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O ódio, não, o horror que eu tenho dos meus contemporâneos é ilimitado. Duvido que eu teria reagido da mesma maneira se tivesse vivido em outra época.

O que aterroriza não é o presente, é o futuro. Cada vez que penso nele, sinto-me positivamente mal. Eu olho de longe os tempos que vêm – como antiprofeta.1 Antifilósofo, abomino toda ideia indiferente: nem sempre estou triste, logo não penso sempre. Quando olho as ideias, elas me parecem ainda mais inúteis que as coisas; desse modo, só adorei as elucubrações dos grandes enfermos, as ruminações da insônia, os relâmpagos, de um pavor incurável e as dúvidas atravessadas de suspiros.2

Moralista, sofista, pessimista, niilista: muitas são as etiquetas que se alternam na

tentativa de definir a “soma de atitudes”3 que é o pensamento de Cioran, vãs classificações

em se tratando de um pensamento que se desenvolve no exercício de negação como recusa de toda posição, de toda adesão, de toda identidade. Talvez o mais prudente seja dizer simplesmente que Cioran é um pensador. E um escritor. Um pensador existencial, se

pudermos resumir, em uma unidade categorial, o campo privilegiado de suas reflexões –

existencial, mas não existencialista.

Trate-se de Heidegger, Sartre ou Camus,4 o que se convencionou denominar

“existencialismo” não mantém com Cioran senão relações muitas genéricas, um escopo de temas comuns: o drama da finitude, a contingência e a liberdade, o sentido da vida, a subjetividade, a existência confrontada com o nada: questões que não se encontram menos presentes em Cioran, ainda que por um viés subjetivo e autobiográfico, do que nos existencialistas. É Sartre quem encarna o tipo do filósofo existencialista por excelência; ele, que emprega o termo no título de seu ensaio de 1945: O existencialismo é um humanismo. Já que estamos abordando um pensador de origem romena que viveu na França e escreveu em francês, uma maneira oportuna de se compreender a singularidade do seu pensamento é através de contraste entre ele e outros autores do mesmo contexto. Aparentemente, a

1 “La haine, non, l'horreur, que j'ai de mes contemporains est illimitée. Je doute que j'eusse réagi de la même façon si j'avais vécu à une autre époque. Ce qui me terrifie, ce n'est pas le présent, c'est l'avenir. Chaque fois que j'y pense, je me sens positivement mal. Je regarde au loin dans les temps qui viennent - en anti-prophète.” CIORAN, E.M. Cahiers: 1957-1972, p. 227 (tradução nossa).

2 IDEM, “O pensador de ocasião”, Breviário de decomposição, p. 101.

3 IDEM, “Le commerce des mystiques”, La tentation d’exister, in: Œuvres, p. 914 (tradução nossa).

4 Quem, não obstante tenha deixado claro sua recusa em ser assim definido, mantém com o existencialismo muitas afinidades, notadamente o espírito de engajamento político.

53 equiparação com o existencialismo de Sartre, ou com a filosofia do absurdo de Camus, seria inevitável. José Thomaz Brum nos fornece a chave para compreender a diferença:

A filosofia existencial de Cioran não deve ser confundida com a “segunda geração existencial” (Heidegger, Sartre, Camus), mas sim com os “pensadores privados” (Nietzsche, Dostoievski, Chestov1) que procuraram conservar no homem a kierkegaardiana “síncope da liberdade”, a angústia que não deve ser resolvida por nenhum ideal sob pena de perdermos a grande riqueza humana: sua recusa a tudo o que busca aplacar o abismo interior por qualquer falso consolo ou transcendência.2

Em primeiro lugar, o critério de que serve José Thomaz Brum para distinguir entre a primeira e segunda geração de pensamento existencial é a noção, empregada pelo próprio

Cioran, de “pensador privado”: “Não sou nada além de um Privat Denker3– um pensador

privado –, tento falar daquilo que eu vivi, de minhas experiências pessoais, e renunciei a

fazer uma obra.”4 O Privat Denker é aquele que pensa para si e por si, alheio, tanto quanto

possível, aos compromissos e exigências da vida pública. O seu gênero por excelência é a autobiografia filosófica: não importa quão abstrato seja o tema, será abordado a partir da própria experiência concreta que se tem dele. Para o Privat Denker, nenhum engajamento concebível que não com a negação e com “uma oposição constantemente reconduzida: ao homem e à História, ao próprio conhecimento e ao progresso, ao real e a Deus”, com uma “tensão sem repouso que divide o Sujeito entre exigências inconciliáveis que são, ademais,

a própria definição do trágico”:5 a dupla impossibilidade de levar a cabo a aceitação ou a

recusa de si mesmo e do mundo. O engajamento de Cioran, se engajamento há, não é senão

