• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3. Thor e sua proposta ética

3.3 A primeira lição de facilitação: implicar-se

Na semana seguinte, antes do início do encontro, Thor revisava a lista de assistência dos homens. Eles só podiam ter duas faltas e alguns deles já acumulavam quatro, como Anderson e Seu José. Thor ia sugerir ao juizado que Anderson repetisse o processo todo, mas no caso de Seu José... Ele já havia dado sinais de “implicação”. Citando Adriano Beiras, reconhecido psicólogo e professor universitário do campo das masculinidades, “implicar-se” era “produto do processo reflexivo” e estabelecia “novos parâmetros de comportamento a partir da percepção de que os novos pontos de vista [são] benéficos e [fazem] sentido”:

A partir do momento em que você acredita, é possível replicar o novo conhecimento com os outros, porque você percebe que é interessante para você uma mudança, que é importante uma mudança subjetiva, porque você vai mudar como pessoa. A partir do momento em que você reflete, você percebe e acaba replicando com outras pessoas, porque você entende que estar fazendo daquela forma, sentir-se dessa forma, é melhor do que aquela situação anterior. Nesse momento você acaba acreditando na proposta. Aquilo te move internamente, subjetivamente. Então a pessoa se percebe diferente, e não só porque um terceiro lhe diz como se comportar.

Estar implicado era muito importante para Thor e os estagiários, em função do que eles ignoravam algumas faltas de Seu José. Thor anunciou que, a partir desse dia, ele seria um facilitador a mais, acompanhando Milena e Carlos. Thor estava preocupado com a implicação de alguns dos participantes e considerou que sua facilitação ajudaria nesse propósito, dando exemplo desse modo aos estagiários. Milena não gostou da ideia, e Carlos manifestou ficar mais tranquilo tendo alguém experiente a seu lado. Carlos sugeriu que, após o relaxamento inicial, todos lessem uma matéria de Gregório Duvivier sobre violência contra as mulheres, para em seguida fazerem a atividade do crachá de gênero. Thor gostou da ideia. Milena continuava preocupada com seu papel como profissional, ela considerava que não a levavam a sério.

Na sala, Agustín lia uma revista Veja, que considerava “séria e com matérias objetivas” que mostravam a “bagunça que está vivendo o Brasil hoje”. Thor, sorridente, disse que talvez

Carta Capital lhe oferecesse melhores informações. Para Thor, o conteúdo de “direita” da

primeira revista passava uma “imagem distorcida dos governos progressistas dos últimos anos no Brasil”. Agustín sorriu cortesmente e, ignorando esse comentário, perguntou “o que é a violência?”. Ele mesmo respondeu que existiam vários tipos: “física”, “psicológica”, “sexual”, “humilhante”, “brutal”, “inferiorizante”... Também que existiam “gradações” da “suave até a sádica” e que a Justiça deveria punir as “formas mais extremas”. Agustín sempre falava com

propriedade e com postura professoral – tomando um café em alguma ocasião, Eliana comentou comigo que “ele deve ser o típico “paizão de família que sempre tinha a última palavra na casa”.

Enquanto Agustín conversava com os facilitadores, os demais homens iam ocupando seus lugares na roda de conversa, escutando com atenção. Agustín criticava o sistema de justiça brasileiro porque punia “a violência em geral”, tratando do mesmo jeito todas as suas expressões. Ele não considera os “xingamentos” e os “golpes leves” como formas de violência que merecessem o mesmo tratamento que os “furtos” ou os “estupros”. Esta crítica à Lei Maria da Penha foi compartilhada pelos outros homens, que não se assumiam como “criminosos” que deviam ser condenados pela Justiça. Rony complementou que a lei colocava a “mulher contra o homem” e que “um tapinha” não era uma violência que devesse ser punida da mesma maneira que um “roubo”. Ele considerava que a “degradação” e o “machucado” deviam ser castigados. Milena e Thor concordavam com a afirmação de que a Justiça devia punir as violências, mas discordavam sobre as gradações. Thor parou a discussão e perguntou como foi a semana de cada um deles.

