schopenhauer foi uma das fontes privilegiadas do

pensamento de Cioran. As diferenças surgem quando do plano da negação se passa ao da tentativa de indicar um caminho. Ele afasta-se de Schopenhauer e do Budismo no exato momento em que encontra neles os vislumbres de uma possível liberação”.2 Mas, se é verdade que Cioran se afasta de Schopenhauer (o budismo, pensamos, é outra questão) no momento em que a filosofia deste se revela mais consoladora e, por assim dizer, mais indulgente, mais caridosa, não é menos verdade que o seu afastamento em relação a Nietzsche implicará, dentre outras, as mesmas razões alegadas em relação a Schopenhauer.

Apesar de Nietzsche ser um espírito livre e de ter se libertado do preconceito do sistema,3

nem por isso, argumentará Cioran, ele deixou de ter seus preconceitos e suas ilusões.

Ademais, a “esperança” que, segundo Pecoraro, “não é difícil perceber nas palavras desse

jovem Cioran”4 (e cuja natureza não fica clara em sua análise), poderia acolher tanto uma significação schopenhaueriana (ascética) quanto uma significação nietzschiana (dionisíaca): Übermensch, Zaratustra, etc.

Declarando, “nos cumes do desespero”, “não poder mais viver”, debruçando-se sobre questões como a incomensurável “medida do sofrimento”, o êxtase, a morte, a loucura, a tristeza, o mal, a alegria, entre outros outras que supostamente indicariam uma saúde geral perturbada, o jovem Cioran declara fidelidade à causa do “pensador orgânico”, com o seu “pensamento vivo, apaixonado, em que o lirismo circula como sangue pelas veias!”; o “pensador orgânico”, em oposição ao pensador impessoal e abstrato cujas preocupações

seriam voltadas a “problemas abstratos que não envolvem o fulcro de nossa subjetividade”.5

O parti-pris do “pensamento orgânico” parece-nos a afirmação de uma relação estética e não

1 Baseando-se na seguinte passagem irônica de Schopenhauer: “Agora terei de ouvir novamente que minha filosofia é desesperada somente porque me expresso conforme a verdade, mas as pessoas querem que se lhes diga que o Senhor Deus tenha feito tudo do melhor modo. Dirijam-se à igreja, e deixem em paz os filósofos. Ao menos não exijam que estes disponham suas doutrinas conforme seus ensinamentos: isto, fazem-nos os trapaceiros, os filosofastros: a estes podem encomendar doutrinas à vontade...” SCHOPENHAUER, A., Parerga und paralipomena, XII, §156, apud PECORARO, R., Cioran, a filosofia em chamas, p. 76.

2 IDEM, Ibid., p. 77.

3 “O pensamento que se liberta de todo preconceito se desagrega e imita a incoerência e a dispersão das coisas que quer apreender. Com idéias ‘fluidas’ podemos nos espalhar sobre a realidade, aderir a ela, mas não explicá- la. Assim, paga-se caro o ‘sistema’ que não se desejou.” CIORAN, E.M., Silogismos da amargura, p. 32. 4 “Não é difícil perceber, nas palavras de Cioran, desse jovem Cioran, sobressaltos de vida, vislumbres de esperança. Fala-se ali de ansiedade, de inquietude, de problemas, de torturas. E o desespero? O que houve com ele?” IDEM, Ibid., p. 64.

77 lógico-epistêmica com o conhecimento, de uma ética da vida em oposição ao desprendimento ascético fundado em princípios transcendentes à experiência sensível. Neste sentido, bastante nietzschiano, em detrimento de Schopenhauer: um pensamento que, erigindo-se cético contra o pensar metafísico tradicional e seus dogmatismos diversos (inclusive aquele de Schopenhauer), “degenera” em fisiologia, em patologia, em perspectivismo fenomenalista ou subjetivismo lírico. “Baudelaire introduziu a sua fisiologia na poesia; Nietzsche, na filosofia. Com eles, as perturbações dos órgãos se elevaram a canto

e a conceito. Proscritos da saúde, cabia a eles assegurar uma carreira à doença.”1 Mas Cioran