1 Lev Chestov (nascido Jehuda Leib Schwarzmann, 1866-1938), filósofo existencialista/espiritualista judeu russo, pouco conhecido no Brasil, e cujo pensamento se desenvolve em grande medida a partir da literatura de Dostoiévski, mas também de Tolstói e Tchekhov. Chestov enfatiza nestes escritores, em contraposição ao que ele chama os “esquemas dogmáticos clássicos” do Ocidente, algo que Cioran também valoriza sobremaneira: o modo como, em suas obras, pensamento e vida se entrelaçam intimamente, visceralmente (como em Nietzsche). Em 1954, Cioran se tornará diretor da coleção “Cheminements” (Caminhos) da editora Plon, função que ele manterá até 1963, fazendo traduzir e publicar Les révelations de la mort, de Chestov. Recordando-se de sua juventude, ele dirá a Lea Vergine: “Meu filósofo era Chestov, um judeu russo que teve certa influência na França no pós-guerra. Seu discípulo, Fondane, era meu melhor amigo...” CIORAN, E.M., Entretien avec Lea Vergine, in: Entretiens, p. 134 (tradução nossa).

2 BRUM, J. T., “O amargo saber de Cioran”, O Globo, Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1991, p. 4.

3 Ao que parece, Cioran brinca com Privat Dozent, titulação necessária na Alemanha para a docência universitária.

4 “Je ne suis rien de plus qu’un Privat Denker – un penseur privé –, j’essaie de parler de ce que j’ai vécu, de mes expériences personnelles, et j’ai renoncé à faire une œuvre. Pourquoi une œuvre ? Pourquoi la métaphysique ? Carnap a dit une chose profonde: « Les métaphysiciens sont des musiciens sans don musical. »”. “Não sou nada além de um Privat Denker – um pensador privado –, tento falar daquilo que eu vivi, de minhas experiências pessoais, e renunciei a fazer uma obra. Por que uma obra? Por que a metafísica? Carnap disse uma coisa profunda: ‘Os metafísicos são músicos sem dom musical’.” CIORAN, E.M., Entretien avec Luis Jorge Jalfen, in: Entretiens, p. 103 (tradução nossa).

54 com a lucidez, essa consciência negativa voltada contra si mesma, anulando-se e, juntamente com ela, o ser.

A noção kierkegaardiana de “síncope da liberdade” é o outro topos que serve para

divisar a distância entre Cioran e seus contemporâneos existencialistas. A síncope pretende significar certa “vertigem” da liberdade que estremece diante do nada infinito que a separa dela mesma, a angústia, beirando o desespero, de uma incerteza que coincide com a impossibilidade mesma de ser. Há no ser humano, como diz Pascal, algo que ultrapassa infinitamente o ser humano. Em medicina, “síncope” significa desmaio, desfalecimento: a perda súbita e transitória da consciência tendo como consequência uma série de reações físicas como palidez, tontura, fraqueza, às vezes mesmo convulsões. Acometido de síncope, o indivíduo perde o tônus postural, isto é, a capacidade de manter-se de pé, ereto: seus

joelhos se dobram e ele cai. Em Kierkegaard, “síncope” e “angústia” são termos correlatos:

Angústia pode-se comparar com vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual é a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse encarado a fundura!... Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece.1

O que permite diferenciar Cioran dos existencialistas é, portanto, certo sentido de uma transcendência infinita e abismal diante da qual a razão não pode senão reconhecer a sua impotência. Fundamentalmente, o que distingue o pensador romeno de seus contemporâneos franceses, aproximando-o da primeira geração de filósofos existenciais, é a postulação de certa tensão trágica irredutível, inerente à condição humana (de onde a angústia, a “síncope da liberdade”), uma tensão que instaura as condições contextuais de labor filosófico em torno do inquietante (e originalmente teológico) problema do mal, e que por isso mesmo permite depreender, nesses autores, um âmbito metafísico e/ou religioso de

pensamento, próprio ao que Camus denominou a “tradição do pensamento humilhado”.

