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1. Entre a memória e a imaginação, entre a realidade e a ficção

1.1 A problemática da memória e da imaginação

Inventar histórias ou (re)escrever a experiência? Em um determinado momento de sua trajetória literária, Muñoz Molina se viu diante dessa encruzilhada. Os três primeiros romances da carreira do escritor cristalizavam uma fórmula narrativa que ele próprio resumiu como: “[…] la clase de historia que yo suelo inventar: un enigma policíaco, un personaje solitario y culpable, una sorpresa final, una simetría entre los hechos del presente y del pasado lejano.” (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 29) Influenciado pelos contos fantásticos e pelo romance policial de língua inglesa de escritores como Raymond Chandler e Dashiell Hammett, nesses primeiros romances, Muñoz Molina se preocupava com a construção da intriga romanesca, escrevendo histórias em que o suspense mantinha a atenção do leitor até a última página.

Segundo Muñoz Molina (1999, p. 100), seu romance de estreia surge inspirado na técnica de Henry James, isto é, a de fazer com que o narrado não seja exatamente o que aparenta ser. Em Beatus Ille, o estudante Minaya vai a Mágina com o intuito de investigar sobre o poeta republicano Jacinto Solana, fuzilado ao final da Guerra Civil. Em Mágina, Minaya se vê enredado nos mistérios que envolvem as mortes de Solana e de Mariana, esposa de seu tio Manuel, morta por uma bala perdida um dia após seu casamento, durante um tiroteio entre milicianos e falangistas. Adultério, assassinatos, mortes simuladas, chantagem, vingança, manuscritos e diários que servem como pistas para a investigação, e um enigma envolvendo a identidade de um dos narradores. O romance tinha os componentes que levaram a crítica a classificá-lo como romance de intriga, pertencente aos gêneros detetivesco e policial (OROPESA, 1999, p. 43, 44).

Em El invierno en Lisboa (1987), o casal de amantes Santiago Biralbo e Lucrecia vive encontros e desencontros provocados pelas circunstâncias de uma trama misteriosa que envolve fugas, perseguições, mortes e o roubo de um valioso quadro, tudo isso envolto na sonoridade do jazz e no visual obscuro e enevoado do cinema noir.

Em Beltenebros, Darman, um espião da resistência antifranquista exilado desde o fim da Guerra, é convocado a voltar à Espanha para executar um suposto traidor. Nesse romance

de espionagem, o que mantém a atenção do leitor é o mistério em torno da verdadeira identidade do personagem traidor.

Uma das principais tendências do romance espanhol escrito a partir de meados dos anos 1980 era, segundo Gracia e Ródenas (2011, p. 243), a construção de tramas narrativas que resgatavam a importância da intriga. À essa ação romanesca acrescentavam-se personagens complexos, dramas sentimentais e conflitos individuais, tudo isso dentro de uma moldura histórica minuciosa e útil. O romance de intriga tornou-se popular entre o público espanhol e ocupou um lugar importante no cenário cultural da abertura democrática, o que, de acordo com Gracia e Ródenas, não era sinônimo de falta de qualidade literária. As tramas eram bem arquitetadas e os mistérios estavam envoltos em interessantes resgastes do passado histórico do país.

Mas, para Muñoz Molina, o romance de intriga logo se tornou uma forma insuficiente para expressar seus anseios. O gosto do autor pelo desfecho surpreendente, por exemplo, passou a ser visto por ele mesmo como uma espécie de tentativa de ludibriar o leitor.

Ao observar uma cena cotidiana que daria origem ao conto La poseída15 (1993), o escritor finalmente entendeu algo que já havia suspeitado na literatura de Marcel Proust: escrever é o ofício de saber olhar para a realidade, mas essa realidade nem sempre é o que aparenta ser. Para Muñoz Molina, uma das primeiras e mais dolorosas lições do fazer literário foi encontrar uma forma de transfigurar a experiência em ficção.