não executará esse movimento até o final; duplamente cético e duplamente pessimista, suas dúvidas se invertem em certezas negativas, assim como suas certezas fragmentam-se em contato com a menor dúvida. O “pensador orgânico” não é, pois, tanto um metafísico quanto um psicólogo; se metafísica há em Cioran (no sentido de um discurso seriamente comprometido em falar sobre o Ser, o Nada, Deus, o Mal, a alma, a imortalidade etc.), e de fato há, não poderá ser senão uma metafísica diletante, fragmentária, irônica, idiossincrática, sobretudo apresentada numa linguagem não filosófica (apodítica, propositiva, argumentativa, conceitual, sistemática), mas poética, dir-se-ia literária. A sua é uma metafísica subjetiva, do particular, do instável e do mutável; uma metafísica da decomposição. “Uma caverna infinitesimal boceja em cada célula... Sabemos onde se instalam as doenças, seu lugar, a carência definida dos órgãos; mas esse mal sem sede..., essa opressão sob o peso de mil oceanos, esse desejo de um veneno idealmente maléfico...” Interessa-nos concentrar na obra francesa de Cioran, o que não implica desmembrá- la de seu tronco romeno, pela razão de que ela vem depois, porque fala por último. É o desdobramento, o desenlace, a culminação de tudo o que havia sido começado em outra língua, em outro país, em outra vida. Quanto a isso, somos levados a reconhecer que o pensamento de Cioran, conforme se dá a conhecer através de seus livros franceses, a começar pelo Breviário de decomposição, demonstram muito mais um anti-nietzschianismo do que propriamente um pró-schopenhauerianismo. Uma coisa não garante a outra. Há tantos pessimismos quanto há filósofos e pensadores pessimistas (e Cioran frequentaria alguns outros). O pessimismo de Cioran é sui generis; não se trata de um pessimismo ateu propriamente falando. O que há de “schopenhaueriano”, se podemos dizê-lo, na obra francesa de Cioran, é de natureza muito mais esquemática, genérica, casual, quando não

78 completamente alheio ao que diz respeito ao conteúdo, do que definitivo, preciso, pontual. Em seus livros franceses Cioran fará, como ele mesmo admite, a apologia do pessimismo, além da apologia do ceticismo. O que não significa exatamente a apologia do pessimismo de Schopenhauer, nem de nenhum outro filósofo.

No contexto da Europa pós-guerra, não é difícil intuir as razões que levariam os intelectuais a evitar qualquer cumplicidade filosófica com Nietzsche, quando não atacar abertamente sua filosofia. Sabemos o que aconteceria com ideias como Vontade de potência e Além-do-homem, a despeito dos desígnios de seu autor, traído pela própria irmã. Não havia se passado muito tempo do fim da Segunda Guerra até a publicação do Breviário de decomposição, em 1949. Seus dois primeiros textos, “Genealogia do fanatismo” e “O antiprofeta”,1 não poderiam deixar de aludir – em meio aos pregadores, reformadores, agitadores, entusiastas, idealistas e anarquistas diversos, apontados como os grandes “malfeitores” da humanidade – à figura de Nietzsche, e sobretudo a certo mito de Nietzsche que seria exaltado como profeta maior da ideologia hitlerista. Mas os dois textos se voltam também, afinal, de maneira ainda mais obliqua, àquele mesmo que vos escreve, isto é, ao seu antigo eu, o profeta que o fanático que haviam nele e que agora estão infinitamente distantes, mortos para sempre.

A obra francesa de Cioran é o objeto privilegiado de nosso interesse, e isso de modo eminentemente filosófico, teorético, para além de toda contextualidade, de toda determinação histórico-social. O que nos toca saber e apresentar é algo que, reconhecendo- se o corte ou ruptura na evolução do pensamento de Cioran em função do exílio e do câmbio de idioma, seria fundamentalmente indistinto do primeiro ao último livro: sua intuição, sua visão, o essencial do seu pensamento sobre a existência e o homem, a condição e a história humanas. Dito isso, nosso percurso metodológico tem como ponto inicial o Breviário de decomposição, livro que “oculta”, ao leitor de primeira viagem, os precedentes contextuais – toda uma biografia, toda uma logografia – cujos desdobramentos desastrosos seriam determinantes para levar ao que se apresentará, em forma e conteúdo, no Breviário e nos livros seguintes. Em se tratando da aparição, no contexto da cultura francesa pós-guerra, de