• Nenhum resultado encontrado

1. O que faz lembrar, o que faz esquecer

1.5 O dever de memória e o dever de escrever

Nos testemunhos de sobreviventes de catástrofes históricas é recorrente a expressão de um sentimento de dever de memória, isto é, nesses relatos, orais ou escritos, há sempre uma declaração de que o testemunho é motivado, dentre outras razões, por uma obrigação de falar em nome dos que morreram.

De acordo com Ricœur (2007, p. 48), uma das finalidades do ato de memória, do trabalho de recordação, é lutar contra o esquecimento. Assim, o dever de memória, consiste no dever de não esquecer. Entretanto, o filósofo francês alerta que, inerente ao conceito de dever de memória, há um imperativo que inexiste nos conceitos de trabalho de memória e trabalho de luto. O verbo dever denota algo que não é oriundo do desejo, mas uma coerção, uma obrigação. O conceito de dever de memória está contido em um projeto de justiça e, para fazer justiça, três etapas devem ser percorridas: entender que cumprir com o dever de memória significa fazer justiça para com o outro; reparar uma dívida, que não estaria relacionada com a ideia de culpa, mas com a noção de herança; e ter a consciência de que a prioridade do dever de memória é a vítima, o outro que não o si mesmo.

Em Sefarad, como em muitas outras produções culturais criadas a partir do testemunho, é natural que apareça a declaração desse dever de memória. Na seção anterior, ao discutir a forma como a manipulação da memória se apresenta no romance, coloquei o caso do personagem José Luis Pinillos, para exemplificar como o indivíduo é capaz de perceber que a manipulação ideológica da memória leva ao esquecimento, e como esse mesmo sujeito, assumindo uma postura autocrítica, pode virar a chave e colocar a própria memória a serviço da vítima.

Na velhice, ao rememorar sua experiência como ex-combatente da Divisão Azul do Exército Alemão, Pinillos revela que, nas noites de insônia, sua memória é tomada de assalto por imagens de corpos atirados na neve após as batalhas no cerco a Leningrado. Mas, dentre as tantas imagens de mortos que povoam a mente do personagem, dois rostos sempre se destacam: o de um homem judeu que caminhava em um cortejo de prisioneiros e fitava fixamente o olhar de Pinillos, como que suplicando silenciosamente por socorro, e o rosto da bela mulher judia com quem o personagem dançou no baile dos oficiais alemães. A repetição dessas imagens intrusivas é uma das razões que impele Pinillos a testemunhar:

[...] me parece que los veo a todos, uno por uno, que se me quedan mirando como aquel judío de las gafas de pinza y me hablan, me dicen que si yo estoy vivo tengo la obligación de hablar por ellos, tengo que contar lo que les hicieron, no puedo quedarme sin hacer nada y dejar que les olviden, y que pierda del todo lo poco que va quedando de ellos. No quedará nada cuando se haya extinguido mi generación, nadie que se acuerde, a no ser que algunos de vosotros repitáis lo que os hemos contado. (p. 491 – 492)

Embora Ricœur prefira a noção de trabalho de memória em lugar da noção de dever de memória, o discurso de Pinillos, repleto de perífrases de obrigação (tengo la obligación de hablar/ tengo que contar/, no puedo quedarme sin hacer nada/, [no puedo] dejar que les olviden/ [no puedo dejar] que pierda), aponta mesmo para uma ideia de dever. No entanto, o fato de o personagem declarar-se portador de um dever, não exclui de sua intenção a expressão de um desejo íntimo de narrar. Mais que coagido ou obrigado, Pinillos parece mesmo querer contar. Quando era jovem e combatia em Narva, nada pôde fazer o jovem soldado espanhol contra a máquina de extermínio nazista. Entretanto, o homem maduro narra imbuído da necessidade de fazer justiça, de reparar uma dívida, que nesse caso, está, sim, relacionada à culpa, e a duas formas de culpa. A culpa por um dia ter acreditado na ideologia do nacional- socialismo alemão, e a culpa por ter sobrevivido. Em O que significa elaborar o passado, Theodor W. Adorno (1995, p. 32) alerta para o risco da destruição da memória na tentativa de eliminar a culpa, mas Pinillos executa o movimento contrário. Para expiar a própria culpa, empreende um trabalho de memória que pode, sim, servir para exorcizar seus demônios internos, mas que é, ao mesmo tempo, uma tarefa dedicada ao outro.

Ao contrário de Ricœur, Todorov (2000, p. 18) não vê problemas com a noção de dever. Para ele, quando um indivíduo experiencia acontecimentos catastróficos, o direito de lembrar se transforma mesmo em dever. No cumprimento desse dever, a dignidade humana é resgatada e a memória vence o vazio do esquecimento. Segundo Todorov, recuperar o passado por si só não basta. É preciso atribuir a esse resgate uma finalidade. Não se pode permitir que o passado determine o presente. Pelo contrário, é o presente que deve determinar o uso que se fará do passado recuperado. A partir dessa premissa, Todorov distingue os bons e os maus usos do passado, ou seja, os usos e os abusos da memória. O autor então elabora dois conceitos de memória, a literal e a exemplar.