Metafísico e/ou religioso porque, mais do que pensar o homem como um ser de natureza cuja complexidade pode ser reduzida a fatos biológicos, psicológicos ou sociais, postula, como dito previamente, uma transcendência infinita na qual o homem se perde e se encontra; porque concebe o ser humano como um animal naturalmente incompleto, insuficiente, problemático, um “animal metafísico”, tão mais metafísico quanto fala em superação da metafísica. Pois, face ao problema do mal (não distinguiremos, por ora, males morais de

1 KIERKEGAARD, S. A. O conceito de angústia, II, “Angústia na progressão do pecado hereditário”, §2 (“Angústia subjetiva”). Trad. de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 66.

55 males naturais), postula a hipótese antropológica de uma corrupção original, ou, para empregar uma linguagem mais convencional, o “pecado original” (falaremos mais disso). Cioran é um descrente que não dispensa, como veremos, a ideia de pecado, como elucidação não filosófica de um problema que a razão parece não poder responder de forma satisfatória. A obra de Cioran se distingue no século XX pelo âmbito profundamente metafísico que subjaz ao seu pensamento existencial, pela insistência na confabulação sobre certo domínio do Essencial (a maiúscula é por conta de Cioran) que permite ver quão pouco kantiano (e

em muitos aspectos anti-moderno) é o autor de Le mauvais démiurge.1 Na contramão de um

existencialismo que afirma que “a existência precede a essência”, Cioran evocará, na linha

de Schopenhauer e Nietzsche, uma metafísica existencial da qual não está de todo ausente a ideia de essência, ainda que se trate de uma essência negativa, postulada para mostrar quão aporética – trágica – é a condição humana por natureza.

Começamos por apresentar Cioran como um pensador (ou filósofo) existencial, porém não existencialista, o que requereu explicitar em que consiste tal diferença. Apesar de seu “Adeus à filosofia”, apesar de ele se apresentar como um “antifilósofo”, o autor do Breviário de decomposição é filósofo de formação e, poder-se-ia dizer, por vocação. Caso Cioran tivesse seguido carreira acadêmica, suas linhas de especialização teórica provavelmente teriam sido a filosofia da cultura e a antropologia metafísica (distinta da cultural. Entre esses dois campos, descartados (como tudo o que é acadêmico) a favor de uma filosofia subjetiva e confessional, se desenvolverá o seu pensamento sobre a condição do ser humano e sua existência histórica.

Em seu artigo sobre “a noção de desordem”2 na obra de Cioran, Nicolae Popescu

assinala a dificuldade3 com que se depara o leitor contemporâneo ao tentar situar Cioran em

meio aos movimentos literários e filosóficos da modernidade. Um discurso cuja diferenciação infinitesimal exigiria, para ser exaustivamente compreendido, uma erudição

1 Sobretudo quando se trata de pensar a existência, questão filosófica moderna por excelência, sob o signo do mal: referimo-nos à preocupação filosófica com o mal em um mundo desencantado e secularizado, em que Deus seria paulatinamente suprimido, primeiro enquanto sujeito da Revelação e objeto de fé, e logo como “Deus dos filósofos”, ídolo da razão deísta, de Rousseau a Kant.

2 “Uma discussão sobre a prosa fragmentada e os ensaios altamente paradoxos do escritor romeno e francês Emil Cioran pode deixar frustrado aquele que só buscar uma compreensão clara de sua cobertura genealógica e retórica. A localização precisa de Cioran entre os movimentos literários e intelectuais do século XX é igualmente desconcertante.” POPESCU, N., “Cioran y la noción de desorden”, in: HERRERA A., M. L.; ABAD T., A. Cioran – ensayos críticos. Colombia: Universidad Tecnológica de Pereira, 2008, p. 47 (tradução nossa).

3 A dificuldade é o resultado, em parte necessário, em parte acidental, da combinação fatorial de subjetividade, racionalidade, etnicidade, historicidade, linguagem.

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universal. Cioran é um autor polifônico.1 Estamos diante de um exemplo singular de

fenômenos como fragmentação, descentramento, desterritorialização, atopia. Falar em

desordem é evocar o princípio de entropia e, a fortiori, de complexidade. “O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do

uno e do múltiplo.”2 Mas a complexidade assim definida não é, obviamente, nenhuma

exclusividade de Cioran. A diferença é que para o autor de Breviário de decomposição a complexidade implica complicação, adensamento, em si mesmo, do caráter problemático da

existência; é uma complexidade vivida concreta e negativamente: o penser contre soi,3 que

o autor erigirá em princípio ético,4 não deixa de ser um esforço no sentido de complicar a

complexidade na própria experiência e na própria experimentação consigo mesmo, em

