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3. Memória e trauma: o romance como narrativa do trauma

3.2 O escritor contemporâneo como um traumatizado

Em Unclaimed experience: trauma, narrative, and history, ao analisar o Moisés e o monoteísmo de Freud, a pesquisadora estadunidense Cathy Caruth propõe pensar o conceito de história como trauma, e expande o entendimento dessa noção. Ao invés de pensar o trauma como um fenômeno que atinge apenas o indivíduo, a teórica propõe pensá-lo como um fenômeno que, assim como a história, atinge secundariamente aqueles que, de alguma forma, entram em contato com o indivíduo traumatizado. Na esteira dessa reflexão, Caruth sugere ainda que a história é a forma como gerações posteriores às catástrofes são envolvidas nos traumas de seus antepassados: “[...] in Moses and Monotheism, that history, like trauma, is never simply one’s own, that history is precisely the way we are implicated in each other’s traumas.” (CARUTH, 1996, p. 24)

Ao pensar a possibilidade da transmissão dos traumas no campo dos estudos literários, Caruth se apoia em conceitos oriundos da psiquiatria. O psiquiatra Dori Laub88, que colheu em vídeo os depoimentos de judeus vítimas do extermínio nazista, observou o fenômeno da transmissão dos traumas para quem ouvia esses testemunhos. Outra referência para Caruth é o trabalho de Bessel van der Kolk89, que notou como o terapeuta pode ser afetado pelo sofrimento narrado por seus pacientes e tornar-se, também ele, um traumatizado. A partir disso, para Caruth, o testemunho do traumatizado “alcança, atinge o ouvinte”, através da urgência de um endereçamento que contamina o outro. Disponibilizar-se para ouvir o impossível ou ser escolhido para ouvir uma experiência traumática, expõe o ouvinte ao risco do contágio. Com base nos pressupostos de Laub e van del Kolk, Caruth concebe a transmissão do irrepresentável como um processo infeccioso inelutável (daí a metáfora do contágio), que envolve uma

88 Dori Laub (1937 – 2018) foi um sobrevivente do Holocausto que atuou como psiquiatra e professor de clínica psiquiátrica na Universidade de Yale. Em 1979 foi um dos idealizadores do projeto Holocaust Survivors Film

Project, iniciativa que consistia em gravar em vídeo depoimentos de vítimas do nazismo. Esse acervo foi

compilado no Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies e encontra-se disponível para o público na Universidade de Yale.

89 Bessel van der Kolk (1943) é ex-presidente da Sociedade Internacional para Estudos de Estresse Traumático, professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, e diretor médico do Centro de Trauma em JRI em Brookline, Massachusetts.

obrigação ética por parte do ouvinte, tornando-o participante e coproprietário do evento traumático.

Em Moisés e o monoteísmo, Freud se inspira na teoria da herança dos caracteres adquiridos do naturalista francês Lamarck (1744 – 1829), para explicar a transmissão da experiência traumática através das gerações. O psicanalista utiliza a teoria filogenética para defender a transmissão da tradição monoteísta entre os judeus e, ao aproximar a psicologia do indivíduo da psicologia das massas, afirma que as massas retêm impressões do passado em traços de memória inconsciente.

Amparada nesse argumento freudiano, Caruth acredita que a transmissão do trauma atravessa as dimensões de tempo e espaço, e passa a compreendê-lo como um fenômeno capaz de atingir gerações posteriores em diferentes lugares. Para ela, indivíduos ou grupos que nunca viveram o trauma diretamente são herdeiros de memórias traumáticas, o trauma se torna coletivo.

A noção de história como trauma elaborada por Caruth é valiosa porque ajuda a entender que, ao fazer a opção pelo histórico na literatura, Muñoz Molina não pode se furtar a narrar o trauma. Nessa perspectiva, narrar o histórico é narrar o traumático. Como cidadão europeu contemporâneo, ainda que não seja uma vítima direta das catástrofes que narra, Muñoz Molina representa uma geração de europeus assombrada por um passado excessivamente traumático. Muñoz Molina é, portanto, um escritor que se deixa alcançar, tocar pelo trauma do outro, implicando-se, conforme formula Caruth. Mas, seria possível pensar como Caruth, na possibilidade de um escritor, não apenas sensibilizado, mas traumatizado secundariamente ou vicariamente?

