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2. Memória e culpa

2.2 Culpa criminal, culpa moral e culpa metafísica

A imagem de um cidadão consciente da história e solidário às vítimas é, praticamente, um ideal moliniano. Além do narrador, em Berghof, é a consciência histórica que leva o protagonista, o médico, a abster-se de realizar qualquer manobra de ressuscitação para salvar um ex-oficial da SS. O médico hesita por alguns instantes, mas acaba por chamar uma ambulância. Em discurso indireto livre, o narrador transmite as reflexões do protagonista que se revela enojado perante o velho nazista e diz querer deixar o moribundo, mas é impedido por algum sentimento que é incapaz de definir: “Quiere irse pero no puede, aunque no sabe si es su deber de médico lo que lo retiene en ese lugar, o alguna forma de maleficio del que no es capaz de librarse, [...]” (p. 309).

Ao estar diante de um ex-oficial da SS, o médico recupera uma memória histórica, intui que está na presença de um possível criminoso que escapou de um justo tribunal e imputa ao velho alemão uma culpa criminal. Por alguns instantes, quando hesita em salvar a vida do agonizante, o médico se coloca na condição de juiz, sente-se tentado a estabelecer um tribunal sumário por meio de seu poder de salvamento. O desfecho da cena indica que o protagonista se abstém de condenar, mas também de salvar. Ao invés de realizar qualquer manobra de ressuscitação, o médico prefere aguardar de braços cruzados a chegada de uma ambulância, lançando às teias do destino a sorte do ex-oficial da SS. O episódio criado por Muñoz Molina encena uma questão discutida por Ricœur, a da imprescritibilidade dos crimes praticados contra a humanidade, em especial o crime de genocídio: “É fundamentalmente a gravidade extrema dos crimes que justifica a perseguição dos criminosos sem limite no tempo.” (RICŒUR, 2007,

p. 479) Cinquenta anos após a queda do Terceiro Reich, um médico espanhol identifica um criminoso nazista e sente-se tentado a instituir o tribunal e a imputar a pena da qual o ex-oficial SS escapou.

Embora não citasse Freud, Jaspers parece ter organizado sua tipologia da culpa em torno de conceitos psicanalíticos. Freud (1996, p. 131) dizia que o sentimento de culpa que atinge o ego poderia ser apontado tanto por uma autoridade externa à economia psíquica, quanto por uma autoridade interna. O superego é quem exerce essa autoridade interna por meio da consciência. Os dois primeiros tipos de culpa propostos por Jaspers, a culpa criminal e a responsabilidade política, são, segundo o filósofo alemão, apontadas pelo que Freud chamaria de autoridades externas. É o outro quem enxerga em um indivíduo, um criminoso, e num coletivo, uma responsabilidade política. Os dois outros tipos de culpa, a moral e a metafísica, só podem ser imputadas pelo próprio indivíduo a si mesmo, ou seja, pelo superego ao ego através da consciência, para traduzir em termos freudianos.

A culpa moral é definida por Jaspers como a responsabilidade do indivíduo sobre as ações que realiza, e ele pode ser julgado apenas pela própria consciência. A culpa moral pode atingir tanto quem cometeu um crime individual em nome do estado, quanto aquele que prestou apoio ou colaboração a um determinado regime. Em Sefarad, o personagem Willi Münzenberg encena essa modalidade de culpa. Pragmático, enérgico, dotado de competência para a organização de ações efetivas, visionário e idealizador incansável, Münzenberg se encarregou da difusão da revolução proletária no ocidente, por meio de um ativismo social aparentemente desvinculado de causas políticas. Atraiu intelectuais e celebridades interessados em se engajar nas questões sociais de forma superficial, sem comprometimento efetivo. Atuando como uma espécie de empresário do Komintern, criou companhias, jornais, revistas, editoras, empreendimentos de fachada para manipular o dinheiro destinado à propaganda política. Idealizou eventos internacionais de solidariedade, campanhas de envio de ajuda humanitária, financiou espetáculos culturais. Foi o responsável por forjar uma imagem da URSS como grande inimiga do totalitarismo. Mas, na criação de Muñoz Molina, esse personagem de personalidade forte e decidida, também sucumbe à culpa. Nos momentos finais da vida, encurralado pela repressão stalinista que o considerava traidor, o Münzenberg da ficção sente- se manipulado e demonstra arrependimento por ter dedicado sua vida a colaborar com um regime que também contabilizou um número expressivo de vítimas:

El club de los inocentes, de los crédulos, de los idiotas de buena voluntad, de los engañados y sacrificados sin recompensa: yo he sido uno de ellos, piensa Münzenberg en sus insomnios en la habitación del hotel, yo he ayudado a que Hitler y Stalin arrasen

Europa con idéntica bestialidad, he contribuido a inventar la leyenda de su enfrentamiento a muerte, he sido un peón cuando me imaginaba en mi ebriedad de soberbia que dirigía el juego en la sombra. (p. 222)

Outro personagem que também imputa a si mesmo uma culpa moral é José Pinillos, protagonista de Narva. No início dos anos 1940, o jovem Pinillos era um estudante de licenciatura em Filosofia e Letras da Universidade de Zaragoza, aficionado pela Alemanha que, para ele, era a nação ícone da civilização ocidental. Estudante de língua alemã, admirador do país como genuíno berço da música, da poesia, da filosofia, do direito e das ciências, o personagem se alista para lutar na Divisão Azul do Exército Alemão. Mas, ao chegar ao front de Leningrado e constatar com os próprios olhos os horrores do nazismo, Pinillos imputa a si mesmo a culpa pela incapacidade de enxergar o que era óbvio, a culpa de ter sido conivente: “[...] no estábamos dispuestos a saber, y cuando supimos aún no queríamos creer lo que ya no podía negarse, porque era increíble, nos parecía que estaba fuera del orden natural del mundo, y no nos hacía menos cómplices ni menos culpables.” (p. 485)

Pinillos representa o que para Jaspers é a vítima de uma falsa consciência, alguém que acreditava em uma causa política e em sua validade, o enganado que desperta do engano. Mas, ao saber da verdade sobre o extermínio dos judeus, Pinillos permanece em silêncio, cumpre suas funções junto ao exército alemão e volta para casa são e salvo. Jaspers explica que o comportamento dissimulado daquele que sabe mas finge não saber, ou nada faz para reparar o crime, condiz com um instinto de sobrevivência individual. Para se opor à máquina arrasadora do nazismo era preciso um grau extremo de altruísmo que significava considerar a vida do outro mais importante que a própria, e sacrificar a própria vida naquele contexto, provavelmente não evitaria mais mortes. Mas o que viu no cerco a Leningrado fez com que o jovem entusiasta do nacional-socialismo rompesse com a ideologia na qual havia acreditado, e se tornasse uma testemunha do horror. Essa mudança de atitude que vai da passividade à solidariedade para com a vítima, que faz com que o indivíduo se sinta responsável pelos crimes cometidos em sua presença, transforma a culpa moral no quarto tipo de culpa proposto por Jaspers, a culpa metafísica, um sentimento eterno ao qual Pinillos estaria condenado:

Pero hay una conciencia de la culpa dentro de nosotros que tiene otro origen. La culpa metafísica es la carencia de la solidaridad absoluta con el hombre en tanto que hombre. Ella resta como una demanda inextinguible allí donde se ha apagado la exigencia moral plena de sentido. Esa solidaridad resulta lesionada si se cometen injusticias y crímenes en mi presencia. No basta con que arriesgue prudentemente mi vida para impedirlos. Si suceden y yo estoy presente y sobrevivo mientras que el otro es asesinado, entonces habla en mí una voz por medio de la cual sé que es culpa mía que siga viviendo. [...] aquéllos que desesperados y en la completa impotencia no lo pudieron impedir, dieron un paso hacia su transformación personal mediante la conciencia de la culpa metafísica. (JASPERS,1998, p. 88 – 89)

A culpa metafísica entra na fissura onde fracassou a solidariedade humana, ela é o que resta, a ruína que permanece após a falha da moral. A culpa metafísica é aquela que atinge o indivíduo pelo simples fato de ele pertencer à humanidade85, e por ter a consciência de que, em determinados momentos da história, seres humanos foram capazes de desejar e organizar a morte de outros seres humanos. A culpa metafísica é aquela que atravessa décadas e séculos e atinge o sujeito contemporâneo. A escrita de um romance como Sefarad demonstra que, como cidadão espanhol historicamente consciente, Muñoz Molina carrega a culpa metafísica da expulsão dos judeus do país em 1492. Como cidadão espanhol finalmente integrado à comunidade europeia após o isolamento do franquismo, na virada do milênio, por meio da escrita de Sefarad, Muñoz Molina mostra que os espanhóis também deveriam compartilhar da culpa metafísica ou metafórica com relação ao que de mais grave se passou no continente no último século. Esse sentimento de culpa metafísica ou metafórica, que atinge o intelectual europeu, parece ser um dos impulsos para a escrita desse romance.