A memória literal rememora um acontecimento, quase sempre violento, e o preserva em sua literalidade, inócuo, como uma lembrança que não leva a nada além do recordar por recordar. O acontecimento passado se torna insuperável, submete o presente e se transforma em culto da memória pela memória. Sacralizada, a memória é improdutiva.

Em contrapartida, a memória exemplar está, para Todorov, relacionada ao sentido de justiça. Trata-se de uma memória que não nega a singularidade do acontecimento passado, mas que é capaz de generalizar essa lembrança, usando-a como modelo para entender novos eventos de potencial catastrófico. A recuperação do passado se transforma, então, em ação no presente. A memória exemplar é uma memória que libera, é memória direcionada para o outro.

Nesse ponto, o conceito de memória exemplar de Todorov se aproxima dos conceitos de esclarecimento para Adorno, e de trabalho de memória e memória feliz para Ricœur.

Gagnebin também insiste na importância do imperativo de lembrar imposto pelos acontecimentos históricos violentos, no sentido de que apenas a lembrança da catástrofe pode impedir que algo semelhante aconteça:

Em oposição a essas figuras melancólicas e narcísicas da memória, Nietzsche, Freud, Adorno e Ricœur, cada um no seu contexto específico, defendem um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento – do passado e, também, do presente. Um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor aos vivos. (GAGNEBIN, 2006, p. 105)

O personagem Pinillos parece, de certa forma, preso melancolicamente aos seus mortos, mas também demonstra esperança no presente, ao transferir para o narrador, junto com seu testemunho, o dever de transmiti-lo às próximas gerações. Por meio do discurso de Pinillos, aparece novamente no romance, a reflexão sobre o desaparecimento da testemunha como forma de esquecimento e, mais uma vez, o narrador é colocado como aquela testemunha que não vai embora, que ouve até o fim o testemunho do outro e aceita a tarefa de levá-lo adiante (GAGNEBIN, 2006, p. 57). Com o natural e gradual desaparecimento das testemunhas testis e superstes, a missão é relegada ao auctor-testemunha (AGAMBEN, 2008).

O narrador de Sefarad, que não é sobrevivente nem testemunha direta das catástrofes narradas no romance, é o responsável por ouvir e ler testemunhos, e depois transcrevê-los ou reescrevê-los, articulando, em uma única narrativa, as vozes de tantas vítimas. Ao assumir essa tarefa de portador e disseminador do testemunho do outro, o narrador acaba por assumir também para si, o dever de memória, como neste trecho do último capítulo do romance:

[...] en una página de Internet he encontrado, en letras blancas sobre fondo negro, la lista de los sefardíes de la isla de Rodas deportados a Auschwitz por los alemanes. Habría que ir leyéndolos uno por uno en voz alta, como recitando una severa e imposible oración, y entender que ni uno solo de esos nombres de desconocidos puede reducirse a un número en una estadística atroz. Cada uno tuvo una vida que no se pareció a la de nadie, igual que su cara y su voz fueron únicas, y que el horror de su muerte fue irrepetible, aunque sucediera entre tantos millones de muertes semejantes. (p. 569)

Nesse fragmento, por meio da voz do narrador, o autor propõe pensar sobre como o conhecimento histórico chega até a atualidade massificado e despersonalizado, o que não propicia refletir sobre a vida humana em sua singularidade. O olhar generalizado dessensibiliza, ao contrário do olhar particularizado que a arte oferece. Um romance como Sefarad, cuja escrita

propõe ao leitor, a todo instante, colocar-se no lugar dos personagens, convida a pensar em cada um desses personagens como uma vítima singular, como uma existência única dentre milhares de outras.

A singularização da vítima é um movimento positivo porque humaniza, mas atribuir mais importância a uma catástrofe da história do que a outra, é problemático. Em Os abusos da memória, Todorov (2000, p. 34) alerta para os riscos de se imputar singularidade a apenas uma das catástrofes da humanidade, ou de se estabelecer comparações. A singularidade e a comparação podem redundar na superabundância da memória de um acontecimento, em detrimento do esquecimento de outros. No fragmento analisado anteriormente, embora o narrador expresse a necessidade do dever de memória usando como exemplo o símbolo emblemático que é Auschwitz, em Sefarad, Muñoz Molina não estabelece particularismos ou comparações. É claro que o extermínio dos judeus pelos nazistas foi um evento que marcou profundamente o século XX, porque se tratou de uma matança em larga escala, que acabou por fazer desaparecer, inclusive, importantes mentes artísticas e intelectuais. Esse genocídio foi o cume de uma perseguição empreendida desde o século V d.C., tornando-se um símbolo para a reflexão sobre o preconceito étnico, transformando-se em questão incontornável para o pensamento de escritores e intelectuais, cujas reflexões sobre o testemunho permitem pensar outras catástrofes. É esse pensamento em rede que orienta a escrita de Sefarad.

