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Capítulo 2. Aline e sua magia

2.6 A violência não tem gênero

Aline teve que reajustar o cronograma dos encontros devido à Copa do Mundo, os funcionários do estado do Rio de Janeiro estavam liberados para assistir aos jogos do Brasil no Maracanã e muitos deles foram nas terças-feiras. Duas semanas mais tarde, as conversas na sala de espera do centro de mediação não eram sobre a Lei Maria da Penha, nem sobre “esse lado escuro das mulheres” que os levou até o Judiciário, mas sobre futebol. Alegria, entusiasmo, excitação, interesse e conhecimento erudito sobre futebol podem descrever as conversas entre os integrantes do grupo reflexivo. Diferentemente dos dias anteriores, o ambiente era descontraído. Se existia um tema no qual a palavra fluía e havia engajamento entre a facilitadora e os homens era definitivamente o futebol.

“Mas vamos agora, sim, ao sério”. Aline retomou a discussão sobre as diferenças na criação e perguntou se isto tinha a ver com a violência que viviam muitas mulheres quando adultas. Heitor logo no início disse que ele sabia que a tentativa de Aline era relacionar a “violência” ao fato de “ser homem”, mas como “seres humanos”, “homens e mulheres” eram ao mesmo tempo “racionais e animais [...] com instintos de defesa que dão origem à agressividade e com os mecanismos para controlá-la e que permitem a vida em sociedade”. Todos escutavam atentos. A “agressividade” não podia ser confundida com “força”: atributo para canalizar a primeira; nem com violência: produto de “provocações”, cujo objetivo era ferir o outro. A agressividade tinha a ver com a perpetuação da espécie humana e os homens usavam a força para resolver problemas com outros homens, proteger a família, prover dinheiro e consertar coisas no lar.

Para Heitor, as mulheres procuravam homens com força e preferiam se colocar “na posição de dependência”, canalizando seu poder na criação e no cuidado do lar. Elas não queriam assumir o papel da defesa da família, atributo que denotaria a igualdade entre os sexos,

mas “as mulheres querem igualdade de direitos [e] querem conservar os privilégios do machismo”. Ele ilustrou esta frase com o seguinte exemplo: um homem tem que ceder seu lugar para uma mulher no ônibus, sem importar a condição da mulher, mas se um homem tiver uma criança ou um pacote pesado, nenhuma mulher irá ceder a cadeira para ele. Para Heitor, homens e mulheres estavam caminhando para a “igualdade de poder”, mas a mudança dos papéis de gênero era exigida só para eles. Respondendo à Aline, ele não acreditava que na sua criação ele tivesse aprendido a ser violento. Muitas mulheres também foram educadas com violência e reproduziam isso na sua relação com os filhos e o marido: “então, não é uma questão de gênero na formação”. A agressividade estava nos dois sexos e a questão da violência não era de força, mas de “inteligência”, de saber agredir e “ferir no fundo do coração”, coisa que as mulheres sabiam fazer muito bem. A violência das mulheres era “sutil”, tinha a ver com “pequenas humilhações periódicas” que eles iam “engolindo” até “explodir”.

Aline concordava com Heitor que homens e mulheres eram diferentes e, por isso, fazia sentido falar de trocas no relacionamento. Dizia ainda que os homens possuíam “a força”, mas nem por isso tinham legitimidade para se impor dentro do lar. Ela, ao mesmo tempo em que afirmava certa complementariedade na relação de casal, que era compartilhada pelos homens, mencionava que a troca obedecia ao reconhecimento mútuo das diferenças e das potencialidades das partes. Aline estava preocupada com a incapacidade dos homens de reconhecerem a “voz das mulheres”, seu “desejo” e, mesmo sabendo que muitas delas queriam ser mães e ficar no lar, como escutava nos seus atendimentos, isto não significava que “a força dos homens” lhes negasse escutar as necessidades delas. Aline argumentou que essa noção de poder como força não lhes permitia reconhecer seus próprios sentimentos e desejos, por medo de serem ridiculizados como veados. O patriarcado fazia isto: submeter homens e mulheres, sendo uma pesada carga também para eles. Para ilustrar melhor seu ponto, Aline colocou o curta Não é fácil não22, “para pensar essas questões de gênero na educação e na criação de homens que nos fazem infelizes quando adultos e não nos libertam”. Ela recomendou refletir sobre o que o protagonista sentia e as consequências de não expressar as emoções, de não chorar.