O fim de semana de Seu José foi normal: ele foi à feira, depois ao supermercado, antes do meio-dia “tomou uma cervejinha” e conversou com seus amigos, até que seu cunhado chegou, pouco antes do almoço, e derramou um mocotó na camisa dele por ter batido na sua filha – a sobrinha da esposa de Seu José foi a demandante, a maconheira sobre quem ele comentara uma semana antes. Seu José ficou “muito ofendido”. Ele respirou e voltou calmo para casa: “troquei a camisa, peguei um facão da cozinha e voltei para pedir satisfação, mas não briguei, deixei para trás”. Ele lembrou de Milena e voltou de novo para casa, ligou a televisão e esqueceu. Thor parabenizou-o por não ter sido violento: “Você teve muita cabeça para se segurar, então o grupo fez alguma coisa com você, maravilha! Estou muito feliz de ouvir isso, eu acho que o que senhor fala é muito importante, já que o senhor lembrou de parar”. Thor considerou que o fato de Seu José não ter brigado lhe dava mais “autoridade no lar” e agradeceu sua “honestidade”. Seu José queria uma “velhice tranquila” e agora seu foco era sua pequena neta, que acompanhava todos os dias à escola e ajudava com os deveres de casa. Os estagiários sorriam.

A disposição dos participantes do grupo mudou assim que Thor assumiu a facilitação. Eles estavam mais calmos, não mais como na semana anterior, quando estavam na defensiva. Depois da intervenção de Seu José, todos começaram falar da briga que os levou para o Judiciário. Thor os deixava falar e eventualmente perguntava pelos “motivos” que levaram a parceira a insultá-los e também pelos “sentimentos” antes e durante a briga. Como Aline, ele estava interessado em que esses homens “esvaziassem o copo” antes de iniciarem o processo

reflexivo. O fato de “colocar para fora os sentimentos ruins” permitiria a “reflexão” e perceber a “implicação da própria atitude”. A primeira hora do encontro foi dedicada a escutar os homens.

Depois do intervalo, Thor perguntou se “bater” era o mesmo que “violência”. Era uma pergunta retórica. Ele mesmo afirmou que uma sociedade que aprovava castigos na educação no fundo era uma sociedade violenta, e explicou que bater era uma questão cultural, que impedia as mulheres de chegarem aos tribunais, sendo esta uma característica de uma “sociedade machista e patriarcal”. Eles deviam escolher entre continuar com atitudes machistas ou propor alguma alternativa para não usarem a violência e terem “relacionamentos saudáveis”. Thor perguntou para cada um deles como se sentia, convidando-os a refletir sobre o que estavam levando desse encontro para a semana. Rony, Seu José e Alberto estavam felizes. Milena se sentia “muito gratificada”.

Na semana seguinte, todo mundo estava comentando o jogo em que a Alemanha ganhou do Brasil na Copa do Mundo. O ambiente era de surpresa, ninguém acreditava “o vexame” que havia acontecido uns dias antes. Seu José comentava: “eu nasci no 48, no 62 estava com 11, eu nunca vi isso, desde o primeiro jogo do Brasil, ele nunca estava bem”. Todos acreditavam que Alemanha ganharia a Copa, o Brasil não merecia ganhar pela péssima campanha que fez. Como um ritual, Thor perguntou como foi a semana de cada um dos assistentes. Eles falaram da sua semana de trabalho. Seu José das grades que estava fazendo na sua oficina de serralheria, Rony dos DVD novos sobre a Copa que estavam “bombando”... Carlos ficou curioso, eles só falavam do trabalho como se não tivessem vida familiar. Thor gostou da consideração do estagiário, os demais ficaram em silêncio. Seu José respondeu “sempre é a mesma coisa, minha vida é simples”. Silêncio na sala.

Depois de uns instantes, Thor propôs ler o texto de Gregório Duvivier intitulado “Xingamento”28. Carlos leu de maneira pausada:

Puta, piranha, vadia, vagabunda, quenga, rameira, devassa, rapariga, biscate, piriguete. Quando um homem odeia uma mulher – e quando uma mulher odeia uma mulher também – a culpa é sempre da devassidão sexual. Outro dia um amigo, revoltado com o aumento do IOF, proferiu: “Brother, essa Dilma é uma piranha”. Não sou fã da Dilma. Mas fiquei mal. Brother: a Dilma não é uma piranha. A Dilma tem muitos defeitos. Mas certamente nenhum deles diz respeito à sua intensa vida sexual. Não que eu saiba. E mesmo que ela fosse

28 Matéria publicada na Folha de São Paulo em 6 de janeiro de 2014. Disponível em: http://www1.folha. uol.

uma piranha. Isso é defeito? O fato de ela ter dado pra meio Planalto faria dela uma pessoa pior?