Valdivia (2013, p. 14) lembra que, na Espanha, até a publicação de Sefarad, diferentemente do que havia ocorrido em muitos países europeus desde 1945, o extermínio dos judeus pelos nazistas era um tema que havia tido pouco, ou quase nenhum espaço na produção cultural do país. Nesse sentido, a publicação do romance de Muñoz Molina representou um marco, porém, não tanto por ser uma revisitação espanhola da Shoah, mas sobretudo por conectar a esse fatídico episódio, a história da Espanha, que até então, era concebida de maneira apartada da história europeia. Era como se a ascensão do nazismo na Alemanha não tivesse qualquer relação com a vitória dos nacionalistas na Guerra Civil Espanhola e com a subsequente ditadura.

A estrutura do romance é armada como uma rede de relações históricas que tem, na história da Espanha, um ponto de partida ou de chegada. A diáspora dos sefarditas expulsos do país no século XV está na ascendência de alguns personagens que, no século XX, sofrerão novas diásporas pela mesma razão identitária. Primo Levi, vítima do totalitarismo italiano, Camille Pedersen-Safra e Isaac Salama, vítimas do nazismo na França e na Hungria, respectivamente, e Emile Roman, exilado da ditadura de Nicolae Ceauşescu (1918 – 1989), todos têm em comum a identidade sefardita, a ancestralidade espanhola.

No romance, as vítimas republicanas da Guerra Civil Espanhola e da ditadura franquista, são vítimas em comum do nazismo. Ao fugir da Espanha, o pai de Tina Palomino esteve preso em campos de concentração nazistas na França e na Alemanha. A história do nazismo também pode ser contada por espanhóis, por ex-soldados da Divisão Azul como José Pinillos. A sobrevivência de ex-oficiais nazistas na Espanha sob a conivência do franquismo, é ilustrada no episódio vivido pelo médico espanhol em Berghof. O avô judeu-alemão de Adriana Seligmann encontra, na América, o refúgio do nazismo. Décadas depois, é a neta quem é obrigada a realizar a jornada de regresso à Europa. Willi Münzenberg era alemão e comunista, foi perseguido pelo nazismo e pelo stalinismo, e morreu na fronteira entre a França e a Espanha, justamente quando pretendia colaborar com os republicanos na Guerra Civil.

Sefarad revela também como a história da Espanha se vincula à da URSS. Os filhos dos comunistas espanhóis, como Amaya Ibárruri, foram enviados para o exílio na Rússia. Um pianista fugitivo de uma ditadura soviética escolhe como país de exílio a Espanha.

Em Sefarad, Muñoz Molina desenha um mapa das tragédias europeias mais recentes, traçando uma cadeia de interconexões. À medida que as narrativas dos capítulos avançam, as catástrofes vão sendo apresentadas, de maneira que uma não seja vista como pior do que a outra, uma vez que todas são igualmente lastimáveis, não deveriam ter acontecido, não deveriam se repetir. No romance, a Espanha é inserida nesse panorama europeu, mostrando que Spain is not different76, e que a sequência de cataclismos iniciada em 1914 com a Primeira Guerra Mundial, reverberou por todo o continente em uma única corrente (MUÑOZ MOLINA, 1999, p. 120).

Retomando o início dessa reflexão sobre o dever de memória, concluo que esse sentimento de dívida a ser reparada, de justiça a ser feita, algo tão inerente aos testemunhos dos sobreviventes, pode tocar a sensibilidade de um escritor, o que faz com que a arte do romance assuma mais uma tarefa, a de oferecer às vítimas da história a única coisa que, diante da sensação de impotência, a arte pode oferecer: a lembrança77.

Encerro esta primeira etapa de análises da segunda parte da tese, cujo objetivo foi verificar as reflexões que o romance conduz sobre a dialética entre a memória e o esquecimento.

76 De acordo com Cervera (2015), Spain is different! foi um slogan veiculado entre 1962 e 1969 pelo Ministerio

de Información y Turismo, sob a direção de Manuel Fraga Iribarne (1922-2012). À imagem de país remoto, isolado

e atrasado, inferior às demais nações europeias, o slogan sobrepunha a ideia de um país exótico. A imagem de país atrasado que a Espanha tinha desde o século XVIII, foi agravada pela Guerra Civil e o isolamento político do franquismo. Enquanto a Europa, após a Segunda Guerra, buscava se repensar em conjunto, a Espanha se afastava, e era visto como um país hostil, arcaico, subdesenvolvido e conservador.

77 Aqui, faço uma paráfrase de Adorno (1995, p. 32): “Haveria que subtrair aos assassinados a única coisa que nossa impotência pode lhes oferecer, a lembrança.”

Nas narrativas memoriais, a expressão de alguns sentimentos como a culpa e o trauma é inevitável, bem como é natural que o sujeito produza narrativas nas quais exprime, não apenas as experiências individuais, como também as vivências do coletivo com o qual se vincula pela identidade. Portanto, a partir de agora, passo a ocupar-me das relações que o romance Sefarad propõe entre memória e culpa, memória e trauma, e memória individual e coletiva.