Em Holocausto, testemunho, arte e trauma, o teórico literário Geoffrey Hartman (2000, p. 208) pensa a questão do trauma secundário na mídia audiovisual, sobretudo nos drama-documentários que exibem fotografias e vídeos “reais”, imagens “verdadeiras” das vítimas das diversas catástrofes da humanidade. Para Hartman, a suposta fidelidade desse tipo de representação do horror, leva a uma exposição cotidiana à violência que acaba por torná-la habitual. Essa banalização e espetacularização da violência incorrem na indiferença, na dessensibilização para com o sofrimento do outro. Aproveitando o conceito de trauma secundário de Dori Laub, Hartman acredita que a exposição visual à violência nua e crua conduz a um trauma secundário que, como tal, é imediatamente reprimido e silenciado. No que se refere ao testemunho, no entanto, Hartman discorda de Laub. Ao contrário do que ocorre com as imagens cruas, Hartman defende que o testemunho não choca o ouvinte, mas, indo além da mera exposição, faz do ouvinte um partícipe na tarefa terapêutica:

O encontro do testemunho evita o perigo do “trauma secundário”, descrito previamente. A narrativa que emerge pela aliança da testemunha com o entrevistador não apresenta, por mais sinistro que seja seu conteúdo, nem uma série de imagens fixas que atacam os olhos, nem um manual de impessoal história. A narrativa assemelha-se à mais natural e flexível forma de comunicação humana, a história [story] – uma história que, mesmo quando descreve um universo de morte, é comunicada por uma pessoa viva, que responde, rememora, pensa, chora e leva adiante. (HARTMAN, 2000, p. 212- 213)

A ideia do encontro entre a testemunha e o ouvinte pressupõe, para Hartman, uma dimensão solidária. É valioso para a vítima de um trauma histórico encontrar alguém disposto a ouvi-la. A narrativa representa um real que não é o real nu e cru das imagens, expostas sem qualquer elaboração. O real apresentado na narrativa é um real intermediado pelo caráter representativo da linguagem. Por isso, não há um choque que leva a um trauma secundário. Hartman vê o trauma secundário como um fenômeno infrutífero porque, segundo a lógica freudiana, depois do choque, as etapas seguintes são o recalque e a repetição. O testemunho, para Hartman, é produtivo porque falar conscientemente sobre o trauma é uma tentativa de perlaboração.

As reflexões de Hartman permitem ainda retornar à questão da representação literária da realidade, um dos principais pontos desta tese em sua primeira parte. A principal indagação do teórico em seu artigo é sobre qual forma de representação seria mais fidedigna à realidade: se as chocantes imagens “reais” dos drama-documentários, ou o testemunho artisticamente elaborado. Hartman discorda que o realismo esteja nas imagens cruas e defende que ele está na arte, instrumento que possibilita a reflexão ao invés do choque inócuo, contrariando o senso comum de que a elaboração artística é ficção desconectada da realidade: Um realismo maciço sem qualquer consideração por uma restrição da representação

e na qual a profundidade da ilusão não seja equilibrada pela profundidade da reflexão, não simplesmente dessensibiliza, mas produz o oposto daquilo que era sua intenção: um efeito de irrealidade, que fatalmente mina a pretensão do realismo a figurar a realidade. Porém, é exatamente de um tal efeito que muitas vezes se acusa o elemento estético na arte, equivocadamente atacado por não estar perto o suficiente da realidade. O estético, um modo alternativo e deliberado de distanciamento, é denunciado por sua suposta frieza em relação a preocupações sociais e históricas, ou ainda por sua exploração, por permitir ao espectador sentir prazer ao ver o sofrimento de outros. [...] No entanto, a arte cria um efeito de irrealidade que não é alienador ou dessensibilizador. (HARTMAN, 2000, p. 219, 220)

Portanto, respondendo à indagação anterior, acredito que Muñoz Molina escolhe narrar o trauma porque narrá-lo é uma forma de fazer a realidade adentrar a ficção. Seligmann- Silva (2008, p. 71) afirma que, no testemunho, a própria noção de ficção é revista. Quando a