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Capítulo 1. “O que é ser homem?”: homens igualitários e pela equidade de gênero

1.9 Da autoria para a situação: a violência em processo

Finalizando a década de 2000, fora do “campo acadêmico” stricto sensu, e após a profusão de metodologias sobre grupos, Fernando Acosta, Alan Bronz e Carlos Zuma começaram a reconsiderar o alcance da categoria “homem autor de violência” e optaram por falar “da situação da violência”. Nessa reformulação, homens e mulheres estavam inseridos em distintos graus e momentos, assumindo e alternando os papéis de “autor”, “vítima” ou “testemunha”. Esta reformulação foi inspirada na obra da terapeuta familiar argentina María Cristina Ravazzola (2005), que afirma que, para mudar o “circuito de abuso no sistema familiar”, devem se fazer explícitas as perspectivas dos atores envolvidos na situação de violência: agressor, vítima e testemunha. Desse modo é possível compreender como é mantido esse circuito, as emoções de cada um dos partícipes (conceituadas como variáveis do contexto) e as diferenças delas entre os atores. Para Acosta e Bronz, uma postura sistêmica permitiria visibilizar múltiplas posições, perspectivas ou pontos de vista (multiplicidade de selfs, segundo

Ravazzola) dos protagonistas da cena violenta para haver maiores recursos de mudança na ação terapêutica.

Fernando Acosta considerava que, para o momento atual (2014), era melhor falar de “homem em situação de violência”. Ele explicou que quando se fazia referência ao autor da violência, dava-se a impressão de que o homem agia de maneira “premeditada”, confirmando o pressuposto de que “parte da natureza masculina é ser violento”. Sua experiência terapêutica ao longo da última década (ele parou a facilitação de grupos e focou seu trabalho no atendimento em consultório), particularmente baseada nas narrativas dos homens que ele atendia, foi mostrando-lhe que existia “um número significativo de mulheres que agridem homens”. Acosta começou a questionar a categoria que ele mesmo popularizou, considerando que havia mulheres que, ao assumirem “posições de poder”, reproduziam o comportamento masculino que muitas vezes era criticado na retórica feminista. Retomando as considerações de Reich, Acosta assumiu a violência como “socialmente construída”, não devendo ser confundida com “agressividade: a força psicológica que está no mundo animal”, e muito menos com um “projeto de dominação masculina”.

Falar dos atores em situação de violência também permitia questionar a categoria “mulher vítima de violência”, crítica que não era bem-vinda a algumas ativistas envolvidas na implantação da Lei Maria da Penha. Fato que foi evidente no seminário de São Paulo, que descrevi páginas atrás. Fernando Acosta recenhecia que, apesar da discussão em torno da “vitimização” entre as feministas e da crítica que algumas acadêmicas haviam levantado nos últimos anos, a categoria de “vítima” seguia associada fortemente à mulher e ao feminino, particularmente nas políticas públicas. Para Acosta, conceber a “situação da violência” contribuía para sair do pressuposto da relação entre o agresor e a vítima e problematizar “uma visão marxista do gênero”, como ele mesmo afirmou, na qual uma classe de sexo masculina se superpunha à outra feminina, oprimindo-a.

Acosta não estava minimizando o fato de que a maioria dos casos de violência doméstica era perpetrada pelos homens, “mas um caso praticado pela mulher, isso já é para pensar, como é que acabam as mulheres nesses lugares”. Ele argumentava que a partir dessa reformulação seria possível pensar “a vitimização dos homens”, daqueles que eram assassinados pelas suas companheiras, como uma forma de violência na qual o gênero tem tudo a ver. Mas, como em todo debate, nem tudo era bem recebido. Acosta lembrava uma anedota, entre risos, mas dita em tom sério, que em algumas ocasiões ele já fora acusado de “praticar violência de gênero” por acadêmicas e gestoras das políticas para as mulheres, precisamente por propor essa reflexão. Ele identificava uma “falha na comunicação” entre as gestoras da lei, pois elas não

incorporavam o conhecimento emergente nos consultórios, nem a evidência empírica de algumas pesquisas. Acosta considerava que o discurso público estava descompassado em relação às práticas de incidência política.