Nesse processo de amadurecimento como escritor, o autor deu-se conta de que, no romance, nem tudo precisava ser inventado. Suas memórias e experiências de vida, aparentemente sem lustro, podiam ser tão intrigantes quanto peripécias mirabolantes:

Hubo un tiempo en el que yo no sabía o no me atrevía a convertir la literatura en una desnuda confesión personal y me veía abocado a escribir novelas. En los últimos años, lo que ocurre es que queriendo escribir novelas cada vez se me interpone más imperiosamente el flujo de la memoria personal, y renuncio, contra los consejos de mi inteligencia, a inventar tramas, y me dejo llevar por el puro impulso de la rememoración. (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 189)

Esse é um momento de transição na carreira de Muñoz Molina, que passa a afirmar que as boas histórias simplesmente surgem, não precisam ser inventadas. Um escritor não escreve sobre o que quer escrever, mas sobre o que lhe cabe escrever. Para o escritor andaluz, escrever é olhar para a realidade e selecionar, e embora ele nunca tenha abandonado o gosto

pelo enigma16, percebeu que não bastava manter a atenção do leitor, era preciso ir mais adiante e fazer com que a literatura atuasse sobre esse leitor para além do ponto final, para depois de fechado o livro. A melhor literatura seria aquela que fosse capaz de afinar o olhar para a realidade e para a própria ficção.

Em 1991, o jovem escritor que havia alcançado o reconhecimento com a publicação de três romances em que prevaleciam a engenhosidade de tramas imprevisíveis, afirmava: “[...] existen historias que merecen ser contadas y que pueden convertirse en una magnífica ficción; [...]” (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 28). Em outras palavras, por que inventar se a experiência, aparentemente tão singela, pode render formidáveis histórias? É claro que, na invenção de histórias há muito da experiência, e na narrativa da experiência, também participa a invenção, mas, a partir do vislumbre desse novo horizonte artístico, Muñoz Molina deixava de lado o romance de intriga para escrever um romance de memória, El jinete polaco.

Nascido em 10 de janeiro de 1956, na cidade fictícia de Mágina, e sendo filho de uma dona de casa e de um horticultor, são evidentes as coincidências entre Manuel, o protagonista desse romance, e o autor.

Ao revisitar suas memórias infantis, Manuel recorda a pobreza do ambiente rural andaluz e o medo vivido sob a sufocante atmosfera do franquismo. Também habitam as memórias de Manuel os relatos orais ouvidos, ainda na infância, das gerações anteriores à sua. Seu bisavô trazia a memória dos espanhóis que lutaram na Guerra de Cuba (1895 - 1898), e seu avô guardava recordações da Guerra Civil e da experiência num campo de concentração do bando nacionalista. Niños de la guerra17, os pais de Manuel, que tiveram de deixar a escola para assumir precocemente o trabalho no campo, relatavam as penúrias vividas no pós-Guerra. Nas vozes da avó e da mãe, Manuel ouvia as dores da submissão feminina, do trabalho exaustivo e da miséria. As memórias do protagonista na adolescência davam conta do inconformismo juvenil perante o descompasso entre a modernidade de alguns países do hemisfério norte, modernidade esta que chegava à Espanha através do rock’n’roll e do cinema, e o provincianismo do sul do país ibérico.

Ao escrever um romance como El jinete polaco, que coloca em tensão a memória e a ficção, o escritor se expõe a um dilema, o da dialética entre o lembrar e o imaginar. Em que

16 Haja vista a publicação de novelas comoLos misterios de Madrid (1992), El dueño del secreto, Carlota Fainberg e En ausencia de Blanca, ambas de 1999, e os contos de Nada del otro mundo (1993, 2011), obras em que permanecem o policial, o detetivesco, a espionagem e o fantástico.

medida aquilo de que o indivíduo se lembra corresponde à realidade do passado, e em que medida suas lembranças são invenções sobre o passado?

Rememorar e imaginar, seria possível recordar sem imaginar? Em A memória, a história e o esquecimento, essa é uma das mais significativas aporias com a qual Paul Ricœur (2007) se depara. Distinguir memória e imaginação é um desafio. Recordar e imaginar são atividades cognitivas muito próximas, e a memória se materializa na mente humana em forma de imagem. Um dos nós no percurso da fenomenologia ricœuriana é o seguinte (2007, p. 61): se a lembrança retorna em forma de imagem, que é uma produção da imaginação, como essa imagem pode representar a realidade e não uma ficção?

De acordo com o filósofo francês, essa aporia tem sua origem no nascedouro da própria filosofia ocidental, e para iluminar a questão, Ricœur começa investigando os argumentos de dois modelos filosóficos clássicos, o platônico e o aristotélico.