Recentemente anunciaram que uma mulher seria presidenta de uma estatal. Todos os comentários da notícia versavam sobre sua aparência: “Essa eu comeria fácil” ou “Até que não é tão baranga assim”. O primeiro comentário sobre uma mulher é sempre esse: feia. Bonita. Gorda. Gostosa. Comeria. Não comeria. Só que ela não perguntou, em momento nenhum, se alguém queria comê-la. Não era isso que estava em julgamento (ou melhor: não deveria ser). Tinham que ensinar na escola: 1. Nem toda mulher está oferecendo o corpo. 2. As que estão não são pessoas piores.

Baranga, tilanga, canhão, dragão, tribufu, jaburu, mocreia. Nenhum dos xingamentos estéticos tem equivalente masculino. Nunca vi ninguém dizendo que o Lula é feio: “O Lula foi um bom presidente, mas no segundo mandato embarangou”. Percebam que ele é gordinho, tem nariz adunco e orelhas de abano. Se fosse mulher, tava frito. Mas é homem. Não nasceu pra ser atraente. Nasceu pra mandar. Ele é xingado. Mas de outras coisas.

Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a um homem não é um ataque a ele, mas à mãe – filho da puta – ou à esposa – corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma mulher da vida. Hijo de puta, son of a bitch, fils de pute, hurensohn. O xingamento mais universal do mundo é o que diz: sua mãe vende o corpo. 1. Não vende. 2. E se vendesse? E a sua, que vende esquemas de pirâmide? Isso não é pior?

Pobres putas. Pobres filhos da puta. Eles não têm nada a ver com isso. Deixem as putas e suas famílias em paz. Deixem as barangas e os viados em paz. Vamos lembrar (ou pelo menos tentar lembrar) de bater na pessoa em questão: crápula, escroto, mau-caráter, babaca, ladrão, pilantra, machista, corrupto, fascista. A mulher nem sempre tem culpa.

Nenhum deles entendeu o texto. Seu José disse que só percebeu que a Dilma foi xingada. Agustín e Celso consideraram que ela merecia os xingamentos porque estava levando o país para o “abismo”. Carlos perguntou qual era a diferença dos xingamentos para as mulheres e para os homens, por que “[era] ofensivo chamar a Dilma de piranha e não Aécio de piranhudo”? Para Rony, o mundo era assim e não tinha uma resposta para esta pergunta. Thor indagou para Seu José o que achava da colocação de Rony. O velho começou a narrar a história sobre os pais de um casal adolescente. A mãe da menina reclama que o jovem estava procurando a filha, ao que o pai dele respondeu: “a senhora prende sua cabra que meu boi está solto”. Seu José considerava que o pai estava certo, mas a forma de se expressar era incorreta. Rony achava que “a natureza” era a complementaridade entre o pênis e a vagina, sendo os gays um erro. Thor perguntou onde estava escrito que era censurável ser gay. Rony rapidamente respondeu que no

dicionário, e questionou os facilitadores por que eles sempre respondiam devolvendo com outra pergunta. Ele queria respostas.

Thor afirmou que a sexualidade não era uma questão certa ou errada, mas tinha a ver com o “gosto de cada pessoa”. Carlos colocou o exemplo da sua própria irmã, que havia se assumido como lésbica diante da família: “eu sou heterossexual e eu apoio minha irmã, eu não sou machista”. Seu José, um pouco indignado, assegurou que preferia ver seu filho na cadeia antes de saber que ele era gay: “gay é escroto mesmo”. Milena, escandalizada, perguntou se realmente ele estava afirmando isso, porque a homossexualidade era uma “opção” e nem por isto os gays deveriam ser enviados para o cárcere. Rony e Seu José concordaram que não era normal ser gay, porque se fosse, eles poderiam “ter filhos”. Rony queria ter “netos”, um filho gay impossibilitaria seu sonho. Carlos, muito seguro, afirmou que esta postura era causada pela “cultura heteronormativa” em que eles foram criados, e Milena advogou pela importância de considerar a “liberdade sexual” que os gays e as mulheres tinham pelo fato de serem humanos. Thor ficou preocupado e, dirigindo-se para Rony disse que esse “modelo macho alfa”, no qual ele acreditava, causava muitas injustiças, razão pela qual ele deveria refletir sobre como essas atitudes machistas prejudicavam os que estavam no seu entorno. Rony não estava convencido. Thor finalizou o encontro recomendando refletir acerca das “atitudes machistas que [eles tinham] cotidianamente com suas parceiras e filhos”, de modo tal que pudessem “optar por relacionamentos mais igualitários e saudáveis”. Os homens saíram em silêncio da sala.