Figura 5. A situação de violência. Ilustração de uma cartilha para lideranças comunitárias do Instituto Noos para prevenir a violência intrafamiliar e de gênero a partir de uma perspectiva sistêmica (Noos, 2010).

Apesar de estar mais próximo dos consultórios, Alan Bronz fez alguns grupos com homens processados pela Lei Maria da Penha, sendo ele facilitador de grupos no marco de alguns projetos de intervenção. Ele notou que a natureza dos grupos havia mudado, passando de “por demanda espontânea” a “compulsórios”. A disposição dos participantes era distinta, pois eles não estavam ali para se pensarem como homens, mas para receberem uma pena pelo fato de serem homens. Bronz considerava que a “judicialização deve ser revista”. Para ele, a

penalização como solução para a violência não era o melhor caminho para propiciar uma mudança interna que viesse a ressignificar as relações com os outros e a conformar sociedade de uma maneira igualitária.

Bronz me explicou sua crítica à judicialização baseado no conceito “domínios de existência” do biólogo chileno Humberto Maturana, que usou na sua dissertação de mestrado em terapia de família (BRONZ, 2010). Ele argumentou que, nas relações, as pessoas se colocam mais no lugar em que elas acham que o outro gostaria que elas estivessem: “eu posso ter uma expectativa de que você quer se relacionar comigo e, se você quiser ser amigo meu, então eu vou me comportar como um amigo seu”. Bronz considerava que se ele, como facilitador, tratasse os homens como criminosos, esses homens iriam começar a se relacionar com a sociedade como se fossem criminosos. “É isso o que a gente quer?”, me perguntava Bronz, para depois afirmar que a penalização terminava piorando o relacionamento do casal, como já era bem sabido. Ele considerava necessário sair da lógica dualista: “a da justiça tradicional”, que muitas vezes atrapalhava os processos reflexivos, que eram conduzidos pelas equipes técnicas e não pelos agentes do direito: “quem está na ponta ali, quem trabalha diretamente com esses casos, vê que a fronteira entre vítima e agressor fica muito difusa”. Bronz considerava que, na maioria dos casos, fazer um recorte entre agressor e vítima era uma tarefa arbitrária, tendo em conta que a situação de violência era um processo em que os papéis se intercambiavam e as desconsiderações eram mútuas.

Contudo, Bronz considerava que havia muitos casos nos quais “não tem jeito mesmo” e precisava-se de “um terceiro com autoridade maior para interromper o ciclo da violência”. Mas isto não implicava um sentido punitivo de enviar homem para a cadeia. Bronz comentava que existiam situações agudas em que nenhum psicólogo, assistente social, centro de referência, amigo ou familiar podia parar a atitude violenta do homem. Nesses casos, nos quais “a diferença de poder é muito grande na relação entre o homem e a mulher, onde há hierarquia”, tinha que atuar a Justiça e “ameaçar”. Embora Bronz fosse crítico da realização de grupos no âmbito do Judiciário, ele reconhecia que era precisamente ali que a proposta dos grupos reflexivos de gênero havia ganhado amplitude. A esfera da Lei Maria da Penha era uma oportunidade para promover as “transformações sociais necessárias em beneficio de homens e mulheres”, porque muitos homens eram encaminhados para os juizados em todos os estados do Brasil. Apesar das críticas, o sonho prevalecia e Bronz era sempre otimista quanto ao trabalho dos juizados:

No fundo eu acho que os homens dizem: “pô, a gente foi educado para ser assim, cacete, e agora vocês querem que a gente mude? Por quê? Para quê?

Eu sou assim e eu não me considero o agressor, eu acho que ela foi tão violenta quanto eu fui com ela. Então para que mudar? É assim que eu aprendi, eu estou acostumado com isso, não vejo maiores problemas em ser assim e nem me considero violento. Então eu vou mudar para quê?”. Então eu acho que o grupo é uma oportunidade para que eles possam discutir isso. Eu não quero mudar eles mais, mas eu acho muito interessante que eles tenham a oportunidade de encontrar formas de lidar com essa sociedade, que está mudando e que exige que eles mudem. Homem é muito difícil.