No diálogo Teeteto, Platão propõe a seguinte indagação: “[...] a memória atual de uma impressão passada, seja, como impressão, igual à que passou e não mais existe?” (2017, p. 27). A partir desse questionamento, o filósofo institui ao menos duas premissas norteadoras para os estudos da memória. A primeira delas é a de que a memória atual sempre tornará presente algo que, no passado, foi apreendido pelo corpo e impresso na alma, portanto, a memória será sempre a presença de algo ausente. E a segunda delas é, mais que uma premissa, uma aporia: a memória atual será sempre capaz de representar exatamente o que, no passado, foi impresso na alma?

Ricœeur lembra que, no Sofista, Platão discute a questão da mimética ao ponderar que, no processo de passagem do que está impresso na alma para a lembrança, a imagem que se configura pode não reproduzir com exatidão a impressão primeira. Nessa incógnita platônica está, segundo Ricoeur, a problemática da “dimensão veritativa da memória” (2007, p. 32).

Já Aristóteles postula que a memória e a imaginação estão coligadas por pertencerem à mesma parte da alma, à parte sensível, num evidente diálogo com a concepção platônica. Mas, segundo Ricœur (2007, p. 36), Aristóteles acrescenta outra camada à discussão ao questionar se o indivíduo se lembra de uma afecção, ou seja, da marca deixada na alma por um acontecimento passado, ou se se lembra daquilo que provocou essa afecção. Porque aquilo que provoca uma afecção é um evento em si, e a afecção é uma representação desse evento. O acontecimento que provoca uma afecção é algo externo ao ser humano, enquanto que a afecção é uma imagem criada internamente. Para Ricœur, essa é a forma aristotélica de propor o mesmo problema platônico da similitude entre o acontecimento passado e a imagem que retorna no presente.

Deixando os dois modelos filosóficos clássicos, Ricœur parte para uma revisão fenomenológica da memória entre os pensadores modernos. O filósofo francês observa que os pensadores modernos tomados por ele para esse estudo fenomenológico, Husserl, Bergson, Sartre e Edward Casey, tendem a organizar o raciocínio em torno de uma mesma polaridade: o que acontece entre o momento em que um evento é inscrito da memória, e sua posterior recuperação por meio da lembrança? Ricœur (2007, p. 44) lembra que, para Bergson, a memória que não é hábito, que não repete, é memória que imagina, uma memória que atua. Em Bergson, o trabalho de recordação pode ir de etapas mais simplórias como a mera reprodução, até a produção ou invenção, ou seja, da recordação mecânica à reflexão, reconstituição inteligente, o que assinala a intervenção da imaginação no processo de recordação da realidade do passado. Já para Husserl (apud RICŒUR, 2007, p. 51), a retenção de uma percepção passada não é uma forma de imaginação. A retenção, como uma ação duradoura, ou seja, que se repete a cada novo presente transformando-se imediatamente em passado, vai sendo modificada, havendo, portanto, diferença entre o percebido e o retido.

Depois de percorrer os escritos dos pensadores clássicos e modernos, Ricœur chega à conclusão de que não é possível negar a condição imaginária da memória.

Parte da memória é recordação, mas outra parte é imaginação. Confirmado o dilema inicial, passo a analisar a postura de Muñoz Molina diante desse caráter ambíguo da memória, em primeiro lugar no papel de pensador da literatura, e posteriormente, na condição de escritor de ficção.

Na conferência La realidad de la ficción, proferida no mesmo ano em que se publicava El jinete polaco, Muñoz Molina afirmava:

[...] inventar y recordar son tareas que se parecen mucho y de vez en cuando se confunden entre sí. La memoria está inventando de manera incesante nuestro pasado, según los principios de selección y combinación […] La memoria común inventa, selecciona y combina, y el resultado es una ficción más o menos desleal a los hechos que nos sirve para interpretar las peripecias casuales o inútiles del pasado y darle la coherencia de un destino: dentro de todos nosotros hay un novelista oculto que escribe y reescribe a diario una biografía torpe o lujosamente novelada. (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 37, 38).

O pensamento do escritor se encaminhava na mesma direção do que conclui a reflexão filosófica sobre a natureza da memória. E o caráter imaginário, inerente ao ato de rememorar, era por ele comparado à ficção. Nessa ocasião, Muñoz Molina reafirmava uma de suas crenças, a de que todo ser humano é um criador nato de ficções.