Na reunião de intervisão, Carlos estava chateado: “eles não pegaram o espírito do texto”, os homens não comentaram nada sobre os xingamentos contra as mulheres. Thor lembrou que o “objetivo da facilitação [era] deixar circular a palavra”, as atividades eram só um pretexto para que isto acontecesse. A ideia não era ser um professor ou falar sobre um tema em particular, mas “permitir o processo reflexivo”, em outras palavras, “perguntar para deslocar, criando sensações a partir das quais os homens saíssem do seu lugar de conforto e enxergassem de maneira diferente”. “Sempre surgem coisas novas da troca e da argumentação”, afirmava Thor enquanto passava as contas da sua japamala. O fato de “falar” é importante porque desse modo “os sentimentos são elaborados”, o que permite “construir narrativas diferentes das verdades interiores que cada homem [traz] para o grupo”.

Para ser facilitador, explicava Thor, era necessário se apropriar do processo, suspender os julgamentos e os preconceitos próprios e fazer perguntas no momento certo, sem atacar. Esse exercício não era fácil, porque implicava “um conhecimento de si profundo”, razão pela qual os facilitadores deviam passar pela “experiência” de participar de um grupo para aprenderem a “reconhecer os próprios sentimentos [e] aproveitá-los a favor do grupo”. Carlos, Milena e

Eliana escutavam silenciosos, quase fascinados. “Uma pessoa que não está empoderada não é capaz de empoderar ninguém”, assegurou Thor, tanto facilitador quanto homem precisam passar pelo grupo reflexivo para “viverem a experiência” e “estarem conscientes de seu movimento interno”, para depois permitirem o movimento dos outros.

Depois de um breve intervalo para tomar café, a reunião prosseguiu com a revisão da situação particular de cada participante, decidindo-se sobre quem devia repetir o processo. Thor anunciou que era necessário começar pensar o próximo grupo, que seria com “homens de demanda espontânea”, bem como a capacitação para profissionais interessados na facilitação de grupos reflexivos de gênero. Eliana e Carlos precisavam fazer as entrevistas iniciais dos candidatos ao próximo grupo. Todos ficaram entusiasmados porque consideravam que esse próximo grupo seria diferente, já que eram homens que de fato queriam “pensar e mudar sua masculinidade”. Como Alan Bronz ou Marcos Nascimento, Thor via o futuro dos grupos reflexivos no marco da Lei Maria da Penha. Ele queria escrever uma nova metodologia, que permitisse a abordagem da violência, mas cujo foco não fosse só este, mas também “trabalhar a questão de gênero de maneira ampla, com públicos diversos”. Ele esperava que os grupos fossem mais “preventivos” do que “paliativos”.

Para Thor, o trabalho preventivo proporcionava uma “presença ativa dos homens na criação e no cuidado dos filhos”, impedindo a manifestação de “iniquidades de gênero”, “doenças” e “violências”. “Exercer a paternidade permite a construção de uma masculinidade diferente, reconhecedora da diferença, respeitosa com as mulheres e com o próprio corpo”, afirmava de maneira serena Thor. Para isso, era importante “reformular a função paterna”, vinculando os homens à criação dos filhos, bem como as mulheres aos grupos reflexivos, para gerar “reais diálogos com a outra parte da relação”. Thor sabia que a proposta de grupos mistos gerava resistência entre as feministas, porque em alguns encontros o tema da violência era inevitável e as feministas tinham por política apartar as vítimas dos homens. Mas ele acreditava que nas situações de violência homens e mulheres tinham participação em diversos graus e formas, e isto devia ser falado, para que ambas as partes da relação fossem “conscientes da sua posição de poder”. Só desse modo, mencionava Thor, seriam possíveis “relações que não precisassem da violência para comunicar o desconforto”.