“avançar a graus cada vez mais elevados de insegurança”.5 O conceito de complexidade

oferecido por Morin nos conduz à noção da escrita como phármakon, conforme tematizada por Derrida, e a combinação de ambos nos oferece uma chave de acesso ao universo cioraniano. “Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo.” Lendo a fundo os textos de Cioran, é possível identificar aquilo que a complexidade oculta em sua aparência de superficialidade. A “desordem” (acosmismo) é ainda uma forma de ordem, e por detrás do “confusionismo” lúdico de Cioran, há um pensamento lúcido e coerente com suas próprias premissas. Enfim, o texto cioraniano é como esse tecido complexo, composto de substâncias heterogêneas e de múltiplos centros ex-cêntricos, e que esconde, à primeira vista sua lei de composição, a regra do seu jogo. Cabe a nós des(a)fiá-lo, des(d)obrar sua densa tessitura para enfim lançar luz

sobre o texto-chave que nos interessa – sobre a existência – e as linhas de pensamento que

o conformam, buscando recompor os “traços inquietantes do emaranhado, do inextricável,

da desordem, da ambiguidade, da incerteza...”6

1 Tomamos a expressão de Bakhtin.

2 MORIN, E., “A necessidade do pensamento complexo”, Introdução ao pensamento complexo, p. 13 3CIORAN, E.M., “Penser contre soi”, La tentation d’exister, Op. cit., p. 821.

4 Sim, há uma moral em Cioran, uma moral negativa, da negação, tendo na ironia um expediente vital, entre a melancolia e a frivolidade.

5 Cioran atribui a Nietzsche o mérito de ter inaugurado a “era dos complexos”: “Medimos sua fecundidade pelas possibilidades que nos oferece de renegá-lo continuamente sem esgotá-lo. Espírito nômade, é um especialista em variar seus desequilíbrios. Sustentou sempre o pró e o contra de tudo: é o procedimento dos que se dedicam à especulação por não haver podido escrever tragédias ou dispersar-se em múltiplos destinos. O certo é que Nietzsche, expondo suas histerias, nos desembaraçou do pudor das nossas; suas misérias nos foram salutares. Ele inaugurou a era dos ‘complexos’.” IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

57 Como inserir Cioran em uma História da qual ele, exclamando “Abominável Clio!”,

fez de tudo para se distanciar, ou na qual fez de tudo para inserir-se como o “herói negativo

de uma idade demasiado madura”? Modernidade e tradição se cruzam na tessitura da obra cioraniana, e o título de Le mauvais démiurge é um índice da extemporaneidade desse meteco exilado em Paris, “sofista da literatura”, em relação às filosofias de sua época. Seu pensamento não encontra paralelos significativos no presente, remetendo antes a formas de sabedoria e espiritualidade de outras épocas, mais ou menos crepusculares. De Heráclito a

Nietzsche, dos gnósticos à mística (católica, judaica, oriental1), passando pelo hinduísmo,

pelo budismo e pelo taoísmo; do cirenaico Egésia2 a Schopenhauer e Mainländer, dos céticos

a Wittgenstein, ou “de Teógnis a Beckett”3– o pensamento de Cioran encontra ressonância

nos mais diversos horizontes de pensamento. Concebendo um intuicionismo4 sui generis,

ele guardará de Nietzsche o princípio segundo o qual cada um deve ser o seu próprio

“princípio seletivo”.5 O complexo de referências filosóficas e não filosóficas que concorrem

1“[Rudolph] Otto escreveu um livro sobre o sagrado [O sagrado e o prograno], que é um livro de divulgação desinteressante. Mas ele escreveu entre outras coisas um livro que foi traduzido em francês, em todo caso: em alemão é West-Östliche Mystik, em francês é Mystique d’Orient et d’Occident. [...] Ele mostra os paralelos. A ideia mesma de que possa haver uma influência é impossível. Mas com citações ele mostra um certo paralelismo. Como as duas místicas evoluem independentemente uma da outra para tocar os maiores problemas metafísicos. Às vezes mesmo na linguagem há analogias. É muito impressionante ver isso. [...] É um grande livre que esclarece extremamente bem o problema da mística. Sabe, no fundo, deve-se separar a religião da mística. Talvez não completamente, mas a mística é algo à parte. É pela mística que os Ocidentais se unem aos Orientais. Lá também, uma visão mística é inconcebível sem a experiência. Um místico sem êxtase não existe. Portanto, é preciso ter atravessado.” CIORAN, E.M., Entretien avec Léo Gillet, in: Entretiens, p. 80-81 (tradução nossa).