Ainda em 1991, ao escrever o prólogo para uma edição espanhola de Absalão, Absalão! de Faulkner18, Muñoz Molina (1999, p. 140) voltava a dizer que, a incapacidade naturalmente humana de se recordar de tudo, transformava a memória em ficção. E, quatro anos mais tarde, na conferência Memoria y ficción, o escritor continuava afirmando a indefinição da fronteira entre memória e imaginação:

La memoria recuerda, la imaginación inventa, podría decirse con una cierta rigidez que está muy arraigada en los hábitos de nuestro pensamiento, y que seguramente procede del duradero asombro infantil al descubrir que hay relatos que son verdad y otros que son mentira, […] la línea divisoria entre lo verdadero y lo inventado, pero ésta es una frontera más dudosa y oscura de lo que parece, […] Ni la memoria se limita a recordar ni la imaginación inventa siempre. (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 178, 179)

Segundo Perrone-Moisés (2016, p. 244), no romance contemporâneo, a literatura mais exigente e sofisticada apresenta uma tendência à desconfiança. Os autores desconfiam: “[...] do sujeito como ‘eu’, do narrador, da narrativa, das personagens, da verdade e das possibilidades da linguagem de dizer a realidade.” Incorporado a essa tendência da narrativa de ficção contemporânea, Muñoz Molina insere, no texto de El jinete polaco, sua desconfiança com relação à fidelidade da memória na reapresentação dos acontecimentos passados. O narrador e protagonista Manuel, faz eco à voz do autor ao demonstrar a consciência de que a memória não pode ou não precisa repetir com exatidão o passado, pois ela contém em si um caráter ilusório, e essa ilusão não é necessariamente uma mentira:

Puedo inventar ahora, impunemente para mi propia ternura y nostalgia, uno o dos recuerdos falsos pero no inverosímiles, no más arbitrarios, sólo ahora sé, que los que de verdad me pertenecen, no porque yo los eligiera ni porque se guardara en ellos una simiente de mi vida futura, sino porque permanecieron sin motivo flotando sobre la gran laguna oscura de la desmemoria, como manchas de aceite, como esos residuos arrojados a la playa por el azar de las mareas con los que el náufrago debe mal que bien arreglarse para urdir en su isla un simulacro de conformidad con las cosas. Hasta ahora supuse que en la conservación de un recuerdo intervenían a medias el azar y una especie de conciencia biográfica. Poco a poco, desde que vi las fotografías innumerables de Ramiro Retratista y fui impregnándome del rostro y de la voz y de la piel y la memoria de Nadia igual que una cartulina blanca y vacía se impregna de sombras grises y luces sumergidas en la cubeta del revelado, empiezo a entender que en casi todos los recuerdos comunes hay escondida una estrategia de mentira, que no eran más que arbitrarios despojos lo que yo tomé por trofeos o reliquias: que casi nada ha sido como yo creía que fue, como alguien dentro de mí, un archivo deshonesto, un narrador paciente y oculto, embustero, asiduo, me contaba que era. (MUÑOZ MOLINA, 2001a, p. 175)

Manuel é um narrador que não detém certezas de seu conhecimento sobre o passado. Nesse romance, Muñoz Molina não apenas expressa sua suspeita sobre a existência da

18 O prólogo se intitula El hombre habitado por las voces, republicado na coletânea de conferências e ensaios Pura

linha nítida que separa a recordação da invenção, como também admite que a conservação das experiências passadas na memória, bem como seu apagamento, independem da vontade consciente. O narrador sabe que, na tarefa de reconstruir o passado, conta-se apenas com as lembranças que restam, e essa reconstrução não precisa necessariamente ser individual, pode ser inclusive coletiva, apoiada na memória do outro e nos elementos exteriores ao processo interior de rememoração.

Todo esse percurso, partindo da teoria que explica a relação entre memória e imaginação, passando pelas considerações extraliterárias do autor e pela inserção da problemática no próprio texto literário, justificam-se pelo fato de que, a partir da publicação do livro de memórias Ardor Guerrero (1995) e do romance Sefarad, a postura do escritor de aceitação da ausência de limites entre a memória e a imaginação será modificada, para dar lugar a uma crença na capacidade da memória de recuperar o passado.

1.2 O recalcamento da problemática da imaginação e a crença na dimensão