O curta tratava do conflito que Pedro experimentava pelo fato de sua esposa Kelly ganhar mais dinheiro do que ele. Sentia-se humilhado e recorria à bebida para esquecer a situação. No boteco, ele sentia inveja de ver outro homem contente e rodeado de mulheres, que não tinha que dar satisfação para ninguém e não trabalhava feito um peão para manter o lar

22 Curta produzido a partir de uma pesquisa de Promundo e do Instituto Noos em três locais do Rio de Janeiro.

(enquanto esse homem sentia inveja de Pedro porque tinha família, ao contrário dele, que pensava que ia pelo mesmo caminho de seus amigos, presos ou mortos por ser traficantes...). Uma noite, Pedro chega em casa depois de ter bebido. Kelly o tinha visto instantes atrás no boteco e fez a devida reclamação. Ele perguntou por que não podia se divertir, ao que ela replicou que podia se divertir consertando o banheiro. Kelly o acusava de não ter iniciativa, razão pela qual ganhava menos, comparando-o com o patrão dela, que tinha ela, Kelly (ela atuando como se gostasse do seu chefe, quase como uma atriz de telenovela, sendo dramática).

Pedro fica bravo por ser comparado com outro homem e levanta a mão para bater nela, mas para porque vê uma criança, que o julga com seu olhar, e rapidamente desaparece. Tratava- se de um fantasma, similar ao do “Conto de Natal” de Charles Dickens. A criança-fantasma, como se fosse sua própria consciência, fazia lembrar a Pedro a maneira como ele mesmo fora criado e “aprendera a ser homem”, e de como isto se relacionava com o episódio de violência contra sua esposa, com a sua ausência nas brincadeiras dos filhos, e com a dificuldade que tinha em expressar seus sentimentos. A reflexão propiciada pela criança-fantasma permitiu que Pedro expressasse seus medos, dúvidas e emoções, recompondo a relação e melhorando como pai e esposo. O curta finaliza com a exposição de estatísticas de uma pesquisa realizada pelas organizações Promundo e Noos, que demonstravam que a violência era aprendida através do exemplo de pais e de outros homens, e não como consequência do desemprego ou da bebida.

Heitor, com um sorriso amplo, destacou que no vídeo a mulher sabia como provocar Pedro. Ela não necessitava ser mais forte, mas sim recorrer aos pontos fracos do homem para humilhá-lo e diminuí-lo. Episódios como este eram comuns a todos na sala, que apoiaram Heitor, mencionando que muitas brigas se iniciavam com as “provocações da mulher”. Henrique assegurou que várias brigas que ele havia escutado tinham começado quando elas “mandam o homem tomar naquele lugar e o chamam de veado; nenhum homem gosta de ser chamado para tomar no cu”. Maykson destacou que Pedro chegou silencioso em casa, querendo descansar depois de um dia frustrante, mas no lar houve uma “inversão de papéis”, sendo ela a agressiva e demonstrando como, em última instância, quem estava sendo penalizado, o lado errado da história, era o homem.

Aline perguntou sobre o direito que tinha o homem de atacar quando se sentia provocado, reação de Pedro diante da acusação de Kelly, afirmando que era preferível reagir à provocação sem violência. Nesse momento, ela pegou algumas matérias de jornais sobre a violência contra a mulher, que ressaltavam que este era um fenômeno generalizado. Meninas sequestradas na Nigéria e as mulheres apedrejadas por causa da honra no Paquistão e na Índia eram exemplos dessa violência. Voltando ao curta, Aline ressaltou que “a ausência da palavra

para comunicar os medos e as frustrações de Pedro” foi o detonador da violência contra Kelly. Ela perguntou qual era a melhor maneira para o homem reagir sem agredir, lembrando que, no final do curta, Pedro “se conscientizou e recompôs e lutou por seu casamento”. Sorridente, Aline perguntou se eles podiam fazer o mesmo.

Heitor, rindo, disse que isto não era possível, pelo menos não com Joana. Ele narrou que, em uma ocasião, por ciúmes, ela o mordera, tendo ficado 15 dias com um hematoma. Ele procurou um policial para dar parte, mas não existia um registro específico de violência de casal contra o homem. Heitor comentou que os homens eram agredidos, mas não faziam registro para não serem “motivo de piada”. Aline reconhecia que tanto mulheres como homens podiam ser violentos, porque sabia que elas xingavam os maridos e os filhos, mas ela se perguntava por que as estatísticas mostravam que a violência contra elas era maior. Para Heitor, se existisse um registro específico da violência conjugal contra os homens, ela mostraria uma estatística similar.

Aline, um pouco cansada, ressaltou que a força dos homens era desproporcional em relação ao tipo de violência sutil que Heitor descrevia. Ela reconhecia o rancor dele, mas não admitia mais o “desejo de violência contra as mulheres” no grupo, solicitando colocar “em suspenso a situação de injustiça” que eles experimentavam. Aline perguntou para cada um deles se tinham “filhas” e que pensassem o que aconteceria se elas fossem “vítimas de violência”. Os homens ficaram em silêncio, alguns olhando para o chão, menos Josué e Heitor. Este foi o momento mais efetivo que provocou uma inflexão narrativa para o resto dos encontros. Daí para frente o argumento da injustiça não foi tão recorrente.