2 “Egésia (que teria vivido em Alexandria durante o século IV a.C.) tornou-se conhecido como Peisithánatos (“aquele que persuade a morrer”), tendo escrito uma obra intitulada Aporkateron (“Morte por inanição”), a qual, infelizmente, não sobreviveu às vicissitudes do tempo. Nela, é narrada “a vida de um homem que, ao morrer de inanição e ser convocado a viver por seus companheiros, mostra a eles, convincentemente que, diante dos inúmeros desprazeres e aborrecimentos da vida, o melhor mesmo é escolher morrer. Parece, portanto, que Egésia fazia uma apologia da morte livre e que julgava preferível evadir-se da vida em qualquer circunstância do que continuar vivendo, uma posição filosófica, portanto, realmente única na Antiguidade”. PUENTE, F. R. (org.). Os filósofos e o suicídio, p. 21; “« La vie ne semble un bien qu'à l'insensé », se plaisait à dire, il y a vingt-trois siècles, Hégésias, philosophe cyrénaïque, dont il ne reste à peu près que ce propos... S'il y a une oeuvre qu'on aimerait réinventer, c'est bien la sienne.” “Apenas ao insensato a vida parece um bem’, se comprazia em dizer, há vinte e três séculos, Egésia, filósofo cirenaico, de quem quase só sobreviveram estas palavras... Se há uma obra que daria gosto reinventar, seria bem a dele...” CIORAN, E.M., De l’inconvenient d’être né, Op. cit., p. 1387. (tradução nossa)

3IDEM, “Carta-prefacio”, in: SAVATER, F., Ensayo sobre Cioran, p. 17.

4 No sentido de atribuir à intuição, em detrimento da análise e da abstração conceitual, um papel de primeira importância no conhecimento; a intuição como uma apreensão direta e dirigida ao sensível; o espírito intuitivo como aquele que vê sinteticamente e que adivinha, em vez de proceder por análise e abstração. O intuicionismo de Cioran é sui generis porque não coincide nem com aquele de Schopenhauer, nem com o de Nietzsche, nem com o de Bergson (autores que estão no centro de sua jovem formação filosófica), ainda que remeta, de um modo ou de outro, a cada um deles.

5 “Ele faz instintivamente, de tudo aquilo que vê, ouve, vive, uma soma: ele é um princípio seletivo, muito ele deixa de lado. Está sempre em sua companhia, quer esteja com livros, homens, ou paisagens: honra ao escolher, ao abandonar, ao confiar. Reage a todos os estímulos lentamente, com aquela lentidão que uma longa cautela

58 na constituição do seu pensamento não poderia ser exaustivamente analisado. Devemos, portanto, nós também, pôr em prática esse princípio seletivo para fazer um recorte compreensivo, e apreensivo, dessas referências à medida que elas demonstram incidir em seu pensamento sobre a existência.

Destarte, somos levados a dividir o campo de referências mais recentes de Cioran segundo dois países, com suas respectivas línguas, culturas e histórias: França e Alemanha. Por uma combinação de fatores históricos e biográficos, a formação intelectual do jovem Cioran será fortemente marcada pela cultura de ambos os países, e sobretudo a alemã, do

idealismo ao romantismo, do pessimismo ao niilismo.1 Cioran formou-se em grande medida

na escola alemã de pensamento, em função da inserção da Transilvânia no Império Austro-

Húngaro, entre outros fatores.2 Antes de virar as costas à filosofia acadêmica para dedicar-

se a um gênero de filosofia-confissão solitária e marginal, dedicou-se a estudar Kant,3 Hegel,

Fichte, Dilthey, Spengler, reconhecendo na sistemática a única forma de seriedade filosófica. “O garoto que gostava de ler Kant nas ruínas das muralhas de Sibiu pensava que aquilo que chamava de filosofia ‘séria’ – Kant, Hegel e a tradição filosófica alemã – era a fonte de todo

conhecimento libertador.”4 Mas o que será mais determinante na formação do seu

pensamento, no contexto da filosofia alemã, é a cultura filosófica desenvolvida em torno do

chamado Pessimismusstreit (“controvérsia do pessimismo”, de herança romântica), e que

vai de Schopenhauer a Nietzsche, passando por Bahnsen, Mainländer e Eduard von